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À Deriva: muito além do Muro

Como acompanho o trabalho do quarteto À Deriva desde o começo pelo meu trabalho com o site Clube de Jazz, considero que é um dos mais consistentes e inovadores combos dentro do cenário da música instrumental brasileira. Ele é formado por Beto Sporleder (sax tenor e soprano), Rui Barossi (baixo acústico, elétrico e guitarra), Daniel Muller (piano elétrico e acústico, sintetizador e acordeão) e Guilherme Marques (bateria e percussão).

A discografia do quarteto abrange quatro cds: À Deriva (2006), À Deriva II (2008), Suíte do Náufrago (2010),  Mobile (2013) e um trabalho compartilhado com o músico Cau Caram, ‘De Senhores, Baronesas, Botos, Urubus, Cabritos e Ovelhas‘. Tomo a liberdade e arrisco a dizer que nessa trajetória existem duas fases distintas:
a primeira, composta pelos discos I e II, onde estão presentes a proposta de linguagem do grupo baseada na improvisação e na liberdade de romper as fronteiras estéticas.
segunda, composta por Suite do Náufrago e Mobile já representa um outro instante da linguagem do grupo, agora com a preocupação de estruturar as composições dentro de um roteiro, aumentando a interação com o ouvinte.

Agora, em 2016, o quarteto apresenta seu mais novo trabalho: O Muro Rever O Rumo. E o Clube de Jazz, apresenta uma entrevista com os integrantes do À Deriva sobre esse trabalho, inovador, instigante e que se situa muito além das fronteiras.

Beto Sporleder, Rui Barossi, Daniel Muller e Guilherme Marques.
Beto Sporleder, Rui Barossi, Daniel Muller e Guilherme Marques.

Wilson Garzon – Como foi feita a proposta para esse novo trabalho? Foi um projeto de interação entre música e teatro? Havia a possibilidade de também virar um dvd?
À Deriva – Nós não diríamos que nesse novo CD há exatamente uma mudança de fase, por considerar que ele não representa um caminho que necessariamente vai estar presente nos próximos CDs. Existem, sim, novos elementos no estilo, porque o grupo tem trilhado, desde muitos anos, um caminho em que a abertura para o diálogo com outras linguagens artísticas é cada vez maior. E, sim, isso vem transformado nossos interesses e nossas intensões artísticas de uma forma provavelmente irreversível! Mas, ainda assim, o interesse pela improvisação, pela criação de situação de interação improvisada entre os músicos, a busca de liberdade para romper as fronteiras estéticas, o intuito de estruturar as composições cada vez mais, interagir cada vez mais com o ouvinte, tudo isso permanece no estilo do grupo! E, além do mais, nada impede que um CD que lancemos adiante se assemelhe mais aos primeiros que a este último.

Esse novo trabalho nasce da parceria com a Cia de teatro LCT, com quem trabalhamos desde 2012. Nós participamos do processo criativo deste trabalho desde o princípio até o fim, em uma proposta bastante incomum: cena e música justapostas, sem que uma seja mais importante que a outra. De forma que o que elaboramos não é uma trilha submetida a uma peça. Havia um momento no espetáculo em que os atores saíam do palco e nós tocávamos uma suíte que durava 20 minutos aproximadamente. É uma das faixas do CD. Nós ficamos muito animados com o resultado do trabalho. Enxergamos inclusive grande potencial do material musical criado entendendo-o de forma autônoma, ou seja, separada da encenação.

Foi então que projetamos o CD. Obtivemos financiamento da Lei de Fomento da Prefeitura de São Paulo e, então, nos reunimos e fizemos um novo momento de criação, para adaptar o material ao formato CD. Nunca pensamos no formato DVD. Primeiro porque não achamos que seja da natureza do espetáculo que criamos junto à LCT, que é, a princípio, um material cênico, em que a presença no tempo e no espaço é muito importante (algo se perde, disso, em um registro em vídeo). Aliás, há boas filmagens da peça. Em duas versões.

WG – O Muro rever o Rumo:  tem por base o Muro de Berlim? Daí a presença do teatrólogo Heiner Muller?
ÀD – Não pensamos diretamente no muro de Berlim. Heiner Muller, em especial sua peça Mauser, mas também a biografia do autor alemão, é o tema central do espetáculo que fizemos com a Cia LCT. Nós estudamos profundamente essa peça e também a biografia e o pensamento de Heiner Muller e produzimos a partir dessa pesquisa. Compusemos música inspirados pelo tema e também pelas estruturas formais que o autor imprimiu na peça teatral.

