Kiko abre sua Caixa de Música
Wilson Garzon – Depois de 2011, com Alegria de Viver, o Samba Jazz Trio, não gravou mais nenhum outro trabalho, apesar de continuar se apresentando na Brasserie e em festivais. O que vcs estão pensando em termos de futuro para o trio?
Kiko Continentino – Nossos dois CDs do Sambajazz Trio (Agora Sim e Alegria de Viver) foram produzidos por João Samuel. O primeiro foi lançado por uma gravadora paulista, a Guanabara Discos. O segundo saiu com o patrocínio da Diebold. Depois disso, tentei articular um terceiro álbum com o João. Diante das dificuldades naturais do mercado e a crise econômica e cultural, decidi partir por outro caminho. É importante mencionar que esse Trio tem início em dezembro de 2004, tocando com regularidade em casas noturnas cariocas, notoriamente o Mistura Fina – na Lagoa. Inauguramos uma casa na Lapa (Estrela da Lapa) e prosseguimos nos apresentando todas as quartas no Mistura. Com o fechamento deste estabelecimento, fomos convidados pela Modern Sound (em Copacabana) a nos apresentar todos os sábados, de 2008 a 2011 – até o fechamento desse espaço (devido à crise das vendas de CDs causada pela proliferação de downloads, pagos ou piratas, na internet).
Em 2011 nos transferimos da Modern para a Brasserie Rosário, no Centro da cidade, e lá a gente vem consolidando essa liga do Trio, cada vez mais entrosado, diante de um público de entusiastas que se tornaram grandes amigos, nos acompanhando todas as sextas-feiras (happy-hour das 18 às 21h00) nessa jornada musical. Outro dia, surgiu casualmente a proposta de um companheiro, Jairo, de apoiar, junto com alguns componentes desse seleto grupo (que decidimos denominar Confraria Rosário), a gravação e lançamento do terceiro álbum do Grupo. Gostei da ideia e venho trabalhando nela. Em tempos difíceis, juntar esforços e unir pessoas através de afinidades como a boa música e a amizade, pode ser um caminho interessante. Temos que usar a criatividade para combater as mazelas do sistema.
WG – Conte-nos um pouco da história do projeto Makimatrio, em que participaram músicos do quilate de Renato Massa, Carlos Malta e Ricardo Silveira.
KC – O Makimatrio originalmente é composto por mim, meu parceiro e contrabaixista goiano Marcelo Maia e o super baterista Renato “Massa” Calmon. O título do grupo é uma junção dos nossos nomes. Ao longo dos últimos 12 anos, venho produzindo e assinando os arranjos dos CDs do Maia (Cores da Rua, Reisado Jazz Club, trabalhos bem interessantes); e também de cantoras goianas que conheci através dele (Bel Maia, Ingrid Goldfeld, Fernanda Guedes), colaborando inclusive com composições e parcerias. Em 2010, Marcelo conseguiu apoio do Governo de Goiás para produzir mais um disco e decidiu fazer um projeto de Trio. Para esse trabalho, convidamos o Massa. O disco ficou com uma sonoridade interessante, quebrando as fronteiras naturais dos estados de Goiás, Rio de Janeiro e Minas Gerais – nossas origens. Como falamos na música, “deu liga“.
Para abrilhantar ainda mais, convidamos os experientes craques Carlos Malta e Ricardo Silveira, dando um plus fantástico no CD – que traz parcerias minhas com Marcelo e outras sozinho. O CD fecha com T-Shirt Groove, uma parceria de nós três, totalmente espontânea: A faixa foi composta e gravada ao sabor do momento, sem ensaio, sem nenhuma ideia pré-concebida, nenhum esboço, nenhuma combinação, nada… Meio que no espírito Bitches Brew, álbum seminal do Miles Davis, só que com a nossa pegada, a nossa concepção. Pode aparentar algo fácil, mas não é bem assim. Há que se ter muito entrosamento de grupo – além de uma boa dose de loucura, para se chegar a um resultado minimamente satisfatório. Decidimos correr esse risco.
WG – Quando foi que você foi convidado para fazer parte do Azymuth? O que mudou no grupo com a sua chegada?
KC – á havia sido convidado muitos anos atrás para algumas substituições do Zé Roberto ainda em vida, mas infelizmente não foi possível atacar, devido a agenda. Sou fã dos três, Bertrami, Alex Malheiros e Ivan “Mamão” Conti. Admiro a trajetória desse grupo tão importante, inventivo e influente mundialmente. Por ter a mente aberta e serem músicos talentosos e criativos, conseguiram conceber uma sonoridade e um conceito de vanguarda, unindo simplicidade à sofisticação, sempre com ideias originais. Me identifiquei de cara com essa proposta. Conheci o Alex por volta de 2003, através de um amigo em comum, Fabio Motta, proprietário do excelente Castelo Estúdio – aqui em Niterói. Ele me indicou para a gravação do primeiro álbum da filha do Alex, Sabrina Malheiros, com produção do inglês Daniel Maunick (filho de Jean Paul Bluey Maunick, líder da banda Incognito).
