Mauro Senise toca Gilberto Gil: Cd/Dvd ‘Amor até o fim’
Aprendendo a só ser (ROBERTO MUGGIATI)
Mauro Senise completa 66 anos em 18 de maio e 44 de carreira em 2016. Ele acha que começou a fazer música um pouco tarde – depois dos vinte – mas, com sua garra e os mestres que teve, superou rapidamente todo atraso: Odette Ernest Dias na flauta e Paulo Moura no saxofone. Mauro está no auge de sua arte e fez do saxofone uma extensão do seu corpo, dedos ágeis acionados pelo cérebro esperto. Não é uma qualidade que caiu do céu, mas o fruto de trabalho duro. Vou contar um episódio que revela a dedicação de Mauro. Na década de 1980 estudei saxofone com ele, em seu apartamento no Horto. Editor da Manchete, tendo de colocar uma revista nas bancas toda semana, combinei um horário madrugador: às terças, às oito da matina, quando a revista já havia fechado. Chegando ao prédio, já da rua eu ouvia o Mauro praticando. Tocava o interfone, ele afastava a boca do saxofone o suficiente para ouvir meu nome e liberar a portaria. E voltava imediatamente a soprar, enquanto eu subia as escadas até o terceiro andar, coisa de menos de um minuto. Eu tocava a campainha, o Mauro ainda se demorava no sax até os últimos compassos da parte.
Em Amor até o fim, ele distribuiu com um equilíbrio notável as canções e os instrumentos. Quatro para a flauta, quatro para o sax soprano e quatro para o alto, ficando o piccolo para a faixa final. Não podia haver melhor adequação. A flauta desce inzoneira a Ladeira da Preguiça, com arranjo e piano sóbrios de Adriano Souza; explora todo o lirismo da canção à amada, Flora; esgota o potencial melódico e harmônico de Amor até o fim, arranjo de Roberto Araujo, que Gil compôs numa fase pré-Tropicália em 1966 sob a influência da bossa; e se insinua sereníssima em Eu vim da Bahia, que Gil compôs em 1965, quando sabia que iria trocar a Boa Terra pelo Sul Maravilha. Formado em administração de empresas, foi trainee de terno-e-gravata na Gessy-Lever em São Paulo; depois se mudou para a Philips no Rio. Eu vim da Bahia é sua despedida do solo natal (que lhe deu régua e compasso) e a flauta de Mauro traduz admiravelmente essa declaração de amor de Gil.
O sax soprano, com sua sonoridade anasalada de oboé, reforça em Drão a beleza da melodia de Gil, fazendo filigranas em torno dela, quase sem improviso; desfila altaneiro em Procissão, numa atmosfera de forró criada pelo arranjo de Kiko Horta, que também toca acordeão, e cadenciada pelo triângulo de Mingo Araújo; Mingo e Kiko pontificam também em Refazenda, arranjo genial do pianista Gabriel Geszti, – segundo Mauro, “dessa nova geração que já mostra a que veio” – com o soprano escandindo esse clássico de Gil, parece até que ouvimos as palavras: “Abacateiro acataremos teu ato/Nós também somos do mato como o pato e o leão/Aguardaremos brincaremos no regato/Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração.” É como se, até mesmo por um processo inconsciente, Mauro seguisse o Axioma de Lester Young: o Pai do Cool achava que um instrumentista só podia interpretar bem uma canção se conhecesse sua letra a fundo, por isso viajava sempre com uma vitrola portátil e discos do Sinatra. Sentimos também a presença da letra no soprano de Oriente, um arranjo finíssimo de Jota Moraes, que toca o vibrafone.
A voz principal de Mauro Senise é o saxofone alto. O timbre cristalino foi aperfeiçoado ao custo de muitas horas diárias de estudo, mas ele sabe também modular o sopro, acentuando uma nota aqui, entortando uma frase ali – enfim, usando todo o arsenal de efeitos sonoros dos grandes jazzistas. É o que ouvimos já na primeira faixa, Mancada, um samba gostoso do qual Mauro extrai toda a malemolência. O alto costura também com lirismo contido A linha e o linho, um belo arranjo de Cristóvão Bastos, que faz ainda o solo de piano. E aparece meditativo em Se eu quiser falar com Deus, um arranjo do parceiro de mais de 25 anos, Gilson Peranzzetta, que comparece também ao piano. Nessa faixa, o solo de contrabaixo é de Zeca Assumpção, companheiro de Mauro dos tempos do Academia de Dança, o trio que acompanhava Egberto Gismonti. (Zeca e Gilson estão ainda em Mancada e Eu vim da Bahia.)
O sax alto faz também a melodia de Preciso aprender a só ser, faixa que tem a presença do próprio Gilberto Gil, recitando a letra. Ao reverter o conceito da canção de fossa de Marcos e Paulo César Valle, Preciso aprender a ser só (um hit de Maysa e Elis), GG faz uma verdadeira declaração de princípios existencial, o que pode ser considerado a sua Summa Philosophica. No primeiro minuto e meio, Gil declama apoiado na delicada tessitura de sax e vibrafone. Entra então Mauro com o alto, fazendo a melodia com extrema simplicidade, o que é um assombro, algo na linha do “menos é mais”; e Jotinha, arranjador da faixa, se lança num emocionado improviso ao piano, antes da volta do tema.
Outro reencontro importante é o de Mauro com o violonista Romero Lubambo, que mora em Nova York e participou especialmente dessa gravação, com solos geniais em Amor até o fim e Eu vim da Bahia. Romero participou da formação embrionária do Cama de Gato, grupo que marcou fundo a carreira der Mauro. (Os dois não gravavam juntos há vinte anos, desde o álbum Paraty.) Vale mencionar ainda a guitarra exuberante de Leonardo Amuedo – uruguaio radicado no Rio – em Oriente e Expresso 2222. Como a numerologia passeia também por esse álbum – 66 anos de vida, 44 de carreira, 13 canções (xô, superstição!) – Mauro escolheu como saideira o Expresso 2222, puxado num clima arretado de forró. É a única faixa em que ele toca piccolo (o chinesinho querido) e faz uma citação pontualíssima aludindo a sua relação com Gilberto Gil: o tema sonoro do Sítio do Picapau Amarelo, de cuja gravação original ele participou ao lado de GG, tocando justamente piccolo.
Um conselho eu dou a todos. Deixem a crise pra lá e vamos correr atrás do Expresso 2222, a composição que nos leva “até onde essa estrada do tempo vai dar”. Vamos somar mais cem anos a nossas vidas, em desabalada carreira para a Utopia. Atrás do 2222 só não vai quem já morreu…