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Ana Zingoni lança um álbum precioso: ‘Campo di Mele’

Antônio Carlos Miguel

Terminada a audição desse que é o primeiro álbum solo de Ana Zingoni, uma pergunta é inevitável: aonde vinha se escondendo nesses anos todos a inventiva guitarrista?

Cercada de alguns dos melhores instrumentistas em atividade no Rio, com arranjos luxuosos de Vittor Santos, em “Campo di Mele“, Ana recria com personalidade oito temas. O repertório passa por clássicos da MPB e da canção internacional que também foram adotados por cantores e instrumentistas do jazz mundo afora. São sete faixas instrumentais e, fechando o repertório, a bossa-novista “Caminhos cruzados“, esta, interpretada por Ana segundo a escola joão-gilbertiana, voz afinada e límpida, sem vibratos, a serviço da sofisticada canção de Tom Jobim e Newton Mendonça. Estilo que também marca o de sua guitarra, pura, sem distorções, remetendo à escola de jazzmen como Charlie Christian, Barney Kessel e Wes Montgomery.

Campo di Mele” (o título é uma homenagem ao lugarejo na Itália onde nasceu o avô paterno da musicista) abre com um samba-canção clássico, “Vida de bailarina” (Dorival “Chocolate” Silva e Américo Seixas), lançado em 1954 por Ângela Maria e, 18 anos depois, “relançado” por Elis Regina. Ao lado de Ana está a cozinha cordon bleu que gravou em todo o disco, Jorge Helder (contrabaixo) e Jurim Moreira (bateria), e ainda o guitarrista Ricardo Silveira e um naipe com instrumentos de sopros que são mais usados em grande orquestra, oboé e corn inglês (Francisco Gonçalves) e clarinete e clarone (Cristiano Alves). O efeito conseguido por Ana e o arranjador Vittor Santos é evocativo e atemporal.

 

O terceiro tema brasileiro no álbum, “Manhã azul“, tem a assinatura de Mú Carvalho, companheiro de Ana na vida e na música. O tecladista d’A Cor do Som já tinha incluído a composição em dois discos solos, “Óleo sobre tela” (2005) e “Ao vivo” (2008) – neste, por sinal, com participação de Ana na guitarra. Para essa terceira versão, Vittor usou um naipe de cordas (quatro violinos, duas violas e um violoncelo), mais contrabaixo, bateria, o teclado de Mú e a flauta de Daniel Garcia.

Comentando o repertório a partir da nacionalidade dos compositores, a França vem em seguida, com dois artistas que rodaram o planeta com suas obras. “La Javanaise” é um dos maiores sucessos de Serge Gainsbourg, músico, compositor, cantor, ator, diretor, poeta que transitou com liberdade e invenção por chanson, jazz, pop,reggae, soul. Lançada em 1963 por Gainsbourg e Juliette Gréco, nessa versão de 2021, um quinteto brasileiro mantém o aliciante exotismo do tema, com a melodia introduzida e solada por Ana na guitarra e em seguida pelo clarinete de Cristiano Alves, sobre a base de órgão (Mú), contrabaixo (Helder) e bateria (Jurim).

Enquanto “The good life” é composição do cantor, guitarrista (e também ator) francês Sacha Distel. Ela foi lançada em 1960 como “La Belle vie“, e, logo em seguida, ganhou letra em inglês de Jack Reardon, virando um standard, regravado por gente como Tony Bennett, Dionne Warwick, Julie London e Ray Charles. Nas mãos (e boca) do quinteto de Ana – completado pelo trombone de Vittor Santos, ao lado de Mú (Wurlitzer), Helder (contrabaixo) e Jurim (bateria) -, continua como trilha perfeita para a vida que pode (e deve) ser boa e bela.

O britânico e universal Charlie Chaplin criou e lançou o tema romântico do clássico do cinema mudo “Tempos modernos” em 1936. A partir de 1954, quando ganhou o título e a letra em inglês de John Turner e Geoffrey Parsons, e a primeira gravação cantada, por Nat King Cole, “Smile” se tornou um dos maiores sucessos do pop, regravado por centenas de intérpretes, incluindo o Rei do Pop Michael Jackson. Aqui, sem a letra, a força e a beleza da composição de Chaplin se garantem, em arranjo no qual a melodia é “cantada” por Ana (guitarra) e Antonella Pareschi (violino), junto ao grupo de base e o naipe de cordas.

O naipe de cordas também embala a composição mais antiga selecionada, “Time on my hands” (Vincent Youmans, Harold Adamson e Mack Gordon). Esse standard deu as caras num musical que estreou nos EUA em 1932 e, desde então, tem sido gravado e regravado por gente de diferentes áreas, de teatro, pop, jazz ou do instrumental brasileiro como Ana.

Uma dupla italiana, Bruno Brighetti e Bruno Martino, assina a canção que faltava. É a encantadora “Estate”, que deve muito de sua fama mundial a João Gilberto, após ser incluída pelo cantor e violonista no álbum “Amoroso”, 1977. Ele tinha conhecido a música 15 anos antes, na voz de um dos autores, Bruno Martino, durante temporada que fez no verão de 1962 em Viarregio. O arranjo de Vittor Santos para a gravação de Ana Zingoni, com naipe de cordas e grupo de base, realça as belezas da melodia e também homenageia o orquestrador da versão de João, Claus Ogerman.

 

Antes de me despedir, e deixar os leitores viajarem por “Campo di Mele”, uma googleada permite responder à pergunta que abre esse texto. Ana Zingoni começou a fazer música no fim da adolescência. Por dois anos, estudou guitarra e canto na Berklee College of Music, nos EUA. De volta ao Brasil, participou, como vocalista, de discos de Fagner, Zizi Possi, Adriana, Conrado e Ginga Pura, e de shows de Zé Renato e Paulinho Tapajós, entre outros. A guitarrista também gravou em disco da cantora Ana Carolina.

Em parceria com Mú, Ana dividiu, em 2011, o CD “Voo silencioso“, um dos muitos discos gravados no estúdio Boogie Woogie, que o casal fundou em 1998. Também no Boogie Woogie, ela trabalhou na produção musical das trilhas sonoras dos filmes “Navalha na carne” (direção de Neville de Almeida), “O noviço rebelde” (de Renato Aragão), “Xuxa requebra” e “Xuxa pop star” (ambos dirigidos por Tisuka Yamasaki) e ainda na coleção “Bíblia Sagrada” (lançada pelo selo Gol Records, seus 24 volumes venderam de 15 milhões de CDs).

Como se percebe, Ana Zingoni, que agora conhecemos em “Campo di Mele”, sempre andou bem escondida e bem acompanhada.