Argentina

O bandoneon contemporâneo de Martín Sued

Meu primeiro contato com Martín  foi como sideman do quarteto do pianista argentino Adrían Iaies, durante o festival ViJazz 2016. Desde então acompanho o seu trabalho e em especial no quarteto Tatadíos, ao lado de amigos como Alan Plachta e Juan Bayon. Mas faltava o seu trabalho solo; e ele veio através de Iralidad, onde Martín desfila para nós o seu gênio criativo, tanto nas composições quanto em sua arte improvisadora. E de quebra, duos com grandes instrumentistas como Yamandu Costa e Mono Fontana.

 

Wilson Garzon – Você nasceu de uma família de músicos ? O bandoneon foi seu primeiro instrumento ?
Martín Sued – Meus pais são musicoterapeutas. Meu pai é cantor e em minha casa sempre o escutei cantando zambas e tangos. E entre os discos que ouvíamos havia música muito boa. Meu primeiro instrumento foi a guitarra, porque é o instrumento que estava à mão. Estudei por poucos anos, não sou guitarrista, mas é um instrumento que gosto muito e sempre me acompanha. O bandoneon chegou em meus 16 para 17 anos.

WG – Que professores e escolas de música foram marcantes em sua formação ? Que músicos foram decisivos em sua carreira?
MS – É difícil destacar; creio que fui aprendendo tanto com professores quanto com músicos com os quais ia tocando. Em muitos casos, a experiência de compartilhar trabalhos com grandes músicos acrescenta mais na formação que qualquer aula tradicional. Mas sem dúvida, houveram professores que marcaram muito, como Gabriel Senanes, com quem estudei harmonia, composição, contraponto, etc, durante alguns anos.  Quanto aos bandoneonistas são muitos: Troilo, Piazzolla, Dino Saluzzi, Leopoldo Federico e muitos mais.

WG – Quando se deu o início de suas apresentações em teatros, jazzclubs ?
MS – Mais ou menos quando tinha 18 anos, comecei a tocar ao vivo. Também fui músico de rua durante alguns poucos anos. Os primeiros palcos foram com grupos de rock, depois vieram as orquestras e grupos de tango e folklore argentino. Em certo momento, mais ou menos aos meus 22 ou 23 anos comecei a tentar escrever música e a partir daí a coisa começou a decolar.

WG – Como foi o processo de criação do quarteto Tatadios ? Já existia um conceito sobre o trabalho do grupo ? Foram feitas gravações de CD e vídeo ?
MS – O grupo começou há mais de 10 anos e coincidiu com o meu desejo de começar a escrever minha própria música. E foi isso,  foi criado um espaço de experimentação entre amigos, um lugar muito intuitivo. Com o passar dos anos, o grupo foi tomando forma, mudando sua formação e desenvolvendo seu próprio vocabulário. Editamos 2 discos, Crecida ( 2009 ) e Panal ( 2013 ). A música que fizemos posteriormente, está registrada em vídeos que circulam na internet: tanto música própria quanto do trabalho que fizemos com a cantora e compositora Florencia Ruiz, com arranjos próprios em cima de temas de Charly Garcia. Atualmente, em algumas apresentações ao vivo acrescentamos ao quarteto original (guitarra, bandoneon, contrabaixo e bateria) mais três instrumentos: violino, cello e samples. Em principio de abril deste ano o Tatadios fará sua segunda turnê europeia.

WG – Em 2017 você lança seu primeiro CD Iralidad. A escolha do nome representa o estado de espírito do disco?
MS – O nome Iralidad tem muitos significados. A rua em que vivo no bairro de La Boca, em Buenos Aires, se chama Irala. Na casa ao lado vive Nico, o baterista de Tatadios, e é lá onde o grupo ensaia. Começamos a chamar Iralidad às coisas que aconteciam na casa. E é a casa onde vivo fazem muitos anos e onde vivi o processo de compor todas estas músicas. É uma palavra que não está em nenhum dicionário, e que contém muitas outras: irrealidade, se atualizar, lidar com a ira, e muitos significados mais.

