Anat Cohen e Marcello Gonçalves recriam “Coisas” de Moacir Santos
Luiz Orlando Carneiro, Jornal do Brasil, 26/11/2016
No início do ano passado (18/4), comentei nesta coluna que Anat Cohen – a mais brilhante estrela do clarinete no atual céu do jazz – retomava o seu
“jeitinho brasileiro” com o álbum Luminosa (Anzic/Sunnyside), uma sessão de estúdio de
2013, que tinha como base um quarteto integrado por Jason Lindner (piano), Joe Martin (baixo) e Daniel Freedman(bateria).
Em algumas das 11 peças de Luminosa participaram, como convidados, os brasileiros-novaiorquinos Romero Lubambo(guitarra) e César Garabini (violão de sete cordas) – este último num quarteto batizado por Anat de Choro Venturoso (Vítor Gonçalves, acordeão; Sérgio Krakowski, pandeiro), que gravou as faixas Ternura, de K.Ximbinho, e Espinha de bacalhau, de Severino Araújo.
Lembrei então que quando conheci a israelense-novaiorquina Anat Cohen, num dos saudosos festivais de jazz de Ouro Preto, impressionaram-me não só a técnica e a criatividade que exibia ao soprar o clarinete (ou o sax tenor), mas também o português bem fluente que fazia questão de “praticar”, conversando e tocando com o seu grupo de choro, com Lubambo, com Duduka da Fonseca e outros músicos brasileiros radicados em Nova York.
Nestes últimos cinco anos, a teenager que chegou a Boston em 1996 para completar os seus estudos no Berklee College of Music, tem conquistado o primeiro lugar, na categoria dos clarinetistas, no referendo dos críticos da revista Downbeat, à frente dos há muito reverenciados Paquito D’Rivera e Don Byron.
Anat Cohen retomou publicamente o seu “jeitinho brasileiro”, e vem de concluir um giro pelo Brasil (Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizionte e São Paulo), na companhia do excepcional violonista (de sete cordas) Marcello Gonçalves. O objetivo da turnê foi o lançamento do CD Outra Coisa/The Music of Moacir Santos (Anzic Records), que foi gravado, no Rio, em janeiro deste ano pelo duo, e que já está à venda nas lojas virtuais.
O violonista e arranjador das 12 peças de Moacir Santos (1926-2006) selecionadas pelo duo de virtuoses assim sintetizou a concepção deste notável registro musical:
“A conexão entre Moacir e o violão tem estado na minha mente desde que ouvi Baden Powell tocar a música de Moacir Santos no álbum Baden Powell Swings with Jimmy Pratt. Sempre amei os ricos sons orquestrais das composições de Moacir, mas não imaginava como transferir o som orquestral que ouvia para o meu violão. No ano passado, lendo as partituras de Moacir diretamente do seu songbook, fiquei surpreso ao descobrir que esse som cabia perfeitamente no violão de sete cordas, como se a música tivesse sido composta para o instrumento.
Passei um ano trabalhando nesse repertório e, quando Anat visitou o Brasil, mostrei-lhe os arranjos nos quais estava trabalhando. O clarinete foi o primeiro instrumento de Moacir. Se suas composições soavam de tão bem no violão, eu só pude imaginar que deveriam soar ainda mais belamente com Anat no clarinete”.
Ainda segundo o violonista Marcello Gonçalves, o CD Outra Coisa documenta “aqueles dois dias felizes no estúdio” (em janeiro último).
Metade das faixas do álbum tem menos de quatro minutos de duração: a faixa-título (3m20), Amphibious (3m45), Coisa nº 1 (3m05), Coisa nº 6 (3m50), Coisa nº9 (3m45) e Carrossel (1m08). As de duração mais longa são Maracatucutê (5m25) e Paraíso (4m45). Não há solos extensos, nem de Anat, nem de Marcello.
Os dois grandes músicos dispensam maiores demonstrações de virtuosismo, e criam uma coleção de peças em que o swing do jazz e o “balanço” do chorinho ou do maracatu animam os arranjos do violonista, numa linha contrapontística que lembra aquela estética depurada do celebrado trio do clarinetista Jimmy Giuffre com o guitarrista Jim Hall, lá se vão mais de 50 anos.