Nesse trabalho, divido o piano e teclados com Bertrami. De lá pra cá, meu entrosamento com Alex só fez aumentar. Tivemos um Duo e depois ensaiamos um Trio com o baterista Cacá Colon, que infelizmente não prosseguiu devido a questões naturais da vida. Mas no início de 2015, Alex e Mamão (com quem também já tinha tocado, só que em menos oportunidades) “insistiram” em me chamar e dessa vez deu certo. Como disse para eles, vim para somar, para contribuir dentro dessa instituição que é o “Som Azymuth”. Respeito muito a história viva desse grupo fabuloso que segue por tanto tempo com músicos de tamanho quilate, tocando sempre em alto nível. Agradeço de coração o carinho que eles me receberam e a confiança em mim depositada.
WG – Em 2016, vocês lançam Fênix. A capacidade em se recriar é uma característica desse grupo?
KC – Creio que sim. O Azymuth já teve outros músicos, tecladistas, percussionista, cantora, etc. Já esteve “adormecido” por um breve período, mas sempre retorna com força máxima. Parece que de tempos em tempos o grupo se recria, ora com um novo componente, ora com o retorno de um dos componentes originais. E essa dinâmica parece interferir positivamente na renovação das ideias da banda, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, a banda mantém sua prima essência, estabelecida no encontro dos três fundadores e a posterior gravação do seu primeiro álbum, em 1975. E o Azymuth segue sempre seu caminho, incrivelmente rejuvenescido. Mais ou menos como a ave mítica Fênix, que de tempos em tempos renasce das suas próprias cinzas, prosseguindo sua jornada, imortal.
WG – No repertório, três músicas são suas: Orange Clouds, Neptunians e Igarapé são de sua autoria. Elas já estavam prontas ou foram compostas para o CD? Em Vila Mariana (Tarde e Madrugada) foi pura improvisação?
KC – Orange Clouds foi composta especialmente para o CD, no intervalo de um ensaio na casa do Alex – hora do lanche. Pensei num tema que homenageasse a banda, conciliando minhas ideias com a atmosfera sonora do grupo. Como naquele clima “Vôo sobre o Horizonte”, viajei na paisagem de um vôo celestial, imaginando um pôr do sol, com nuvens cor-de-laranja. Uma música totalmente “atmosférica”. Daí nasceu a inspiração da composição, dedicada aos três fundadores do grupo (Zé, Mamão e o próprio Alex).
Neptunians foi composta por volta de 2011 no ensaio de um evento com o Sambajazz Trio. Registrei com uma câmera e senti que havia naquele samba um sabor azymuth – bem antes da minha participação na banda. Um prenúncio, talvez. Mostrei para eles e a música foi aprovada.
Igarapé eu compus na hora, no estúdio. Alex e Daniel me pediram uma vinheta. Fui tocando e ela foi surgindo.
Vila Mariana foi também uma espécie de JAM coletiva, na passagem de som com o Azymuth no SESC Vila Mariana, em SP. Fiquei brincando com os acordes iniciais e o Mamão cantou uma melodia bacana em cima. Logo depois, emendei uma segunda parte. Alex colaborou com um daqueles seus inventivos grooves, Mamão registrou no celular e meses depois apresentou num ensaio nosso. Fico muito feliz, pois é uma parceria coletiva dos três, que deu o maior pé. A versão (de Madrugada) no final do CD é na verdade um REMIX da mesma faixa, feito pelo Daniel Maunick. Ele mudou algumas coisas, mudou alguns canais, como o solo de synth e adicionou umas cordas.
Estou em mais duas parcerias do álbum: Batucada em Marte e Fênix. Os créditos não saíram por que gravei depois, em sessão extra, na casa do Alex. Mas será corrigido na próxima prensagem. Me pediram para adicionar melodias, utilizando o vocoder. O resultado foi aprovado e ficou dessa forma. Gosto muito dessas duas faixas, com aquela sonoridade “dance” dos anos 1970, só que tocada por músicos brasileiros com outra pegada, outro sabor.
Aliás, gosto do CD inteiro, inclusive da faixa que não toco: Corumbá (do Mamão, só com ele e Robertinho nas percussões e efeitos do Daniel) ficou espetacular. Vários tipos de apito que o Mamão colocou, deu um resultado inusitado. Essa é a tônica do grupo: surpreender, sempre.
WG – Como foram as apresentações de Fênix junto a festivais no exterior e aqui no Brasil?
