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O piano alfa de Leandro Cabral

Wilson Garzon – Você nasceu dentro de uma família musical? O piano foi sua primeira escolha?
Leandro Cabral – Meu avô era pedreiro e tocava sanfona em serenatas, mas nunca profissionalmente. Ele tentou ensinar o pouco que ele sabia de música para minha mãe, mas infelizmente ele faleceu muito jovem. Minha mãe guardou esse sonho musical paterno durante toda a vida, até ter seus filhos. Quanto eu e meu irmão crescemos um pouquinho, ela nos levou para estudar piano clássico. Não foi uma escolha minha, mas eu gostava muito de tocar.Leandro Cabral-mont

WG – Em sua formação musical, que professores/músicos você destacaria como decisivas? E quanto ao jazz, quando é que ele bateu à sua porta?
LC – Sidney Molina, Orlando Mancini e Sílvio Moreira foram cruciais para eu começar a desenvolver um pensamento filosófico na arte e na vida. Acho essa característica uma das mais necessárias e valiosas em um artista, pois irá afetar sua abertura de mundo como um todo, seu modo de estudo e posteriormente toda a sua produção. Marisa Lacorte foi e é minha professora de piano clássico, minha mãe musical. Uma divisora de águas em minha história com o piano.

Abel Rocha foi um professor que me ensinou a força e o benefício do rigor. David Richards é um grande saxofonista estadunidense que morou em São Paulo anos atrás e que eu conheci em 2003. Ele me chamou pra tocar com ele e ele virou um grande professor informal pra mim. Ed Motta e Letieres Leite são grandes mestres na organização de música de matriz negra. Compositores e arranjadores incríveis que eu tenho a honra de aprender com eles há tantos anos, toda vez que temos oportunidade de estarmos juntos.

A improvisação chegou pra mim de fininho, lá pelos meus doze anos de idade, numa época em que minha família não tinha mais condições de pagar as aulas de piano clássico. Eu não sabia o que era jazz nessa época, porém, eu comecei a ir para o piano brincar sem mais aquela obrigação de estudar um programa fechado. Foi uma fase de muito entusiasmo e descobertas musicais. Desde então eu percebi a alegria da criação espontânea e posteriormente eu conheci a linda tradição dos grandes improvisadores estadunidenses do século XX. Não parei mais…rs

WG – Com o pé na estrada e nas baladas das gigs instrumentais, que bandas ou combos abriram as portas para seu crescimento como intérprete e compositor?
LC – Muito legal essa pergunta. Eu tive a sorte de tocar bastante jazz na ‘noite’ de São Paulo. Um vez, tive um trabalho num hotel, onde eu tocava muitas vezes por semana e isso durou muitos anos, e com o mesmo trio, que é o meu trio até hoje. Nessa ocasião pude me desenvolver bastante como músico em vários aspectos. A ‘mágica’ de tocar toda noite é uma experiência que recomendo a todos. É uma escola informal muito séria. Anos depois pude tocar com músicos mais velhos em duas casas que tem música ao vivo em São Paulo e que estão na cena há muitos anos: o Mancini e o Baretto. Aprendi muito com essa galera.

WG – Em 2015 você lança em formato EP, “Sobre Tradição”. Foi nesse projeto que surgiu o Leandro Cabral Trio? O disco foi uma síntese da sua trajetória ou uma porta aberta a experimentações?
Meu trio surgiu formalmente no álbum “Sobre Tradição”, mas musicalmente ele já existia como fruto de muitas experiências na “noite”. Sidiel Vieira no baixo acústico e Vitor Cabral na bateria, são dois amigos de longa data e músicos de destaque do cenário brasileiro. Esse disco é uma fotografia dos anos passados tocando juntos. Escolhemos o repertório dentro do estúdio na passagem de som, juntamente com Cássio Ferreira que gravou duas faixas de saxofone. Foi tudo muito orgânico. Nada foi ensaiado ou arranjado previamente.

