Hermeto Pascoal lança disco dedicado à mulher
Mariana Peixoto, jornal Estado de Minas, 09/06/2024
Hermeto Pascoal, então um adolescente que havia migrado do interior de Alagoas para tocar sanfona no Recife, morava numa casinha de frente para a residência do violonista Romualdo Miranda, seu companheiro na Regional do Comércio.
Todo dia tinha ensaio na casa de Miranda. “Um dia perguntei: ‘Quem é essa moça, essa morena bonita da foto?’”, ele conta. Era Ilza da Silva, a filha do violonista, naquele momento visitando parentes no Rio de Janeiro. “Não falei de namoro nem nada. Era curiosidade normal.” Até que, um dia, Ilza voltou, e os dois foram devidamente apresentados. “Ela perguntou pro pai dela: ‘Por que ele não abre os olhos?’”
Hermeto levou a observação na brincadeira e deu um toque: já a “tinha visto muito bem”. Começava ali uma história de amor que virou casamento de 46 anos e gerou seis filhos. Vinte e quatro anos após a morte da mulher, ela ganha um disco só dela: “Pra você, Ilza”.
Em fevereiro passado, Hermeto e seu grupo – o baterista Ajurinã Zwarg, o pianista André Marques, o percussionista Fábio Pascoal (seu filho, que dividiu com ele a direção artística do trabalho), o baixista Itiberê Zwarg e o saxofonista Jota P. – foram para o estúdio Rocinante, na serra de Petrópolis, para uma imersão no material composto muito tempo atrás e inédito desde então.
Ilza morreu de câncer em novembro de 2000. Durante mais de um ano, a partir de 1999, Hermeto escreveu um caderno para ela. Foram 198 partituras. Para o álbum, só alegria. Foram selecionadas 13 músicas, que emulam lembranças dos primeiros anos (na bem-humorada “Sol de Recife”), momentos mais intimistas (“Sentir é muito bom”) até a vida cotidiana (“Passeando pelo jardim”, com uma bela melodia).
Primeira linha
“O pessoal do grupo é músico de primeira linha. Então em três, quatro dias a gente fez o disco. É uma facilidade muito grande porque, modéstia à parte, as músicas são bonitas e inspiram muito. E as pessoas, no caso o casal, viveu muito bem, feliz da vida. Isso tudo incentiva para a progressividade das coisas. Música é um negócio assim: sem premeditar. Estou sempre querendo, pensando e fazendo”, diz Hermeto.
Ilza já foi musa de outras gravações. “Menina Ilza” está no disco “Natureza universal” (2017). Já “Ilza na feijoada” é de “Lagoa da Canoa município de Arapiraca” (1984), onde Hermeto nasceu, em 1936.
“O que ela mais gostava era de cozinhar. Fazia a feijoada lá em casa e a gente convidava os músicos”, Hermeto conta. Essa casa era em Jabour, Zona Oeste do Rio, onde ele continua a viver hoje e onde também foi tirada a fotografia do casal que está impressa na capa do disco (imagem de Maurício Valladares de novembro de 1979).
Namoro
Só os primeiros anos do casal foram no Recife. “O namoro começou pela simpatia um do outro.” Os dois eram menores de idade, então um parente dela, “que trabalhava no cartório, deu um jeito e aumentou a nossa idade para a gente poder se casar”. Viveram por ali algum tempo e, em 1958, se mudaram para o Rio.
Hermeto completa 88 anos no dia 22 deste mês. São 74 de música. Sua primeira composição, “O ovo”, com o Quarteto Novo, foi gravada em 1967. Comemorar a nova idade? “As pessoas comemoram. Se não me engano, vou estar viajando, mas já prepararam a comemoração onde vou estar.” Vai ser em São Paulo, onde ele toca.
É muito show, tem até o Rock in Rio em setembro. “Sempre digo que o show vai ser um ‘somzaço’. Como vai ser? É difícil (saber) porque inspiração e criatividade são como o vento: vem, vai, vem, vai. E esse vaivém maravilhoso não para.”
Ele segue em frente. Agora, sentado no palco. “Meu filho, Fábio, me falava para experimentar tocar sentado e eu nunca quis. Mas, no dia em que me sentei, me deu vontade de tocar sentado. Porque não precisa baixar, subir instrumento. Ele já está no ponto certinho para tocar. Então, continuei.”
E não existe parar no dicionário de Hermeto. “O corpo, agora com a minha idade, está assim mais à vontade. Mas a vontade é tão grande de fazer música que ela supera qualquer coisa. O camarada velho sente dor. Sinto uma dor em um lugar embaixo do ombro. Tem cara que já vai no médico para tomar remédio. Eu não, porque já sei que essa dor é da idade. O que faço? Um remédio que minha mãe me dava antigamente, tipo aquelas pomadas. Não digo que fica bonzão, mas fica bom. Como diz a gíria: dá pra levar a vida”, conclui.