Jazz News

Novos Tempos Criativos: Antônio Carlos Bigonha

Novos tempos requerem atitudes corajosas e criativas. Como a que foi tomada pelo pianista Antônio Carlos Bigonha em plena pandemia, consolidou uma parceria com o violonista e arranjador Dori Caymmi para colocarem em pé o projeto ‘Saudades de Amanhã’. Como um processo de gestação o projeto levou nove meses para terminar e ficar disponível perante as redes e também em formato físico. Nessa entrevista, Bigonha aborda sua trajetória musical: formação inicial,  sua produção discográfica e fundamentalmente, detalha seu último trabalho sobre o ponto de vista do repertório, processo de produção e aponta o que poderá ser o desdobramento de ‘Saudades de Amanhã’.

Wilson Garzon – Mineiro de raiz, o piano foi sua primeira escolha? Quando formou, já tinha optado por trabalhar dentro do cenário da música instrumental brasileira?
Antônio Carlos Bigonha – Comecei o estudo de piano aos 7 anos, incentivado por minha mãe, professora de piano. O piano, comprado no Rio de Janeiro, chegou na nossa casa, em Ubá (MG), em cima de uma carroça e foi instalado na sala da frente. Desse dia em diante passei a ter contato diário com esta máquina maravilhosa, capaz de ser instrumento para expressar tanta beleza e tanto sentimento.

Tive desde cedo a formação do piano clássico, de tradição europeia. Somente mais tarde, já moço, voltei meu interesse para a música popular brasileira, de modo que a música instrumental representou para mim a possibilidade de conciliar a tradição da música europeia, majoritariamente instrumental, e a canção brasileira, sobretudo o choro e o samba.

WG – Azulejando (2004), você gravou com Toninho, Juarez e Chico: é um resgate/síntese da sua mineiridade?
ACB – De fato. Quando procurei o Toninho Horta para gravar o Azulejando eu estava à procura das minhas raízes, pois já morava em Brasília há muito tempo, um ambiente, à época, dominado pelo rock e pelo jazz. O convívio no estúdio Via Sonora, com Flávio Henrique, Juarez Moreira, Marina Machado, Chico Amaral, Maurício Freire e com o próprio Toninho foi muito legal, muito confortável e amigável e me remeteu à minha infância em Ubá, na casa de meus pais, no bairro Jardim Glória. Em seguida a participação no Festival BDMG de Música Instrumental me permitiu frequentar distintos cenários culturais em BH e desfrutar da hospitalidade dos mineiros.

 

 

WG – Urubupeba (2010), sua primeira parceria com Dori, representa a entrada dentro do universo jobiniano?
ACB – Comecei a ouvir Tom Jobim e Bossa Nova bem cedo e sempre me seduziu a mistura de música erudita e música popular que Antônio Carlos Jobim soube fazer tão bem. Quando conheci o Dori Caymmi, em uma produção na Biscoito Fino para a cantora Simone Guimarães, vi nele a possibilidade de realizar um projeto que seguisse no mesmo caminho do Maestro Soberano, procurando conciliar essas duas tradições: o clássico europeu e o nosso samba. Eu acho que o Dori é um genuíno representante dessas tradições, como compositor, violonista e cantor popular e como um refinadíssimo arranjador e orquestrador.

 

 

WG – Oito anos depois, com Anathema (2018) você monta um projeto baseado na simplicidade do trio. É também uma revisão da sua obra e ao mesmo tempo uma nova fronteira?
ACB – Depois de dois álbuns onde me coloquei como compositor de forma preponderante, dividindo o espaço solista com outros instrumentistas e com a orquestra, achei que estava na hora de me expor mais como pianista e extrair do piano, em conjunto com o baixo acústico e a bateria, um espectro maior de timbres e sonoridades. Isto sem falar na honra de contar com dois ícones da música brasileira, Jorge Helder e Jurim Moreira, o que permitiu revisitarmos o timbre de consagrados piano-trios brasileiros, como o Zimbo, o Tamba, Milton Banana, o Jongo só para citar alguns. O desafio a que nos propusemos foi fazer uma música instrumental segundo os parâmetros harmônicos e rítmicos do samba e do jazz, com arranjos elaborados, formas mais complexas do que as do Bebop e com uma melodia forte e cantábile.

