Fonte da Saudade: Victor Polo segundo Victor Polo
O site Clube de Jazz tem o enorme prazer de abrir seu espaço para o talentoso violonista Victor que acaba de disponibilizar o seu segundo trabalho, ‘Fonte da Saudade’. Nessa matéria ele nos conta sobre a origem do projeto, processo de gravação e analiza detalhadamente cada uma das 12 músicas presentes neste álbum.
Como surgiu a ideia desse novo álbum?
Certa vez, ao enviar uma encomenda para o amigo e poeta Carlinhos Campos, em pleno período pandêmico de COVID-19, ele reparou que o nome da rua em que eu morava, escrita no pacote da encomenda, era “Fonte Da Saudade”. Me disse assim: “Poxa, sua rua tem nome de música!”. Fiquei com isso na cabeça, pois de fato é um nome muito bonito, poético e que, naquele momento de grande saudade que a pandemia causara, despertou-me sentimentos profundos. Dessa forma, nasceu o tema “Fonte Da Saudade”, uma composição delicada, carregada de nostalgia e melancolia, mas também com uma certa dose de esperança. E é ela que dá título a este meu segundo álbum solo com músicas de minha autoria!
Ele seria uma homenagem sua aos grandes mestres do violão?
Esteticamente, o álbum contempla um repertório fortemente calcado em formas de expressão da música instrumental brasileira, em especial na tradição do violão popular brasileiro que se consagrou mundialmente através de nomes como Garoto, João Gilberto, Baden Powell, Toninho Horta, Guinga, Raphael Rabello, Yamandu Costa, entre inúmeros outros. Com inspiração na obra desses grandes mestres, uma significativa parcela das composições possui elementos que remetem ao estilo desses reconhecidos violonistas brasileiros. Dessa maneira, há várias peças dedicadas diretamente a alguns desses instrumentistas, a exemplo de “Nos Tempos De Baden E João Gilberto”, “Garoto, Tom E Guinga”, “De Rabello A Hermeto”, “Prelúdio Aos Mestres Do Violão Mineiro” e “Aura” (dedicada a Ulisses Rocha).
Além de “Fonte Da Saudade” ser uma alusão ao sentimento que se fez presente em diversos momentos da pandemia, também pode remeter ao que sentimos quando pensamos que artistas geniais, a exemplo dos já citados e reverenciados Jobim, João Gilberto, Baden, Garoto e Rabello, já se foram.
Conte-nos um pouco sobre a participação do percussionista Léo de Paula nesse trabalho.
Em relação às parcerias, tive a alegria de contar com o grande percussionista Léo de Paula em metade das faixas desse novo trabalho. Léo é um músico maravilhoso, muito competente e espontâneo, de uma musicalidade singular. Ele tocou diversos instrumentos de percussão, demonstrando grande virtuosismo e criatividade! É surpreendente ver como sua musicalidade, através dos diversos timbres de seus instrumentos, foi capaz de criar ricas e variadas ambientações sonoras para os temas presentes no álbum.
E como foi o processo de gravação?
O álbum foi gravado no estúdio de música da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), através de projeto de extensão universitária. A captação ficou por conta do professor Daniel Tápia e do técnico Marco Cavalca, sendo a mixagem e masterização feita por Daniel Tápia. No disco, pude contar com a participação de Léo de Paula, percussionista, em metade das faixas. O álbum foi gravado em 2023 e lançado em janeiro de 2024. A arte da capa foi elaborada por Natália Gregorini.
Sobre as músicas
1. Nos Tempos De Baden E João Gilberto
Esse tema é um samba, no estilo bossa-nova, que remete aos tempos áureos destes dois mestres da nossa música: Baden Powell e João Gilberto. A música tem uma atmosfera bossanovística, com o ritmo e harmonias características do gênero, além de uma percussão leve (outra marca das clássicas gravações da bossa-nova). Na introdução e antes da improvisação acontece algo diferente do usual: há dois compassos em 7/8, um tipo compasso quebrado que difere do compasso binário (2/4) característico do samba e da bossa-nova. Após o tema, há uma seção de improvisação em que aplico recursos rítmicos com acordes, que remete bastante à estética de Baden Powell. Baden foi um revolucionário no que diz respeito à rítmica da mão direita do violão, de modo que inovou tecnicamente e adaptou muita coisa do universo dos instrumentos da percussão afro-brasileira ao violão.
2. Fonte Da Saudade
Esta é a faixa título. Certa vez, ao enviar uma encomenda para o amigo e poeta Carlinhos Campos, em pleno período pandêmico de COVID-19, ele reparou que o nome da rua em que eu morava, escrita no pacote da encomenda, era “Fonte Da Saudade”. Me disse assim: “Poxa, sua rua tem nome de música!”. Fiquei com isso na cabeça, pois de fato é um nome muito bonito, poético e que, naquele momento de grande saudade que a pandemia causara, despertou-me sentimentos profundos. Dessa forma, nasceu o tema “Fonte Da Saudade”, uma composição delicada, carregada de nostalgia e melancolia, mas também com uma certa dose de esperança.
Essa música é dedicada ao grande violonista Ulisses Rocha. Ulisses foi meu professor na época da minha graduação em música na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e já era seu fã antes mesmo de entrar na faculdade. Ele é um compositor maravilhoso, amplamente reconhecido como um dos grandes compositores brasileiros para violão. “Aura” tem uma atmosfera que remete ao seu estilo de composição, com um discurso mais aberto, que não se enquadra em um gênero ou ritmo específico, sendo essa uma marca constante do trabalho do Ulisses. Além disso, a maior parte dela foi construída sobre o compasso de cinco tempos, trazendo mais à tona essa característica aural, menos enraizada, metaforicamente falando. Em relação à instrumentação, além do violão há percussão, com destaque para o par de muringas que se faz presente na maior parte da música.