WG – Ano passado (2016), você lançou ‘Alfa‘, dos melhores lançamentos na seara do jazz brasileiro. Como foi o processo, desde o projeto inicial, financiamento e gravação?
LC – Obrigado pelo elogio, meu caro. Felizmente o CD Alfa está agradando bastante e estou muito contente com isso. Já tivemos excelentes reviews no mundo todo. Até a Universal Music gostou e quis lançar. Eu virei o primeiro artista de jazz deles no Brasil. Isso é bem significativo para um segundo trabalho de trio instrumental. Só posso agradecer e continuar trabalhando duro… rs.

Antes de gravar, fizemos alguns poucos ensaios das músicas que levei pro grupo. Foi tudo muito corrido, pois vida de músico de jazz no Brasil é assim, corrida. A venda de meu carro pagou parte dos custos. Peguei dinheiro emprestado, consegui parceiros para me apoiar, e assim o disco foi ganhando forma.

Sobre a gravação, chamei um amigo antigo que admiro muito, um engenheiro de som super preciosista e criterioso, Adonias Jr.. Ele levou todo o equipamento para o teatro Alfa, onde montamos som e luz no primeiro dia e gravamos nos dois dias seguintes. Foi tudo a ‘toque de caixa’, pois gravar num teatro dessa grandeza envolve muitos imprevistos, ainda mais com vídeo e foto. Tinha uma equipe de trinta pessoas ao todo. Foi um desafio logístico bem acima de minhas expectativas. Eu tinha que entregar o teatro às 21h da sexta-feira, dia 09 de janeiro. Terminamos o último take às 21h30! Eu chorava que nem criança de alegria e alívio, pois tinha dado tempo de gravar tudo! Ufa!

WG – Das dez músicas que compõem o repertório do cd, sete são autorais e três são clássicos nacionais: porque a escolha de “Outra vez”, “Inútil paisagem” de Jobim e “Rapaz de bem” de Johnny Alf?
LC – Diferente do meu primeiro álbum, onde a ideia era ser um registro de amigos tocando informalmente, no disco Alfa tudo foi milimetricamente pensado enquanto obra. Não tenho preferência por nenhum dos modelos, gosto dos dois. Aprecio essa diferença. Esses três temas foram escolhidos pra cumprirem três papéis:

Primeiro é de dar ao ouvinte melodias conhecidas, no meio de minhas composições inéditas.
Segundo, cada uma delas está em um ritmo específico tendo sido arranjadas para ocuparem um lugar pontual dentro do discurso musical que eu tinha pro álbum como todo.
Terceiro, a letra de cada um delas – que não estão presentes literalmente no álbum, já que nos apropriamos dessas peças de maneira instrumental – estão presentes indiretamente e fazem sentido dentro do mote filosófico que guia a obra.

WG – Duas composições, “O amor que se deu” e “Rute e sua grandeza” são nomeadas como Vassi, um dos ritmos primordiais da música afro-brasileira. Porque essa homenagem? Como ela se encaixa dentro dessas duas composições?
LC – O “Alfa” está baseado quase todo em ritmos brasileiros, com abordagens diversas. A música afro-brasileira é uma paixão e um objeto de estudo há alguns anos pra mim. Quando conheci Letieres da Orkestra Rumpilezz, ele me intensificou bastante isso e pude aprender muita coisa com a vasta pesquisa que ele tem sobre esse tema. Um dos ritmos que ele me ensinou foi o Vassi. Fiz alguns exercícios, e logo comecei a compor algumas peças nesse ritmo. Compus umas cinco de uma vez. Como agradecimento ao Letieres e também em homenagem ao Moacir Santos e ao Villa Lobos, resolvi colocar como nome secundário das peças “Vassi n. 1”, “Vassi n. 2”, etc, fazendo menção às “Coisas” e às “Bachianas Brasileiras”. O primeiro Vassi que fiz foi para minha minha mãe, dona Rute. O segundo para minha esposa, Marcela.

No “Vassi n.1” fui levado naturalmente para uma melodia maternal, umbilical, aquática. Você pode ouvi-la como valsa lenta ou como vassi, ou como os dois. A batida da clave como mantra indissolúvel por detrás cria uma atmosfera como se estivesse dentro da barriga gestadora, enquanto que as mudanças harmônicas suaves geram a sensação do colo materno. As modulações distantes que acontecem de vez em quando dão a sensação de ‘grandiosidade’.