WG – Saudades de Amanhã (2020) foi um projeto que foi desenvolvido a partir de sua parceria musical com o Dori? Ou já existia um esboço antes e foi adaptado?
ACB – Na verdade este projeto nasceu do isolamento provocado pela pandemia. Estávamos, desde março de 2020, nos falando quase diariamente ao telefone, sobre o vírus, a vida, nossas famílias e o assunto foi deslocando naturalmente para a música. E eu falei para o Dori de minha intenção antiga de fazer um álbum em homenagem ao Tom Jobim, com aquelas texturas orquestrais típicas da Bossa Nova e com um piano bem econômico, minimalista, estilo no qual o Antônio Brasileiro era mestre. E mandei para ele umas partituras e alguns áudios e o projeto nasceu desta troca de ideias. Os arranjos que ele escreveu para a orquestra e para o piano seguiram este conceito que sem dúvida está muito próximo do universo sonoro jobiniano.

WG – Das nove músicas que compõem o repertório do cd, seis são somente suas:‘Lullaby para meus Pais’ e ‘Valsa Imaginária’ são um passeio por um tempo nostálgico carregado de lirismo?
ACB – Este Lullaby já estava no Anathema, na versão original para o piano-trio. O Dori gostou do tema e propôs fazer um arranjo com uma estética diferente, contrastante, reforçando o caráter de valsa-jazz. Eu escrevi este tema para meus pais, tentando expressar este sentimento da meia idade, quando a gente passa a cuidar dos pais e a embalar para eles uma canção de ninar adulta. Eu acho interessante ouvir as duas versões e ver como é possível extrair significados musicais diferentes a partir de um mesmo tema musical. Ela é ao mesmo tempo uma canção de ninar e um agradecimento por tudo que fizeram e fazem por mim.

A Valsa Imaginária, inédita, foi escrita em compasso quaternário composto, 12/8, conferindo à valsa um andamento bem etéreo, bem distinto das valsas vienenses e bem ao estilo da valsa brasileira. O arranjo do Dori promove um diálogo que eu considero muito bonito entre o piano e a orquestra e reforça minhas referências aos compositores franceses, como Debussy e Ravel. Eu vejo todo este álbum como a trilha sonora de um filme que ainda não foi feito que provavelmente nunca será rodado e esta faixa, bem cinematográfica, é propícia para soltar a imaginação, como sugere o próprio nome da valsa, e construir o seu próprio drama.

WG – ‘Saudades de Amanhã’, pode ser uma trilha para um mundo distópico, onde o passado e o futuro se invertem de posição?
ACB – É exatamente isto. O sentimento de que algo se perdeu, de que havia um projeto de futuro que foi deixado no caminho e que merece ser resgatado. Paira no ar, na contemporaneidade, um sentimento fatalista, de que a deterioração da humanidade é inexorável. A saudade aqui se expressa na necessidade de retomar um projeto construtivo para o futuro, que proponha uma saída para a questão socioambiental, do momento de reivindicarmos nosso papel protagonista no concerto das nações, como um nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma, nas palavras do mineiro Darcy Ribeiro.

 

 

WG – ‘Sem dizer adeus’, ‘Paisagem da Memória’ e ’20 Rue Larrey’ foram concebidas para esse projeto ou já estavam compostas?
ACB – Paisagem da Memória também já está no álbum Anathema, em tempo de valsa, e neste novo arranjo surge com a cadência rítmica típica da Bossa Nova, em tempo de samba. 20 Rue Larrey foi um dos primeiros arranjos elaborados neste projeto e foi composta especialmente para integrar este repertório. Você percebe as citações que o Dori fez aos seus amigos arranjadores, como Dave Grusin, Henri Mancini, Johnny Mandel e Michel Legrand. Quando compus este tema pensei em homenagear estes grandes compositores que fizeram trilhas maravilhosas para cinema e o Dori captou perfeitamente este sentido ao elaborar o arranjo.

Sem Dizer Adeus, também inédita, é uma homenagem ao grande músico cearense, radicado em Brasília, Alencar 7 Cordas, que nos deixou prematuramente, aos 60 anos, em 2011. Ele formou muitas gerações de músicos em Brasília e era professor de harmonia e violão de meus filhos. Frequentava nossa casa todas as 2as. feiras e, depois das aulas, jantava conosco tornando-se um grande amigo da nossa família.