WG – Das 11 canções que compõem o repertorio, oito são de sua autoria. Conte-nos um pouco sobre o processo de criação delas.
MS – Algumas das músicas, como Hormiga ou Chiche, foram originalmente escritas ara formações maiores. E o processo foi adaptá-las a um instrumento solo. Processo que desfrutei muito e no qual aprendi bastante. Outras como Sanyo, dedicada a Mono Fontana, ou Sanar nasceram já concebidas para bandoneon solo.

WG – Como foram as participações  no cd, em especial as de Mono Fontana e Yamandu Costa ? E quanto a Mi Jujeñita ?
MS – Mono Fontana para mim e para muitos músicos de minha geração e de outras é uma referencia total. Teve a generosidade de se juntar a gravar e ouvi-lo no disco é uma alegria imensa. Eu e Yamandu nos conhecemos no Rio fazem alguns anos através de Ernesto Fagundes, um amigo comum. Nesse momento tocamos juntos, e em março do ano passado ele me convidou para participar de vários temas de seu último disco.

Gravamos em seu estúdio do Rio de Janeiro, convivemos uns dias, foi uma linda experiencia humana e musical. Nesses dias também gravamos O que a Helena sonhou ontem a noite, uma música que dediquei à filha de outro grande músico e amigo em comum, Paulinho Fagundes, que logo ficou incluída no meu disco. As outras participações no disco foram duas das grandes referencias da voz argentina também : as queridas Silvia Iriondo e Liliana Herrero. Com a Silvia gravamos uma versão de uma dancinha anônima (Mi Jujeñita , recolhido pela grande Leda Valladares. E Liliana participou recitando uma quadra de um belíssimo poema de Borges no tema Reloj.

WG – E quanto ao lançamento e repercussões críticas de Iralidad ? Como está sendo sua relação com o Brasil em termos profissionais ?
MS – O lançamento do disco na Argentina vai ser em julho deste ano. Estive apresentando estes temas em fins do ano passado em New York. Nesta mesma viagem fiz varias apresentações de bandoneon solo, algumas delas compartilhando com um grande músico do Brasil radicado lá, Victor Gonçalves. O disco está recém começando a circular, faz muito pouco chegou ao Japão também.

Tenho uma relação de muito carinho com o Brasil há anos. Participei de muitos projetos por lá, o primeiro foi Surdomundo, integrado por músicos brasileiros, argentinos e uruguaios, uma ideia do querido amigo Arthur de Faria. Em todas estes anos tive muitas experiencias musicais inesquecíveis no Brasil, como a benção de gravar com artistas como Gilberto Gil, Milton Nascimento, Yamandu e Zeca Pagodinho. Conheci a cena musical de Belo Horizonte no ano passado, tocando minha música com Arthur, Alexandre Andrés e Gabriel Bruce. Fiquei fascinado com a quantidade e qualidade de propostas de música autoral na cena de BH. E tenho muita vontade de voltar logo.

 


WG –
 P
ara os próximos anos, que projetos estão em sua cabeça ? A cena instrumental na Argentina está criativa para você ou pretende participar de novos desafios ?
MS – Bem, no princípio deste ano tive a alegria de ser convocado por Guillermo Rubino a escrever algumas peças para bandoneon e orquestra de cordas com seu grupo SurdelSur. Ele foi apresentado faz umas semanas na Usina del Arte. Foi um grande desafio e uma preciosa experiência; estou entusiasmado em seguir explorando esse filão.

Creio que a cena instrumental da Argentina está num grande momento. Há grande variedade de propostas de muito bom nível , muito autênticas e isso acaba gerando um clima muito estimulante. Tudo isso está acontecendo dentro de uma época marcada por profunda crise econômica, política e cultural. Creio que a música criativa neste momento está sendo um espaço vital de resistência.