Então o tema da revolução, os paradoxos implicados na ação revolucionária, sobretudo com relação aos dilemas éticos ligados ao ato de matar pela revolução, e reflexões com relação à atualidade do pensamento revolucionário e com relação ao momento político que estamos vivendo, foram cruciais para os resultados que alcançamos.

WG – As onze composições são todas produção coletiva do quarteto? Os títulos já faziam parte do roteiro da peça e/ou vcs tb participaram?
ÀD – As composições partem de ideias individuais trazidas por cada um de nós – fragmentos melódicos, progressões harmônicas, texturas, timbres e estruturas mais formais com orientações específicas para cada. Em geral estas ideias são apresentadas, discutidas e desenvolvidas coletivamente em termos de arranjo. Um exemplo deste tipo de procedimento neste disco é a suíte O açu lover (ad sogi) mini soa: etrom!?, que é uma colagem de temas trazidos por diferentes compositores e organizados coletivamente com sugestões e ideias de todos.

As composições foram “batizadas” à posteriori. Durante os ensaios e temporada em que apresentamos o espetáculo, nos referíamos às músicas usando nomes que faziam referências às cenas, aos atores e etc. Não havia nomes neste sentido formal de um disco. Os nomes surgiram numa reunião, durante o processo de edição e mixagem do material musical, ou seja, foram produzidos à posteriori. Em sua maioria são fragmentos do texto de Heiner Muller.

WG – Como vcs poderiam fazer uma ‘leitura’ para que os ouvintes pudessem melhor interpretarem o conteúdo do CD?
ÀD – Não achamos que seja necessário nenhum tipo de “chave” de interpretação para acessar o conteúdo dos nossos discos, sempre estamos procurando enxergar tudo que fazemos de maneira poética, não cartesiana. Nós sempre estivemos abertos (e até mesmo buscando) a trocar e dialogar com muitos estilos diferentes de música e mesmo com outras linguagens artísticas. Assim, ao longo dos anos a nossa música se nutriu das mais diversas influências, como o jazz europeu, o free jazz, a música brasileira, a improvisação livre, mais recentemente a música erudita contemporânea e o rock; o teatro, o cinema, a literatura, e assim por diante. Então talvez esse novo disco seja o resultado de toda essa amálgama de referências e influências colocadas para dialogar com um material bem específico (Mauser e Guerra sem batalha, de Heiner Muller) e com uma cia. de teatro.

WG – Depois desse trabalho inédito para o grupo, vcs pensam em continuar nessa fenda aberta e trilhar pelos campos do vídeo, literatura e artes?
ÀD – Esta tem sido uma tendência de nossa produção artística mais recente. Construímos parcerias interessantes com artistas de outras áreas – teatro, dança, cinema, vídeo, etc. Isso não significa um abandono de nosso percurso enquanto quarteto de música. Temos material para mais dois discos, nos moldes do que são nossos primeiros cinco CDs. Mas sem dúvida este novo trabalho representa uma mudança significativa em nossa produção artística que deve se acentuar nos próximos anos, sobretudo pelo fato de encontrarmos nesses diálogos com outras artes um campo fértil para experimentações. É um lugar em que sentimos nossa produção oxigenada, estimulada e onde percebemos muitas ressonâncias para o nosso trabalho, tanto do ponto de vista artístico quanto do ponto de vista comercial.

Atualmente estamos envolvidos em um novo trabalho com a Cia. Les Commediens Topicales que tem como ponto de partida Baal, a primeira peça de Bertold Brecht de 1919. Estamos compondo muita coisa nova estimulados por esta parceria e por tudo que cerca esta peça, a atualidade de sua discussão e nosso tempo no mundo atual. Temos a sensação de que trabalhar nesta fenda que você citou (em contato com outras artes) potencializa nosso discurso musical, dá mais força para lidarmos com as complexidades que nossa época nos impõem.

WG – Reflexão: o futuro do improviso é o caminho / destino do grupo?
ÀD – A improvisação sempre foi um dos focos principais do nosso trabalho ao longo dos anos. Da improvisação modal à improvisação livre passando pela improvisação tonal o grupo já experimentou muitas coisas, inclusive misturar diferentes caminhos de improvisação na mesma peça. Então achamos que como parte fundamental da pesquisa do grupo ela sempre será parte essencial de quaisquer caminhos que venhamos a trilhar, mas sempre buscando estar livres de qualquer tipo de amarras que nos impeçam de navegar livremente através dos mais diversos caminhos e estéticas que nos interessem.

 

Site

www.musicaderiva.com.br