WG – Três músicas foram compostas em parceria: ‘Prólogo’ e ‘Epílogo’ com Dori e ‘Perto do Tom’ com Clodo. Foi também o encontro entre velhos amigos? Como foi realizado esse processo de criação?
ACB –Prólogo’ e ‘Epílogo’ que fazem a abertura e o encerramento do álbum, são na verdade o mesmo tema, com arranjos distintos. Sou amigo do Dori há mais de dez anos mas somente agora, com a pandemia, sentimos a necessidade e tivemos tempo para compor juntos. Quando o repertório já estava praticamente definido, senti falta de um tema que abrisse e fechasse o álbum e sugeri umas ideias musicais para o Dori. Ele complementou com as ideais dele e acho que esta música expressa  bem nossos sentimentos ao realizar este projeto e o contexto adverso em que ele foi concebido. Foi uma grande honra para mim esta parceria, pois considero o Dori um dos maiores compositores da música do Brasil, de todos os tempos. Espero que seja apenas a primeira e que venham outras.

 

 

‘Perto do Tom’, em parceria com Clodo Ferreira, expressa bem o sentido deste álbum, todo ele muito próximo do universo jobiniano e da Bossa Nova. É um samba com letra que aparece aqui apenas na versão instrumental. Nossa parceria já vem de algum tempo e já tinha gravado outro tema nosso, ‘Que Ironia’, no álbum anterior, o Anathema. Nosso trabalho é legal porque nós dois estamos livres para sugerir ideias melódicas e poéticas, de forma que ambos podemos nos expressar em letra e música. O Clodo é mais conhecido como letrista, em parcerias com Dominguinhos, Fagner, Evaldo Gouveia, entre outros, mas é também um compositor refinado, inclusive de música de câmara. E eu, que sou mais ligado na música instrumental, posso desenvolver minha veia poética.

WG – Pelo visto, as gravações foram uma grande operação de engenharia musical. E porque foi escolhida a Orquestra de Cordas em São Petersburgo? Quanto todo o material do cd foi editado e ficou pronto?
ACB – Sem dúvida, os recursos tecnológicos ajudaram muito. Fizemos todas as tratativas em relação ao repertório e aos arranjos pelo telefone e por e-mail: eu remetia minhas partituras para o Dori e ele ia devolvendo os arranjos, as grades de orquestra, também pela internet, para eu ler e estudar ao piano.
Paralelamente, o maestro Mário Adnet ocupou-se da cópia e transcrição das partituras escritas à mão pelo Dori, para o meio digital, com a utilização do software de edição música, de modo a podermos remeter os arranjos para a orquestra na Rússia.

 

 

Assim que os arranjos ficaram prontos e editados no Finalle, entrei em contato com o Jorge Helder e com o Jurim Moreira e reservei a agenda para gravar as bases, o que ocorreu no Estúdio Companhia dos Técnicos, no Rio, na última semana de agosto. Em seguida todo o material foi remetido para São Petersburgo, na Rússia, onde as cordas foram gravadas, em 5 de setembro, no estúdio da própria orquestra. Em outubro gravei o meu piano, em casa, com uma unidade móvel do Orbis Estúdio, em Brasília. Em novembro concluímos as mixagens e a masterização. O álbum foi lançado nas plataformas digitais em 17 de dezembro de 2020.

A primeira vez que ouvi falar da Orquestra de Cordas de São Petersburgo foi na casa de Paulo Jobim, no Rio de Janeiro, a quem fui visitar na companhia do Dori. Ele tinha gravado o álbum da Nana Caymmi com as canções do Vinícius e do Tom e queria mostrar o resultado para o Paulo Jobim. Todos ficamos impressionados com a qualidade da orquestra, arregimentada no Brasil pelo maestro Kleber Augusto. Uma das primeira ideias que tivemos neste projeto foi a de contar com participação daqueles russos no nosso álbum: como eles tocam bem a música brasileira!

WG – Você pretende divulgar / gravar em vídeo esse seu trabalho? Utilizar uma orquestra de cordas nacional ou fazer uma versão sem cordas?
ACB – Quando um trabalho é feito com a participação de uma orquestra, é natural que a gente faça uma versão reduzida para grupos menores ou até mesmo para piano solo, o que já estou elaborando. Mas, assim que a pandemia der uma trégua, e os teatros forem reabertos, tenho a intenção de fazer o concerto de lançamento do Saudades de Amanhã, com uma orquestra local, com os amigos Jorge Helder, no contrabaixo, e Jurim Moreira, na bateria, sob a regência do maestro Dori Caymmi. E, quem sabe, registrar este momento em vídeo para tornar disponível nas plataformas digitais. Estou muito satisfeito com o resultado que alcançamos no Saudades de Amanhã. Os arranjos do Dori estão muito bonitos e merecem ser ouvidos por toda a gente.

 

 

Compra e Links

https://tratore.com.br/um_cd.php?id=27309