Já no “Amor que se deu – Vassi n.2” a clave original do Vassi está alterada para 7/8, ou seja, já é uma roupagem contemporânea dessa clave. Minha esposa tem essa característica em sua personalidade, arrojada. A primeira voz começa no ostinato grave, onde se soma a clave da percussão e logo em seguida surge a terceira voz no médio do piano em contraste com as duas vozes anteriores. Todas as vozes tem seu ponto de criação a partir da clave do Vassi em 7. Depois a seção B, que minha esposa me sugeriu a ideia, é o desenvolvimento do finalzinho do tema da Seção A. Ele termina num precipício convencionado por todo o trio, outra característica de minha mulher, com seu sangue italiano ígneo…rs.

WG – Conte-nos um pouco do conceito e/ou processo de criação de “A dança”, “O grande azul”, “Valsa do amanhã”, “Alfa” e “Marcela”.
LC – A Dança” é a única canção do disco. Fiz letra e música aos dezessete anos para uma namorada da época. Antes de gravar, apelei para meu amigo e grande músico-letrista Cássio Carvalho, brasileiro que mora em Buenos Aires. Ele fez algumas melhorias em minha ingênua tentativa poética. As participações mais que especiais de Vanessa Moreno na voz e Cássio Ferreira no saxofone dão um respiro timbrístico estratégico no meio do disco. Eu queria uma voz suave para essa música e por isso escolhi a Vanessa, e ela me surpreendeu com sua alta musicalidade e afinação. Passamos apenas uma vez a música juntos, mas ela chegou no dia da gravação encarnada do espírito da canção. Foi impressionante a sua interpretação. O Cássio desfilou maturidade e elegância em seus comentários econômicos e precisos. Era exatamente o que eu queria para essa música.

O Grande Azul” é a melodia mais ‘brasileira’ do disco. Eu desejava ter uma peça com essas semicolcheias explícitas. O título vem da sensação que tenho quando medito ao ar livre. Aquele céu imenso que te devora e te acaricia ao mesmo tempo.

Valsa do amanhã” é uma peça piano solo jobiniana. Cromatismos e lirismos ao cair da tarde… Curiosamente é uma das faixas mais elogiadas.

Alfa”, nome homônimo ao disco, em homenagem à profunda experiência estética que tive no Teatro Alfa, gravando essa obra. Foram três dias memoráveis pra mim. É um Ijexá embuído do frescor de algo novo surgindo, com alegria e gratidão.

Marcela” é a segunda peça piano solo. Ela é a única música do disco que não tem nenhuma colcheia de improviso. Toda ela foi composta e ensaiada previamente. É raro eu gravar peças assim.  Eu compus ela numa sentada ao piano, de uma vez. Eu estava bem gripado nesse dia, e fui no piano me consolar. Em dez minutos ela estava pronta. Às vezes isso acontece, um momento de inspiração…, mas o processo de composição não pode depender desses momentos casuais.

WG – Nesse ano o trio irá cair na estrada para divulgar “Alfa“? Que outros projetos você pretende tocar adiante ou participar?
LC – Sim! Não só para divulgar o disco, mas também para trazer à tona as versões dessas músicas ao vivo. Nos shows, elas mudam bastante propositalmente. Se no disco escolhi fazer versões mais econômicas – já que o tema filosófico do álbum é a contemplação do vazio, e também por isso, escolhi gravarmos num teatro vazio – no show, o conceito é deixar a inventividade e espontaneidade fluírem à vontade. Estamos prospectando shows no exterior também. Estou muito animado com isso!

São muitos projetos na fila! Rs… O que já está em andamento agora é uma ampliação de minha atuação como educador musical. Leciono há mais de quinze anos e adoro. Estou montando alguns cursos com temáticas que há muito tempo tenho vontade de lecionar. Já estou dando pitadas em minhas redes sociais com #DicasJazzLC. Ao menos um dos cursos acontecerá também em meu canal do Youtube. Logo mais vem novidade por aí.