4. Prelúdio Aos Mestres Do Violão Mineiro
Essa pequena peça é dedicada a três grandes violonistas mineiros: Chiquito Braga, Toninho Horta e Juarez Moreira. Esses três músicos são reconhecidos como sendo figuras basilares no que diz respeito a uma determinada linguagem violonística de Minas Gerais. Essa linguagem compreende, dentre outros aspectos, um tratamento harmônico muito sofisticado, sendo essa uma das principais características do trabalho desses violonistas. Curiosamente, embora o título faça referência aos mestres do violão mineiro (que também poderiam ser os mestres da guitarra mineira), essa música foi gravada à guitarra elétrica.
Trata-se de um baião, com muita energia. Moro há um ano e meio na cidade de Vitória/ES (vim para cá em virtude de aprovação em concurso para professor de violão e guitarra da FAMES – Faculdade de Música do ES) e aqui há uma rua no centro da cidade, rua Sete de Setembro, ou simplesmente rua 7, que é amplamente conhecida pela sua boêmia. Dessa forma, essa música enérgica é uma leitura em forma de sons desse emblemático e importante espaço da cidade. Nessa faixa também destaco a percussão, que contribui para criar atmosferas diversas ao longo da música.
6. Brumas No Horizonte
Essa música é uma valsa com ares de mistério e melancolia. Foi feita no primeiro ano da pandemia de covid, num período de grandes incertezas quanto ao futuro, por isso o título “Brumas No Horizonte”. Da mesma forma que na música anterior, utilizo um recurso bastante comum no universo do violão: afinar a sexta corda, a mais grave, em ré (normalmente se afina em mi). Há algo curioso no final dessa música: no último acorde do violão, tenso e enigmático, há uma sobreposição de um efeito que remete às brumas mencionadas no título. Trata-se de um outro acorde gravado à guitarra, com um efeito de reverb de modulação. Esse recurso é o que marca a transição para a próxima música, pois há essa emenda entre elas, como se fossem uma única peça.
7. Alvorada
Aqui temos, de certa forma, uma resposta, uma continuação em relação à “Brumas No Horizonte”. “Alvorada” é uma música muito delicada, um recado de esperança, de que as brumas podem se dispersar e que pode surgir uma linda alvorada. Simbolicamente, era meu desejo naquele momento diante da triste e complicada situação pandêmica que o mundo enfrentava, sobretudo o Brasil. Como dito, a música começa com o efeito da guitarra, em emenda com a faixa anterior. Esse efeito aparece também no finalzinho, no último acorde.
É a composição mais recente do álbum, feita no período de gravação. Como eu havia dito, moro em Vitória/ES, uma cidade litorânea cuja parte urbana era constituída inicialmente por mangues. Dessa forma, com inspiração no lugar em que vivo atualmente, nasceu “Manguezal”, uma valsa que alterna momentos de alegria, mistério, tensão e alívio. Esteticamente, ela se aproxima da música “Aura”, sobretudo por contar com o mesmo par de moringas como instrumentos de acompanhamento rítmico.
10. Garoto, Tom e Guinga
Mais uma homenagem a grandes mestres da música brasileira… Esse choro é dedicado a Garoto (Aníbal Augusto Sardinha), multi-instrumentista de cordas e compositor, Tom Jobim, nosso grande Tom e ao Guinga, compositor e violonista que é uma verdadeira joia rara. Nessa música, tento inserir elementos que remetem ao estilo desses três grandes compositores. Um exemplo emblemático disso é a frase que finaliza a faixa, construída com a escala de tons inteiros. Trata-se de uma citação da mesma frase encontrada na clássica peça para violão intitulada “Jorge do Fusa”, de Garoto. Além disso, o choro é um dos elementos comuns a esses três grandes músicos brasileiros, de maneira que ambos compuseram diversos choros maravilhosos.
Junto com “Prelúdio Aos Mestres Do Violão Mineiro” forma a dupla de músicas gravadas à guitarra (em todas as outras toquei violão). Essa composição remete ao início do meu período em Vitória: havia chegado na cidade há poucas semanas, em um lugar totalmente desconhecido, com um emprego novo e longe de amigos queridos e familiares. Mesmo com toda a alegria por estar em um novo cargo, conquistado via concurso, sentia muita solidão naquele momento. Assim, “Solitude” é um retrato dessa época.
12. A História Que Fazemos Hoje
Essa música é dedicada a um grande amigo chamado Ulisses. Foi feita após uma visita dele à cidade em que eu morava, Americana/SP. Passamos alguns dias muito agradáveis, conversando, comendo, bebendo e dando muitas risadas. Quando ele foi embora, peguei o violão e compus essa peça. Musicalmente, ela é construída sobre um mesmo motivo melódico, que vai sendo repetido e variado em diferentes tonalidades e sobre diferentes tramas harmônicas (algo similar também ocorre em “Fonte Da Saudade”). Ulisses, esse meu amigo, é professor de história, por isso o título “A História Que Fazemos Hoje”. Além disso, é emblemático encerrar o disco com essa faixa, pois, simbolicamente, mesmo com toda “Fonte Da Saudade”, o hoje também importa.