KC – Ano passado fizemos quatro viagens para a Europa com o Azymuth. A quarta delas foi a Tour de lançamento do FÊNIX, em oito países diferentes. O resultado não poderia ter sido melhor. Foram 15 concertos em locais fechados (por causa do inverno), ora em jazz-clubs conceituados, ora em danceterias ou ambientes como boate, com ênfase para a dança. E como a galera dança ao som do Azyumth! Alternamos públicos de todas as idades. Autografamos muitos álbuns. Os mais velhos compravam no formato CD. E os jovens, impressionante, compravam em LP, vinil. Achei fantástico o interesse pela juventude europeia nesse tipo de formato. Minha escola foi o vinil, que sempre ouvi compulsivamente (por causa do meu pai), desde os anos 1970. Em BH, meu pai gastava rios montando uma discoteca fantástica de jazz e bossa-nova (muitos LPs importados), sempre aparecendo com uma novidade, que deixava rodando o dia inteiro no toca-disco. Eram mais de mil discos, creio. Foi assim, ouvindo os mestres, minhas referências, que fui me interessando por música até me tornar profissional (já faz 32 anos).
Com o advento do formato digital, venho participando de centenas de gravações com artistas distintos, mas jamais poderia imaginar que um dia gravaria um álbum que seria lançado em Vinil!, ainda mais com um grupo do porte do Azymuth, e tendo composições, arranjos, ideias e parcerias incluídas nesse trabalho. Foi uma grata surpresa, inclusive de ver que as vendas estão boas e a aceitação do trabalho, tanto por parte do público quanto pela crítica, é maravilhosa. É um desafio substituir um nome como o Zé Roberto, que deixou uma marca inconfundível no Azymuth, sem copiá-lo, ao mesmo tempo em que procuro imprimir (sempre) minha assinatura no som que estou fazendo. Logicamente, respeitando sempre a essência desse som.
WG – Em relação a seus outros trabalhos, como o que faz junto ao baixista goiano Marcelo Maia?
KC – Em 2014 Marcelo me convidou para produzir e arranjar seu novo disco. Mas não foi apenas isso. Como no Makimatrio havíamos composto 04 músicas juntos (e deu certo), dessa vez ele trouxe 06 trechos diferentes de música, para que eu completasse. Só que para essa missão, teríamos apenas uma tarde – ele havia acabado de chegar de Goiânia naquele dia. No dia seguinte já era gravação – de manhã. Achei tudo meio insano, mas não tinha outro jeito. Minuto a minuto, fui compondo o complemento (fazendo a segunda parte, mudando um pouco a melodia original, criando especiais, compondo outras partes…) para cada tema dele, para cada ideia inicial (ideias muito boas).
Não sei como, mas depois de algumas horas de intenso trabalho tínhamos seis composições prontas, carimbadas, totalmente inéditas e já com um arranjo preparado (para gravação no dia seguinte). Tudo isso só foi possível por que ele ia aprovando tudo o que eu bolava. É o poder do entrosamento. E ainda complementei com uma faixa só de minha autoria, além de mais duas do Marcelo – para as quais também trabalhei no arranjo (e tudo naquela mesma tarde!). No dia seguinte, entramos no Castelo Estúdio para gravação. A turma era muito boa: O próprio Massa na bateria, Marcelo Martins nos sopros, Bernardo Bosisio na guitarra e Marco Lobo na percussão. Não me pergunte como, mas esse disco do Marcelo (Reisado Jazz Club) deu certo, ficou bacana. Ao longo da gravação, não tinha a mínima ideia se ficaria bom. Tremendo risco. Poderia ser um desastre, mas não foi. E todo esse material traz um frescor que considero muito positivo na música, nesse louco processo de criação dos músicos (cada um tem o seu, diferente, muito particular) e na capacidade de diálogo entre eles. Sou afortunado em fazer parte desse universo.
WG – Quanto ao CD da Lucynha Lima, quando é que será finalizado e lançado? Fale-nos um pouco sobre esse projeto.
KC – Esse disco foi iniciado já faz mais de 5 anos. É um daqueles trabalhos que se mostraram do tipo mais elaborado, como o meu primeiro disco “O Pulo do Gato”, que levei 5 anos para finalizar e lançar. Foi a música que pediu assim – e eu acredito que música tem vontade própria. Alguns trabalhos devem ser maturados, amadurecidos, enquanto outros são instantâneos. Como o segundo CD do Sambajazz Trio (Alegria de Viver), que entramos no estúdio e gravamos tudo no mesmo dia! Ainda não concluí o CD da Lucynha, mas em 2014 apresentamos uma prévia, um CD demonstração, não destinado à venda, chamado Sambar é Bom – com algumas inéditas que constarão no CD principal e releituras de grandes mestres.
Lucynha Lima é minha companheira de música e vida. Estamos juntos a 18 anos, temos dois filhos lindos, enfrentamos com garra as dificuldades do dia a dia. Ela tem um talento incrível e multi-direcional. Se formou em Educação Artística, é Regente de Coral, se especializou em vozes infantis e de todas as idades, dá aulas de canto diariamente, fez ballet clássico, teve experiências na área do teatro, foi produtora, back vocal, tem ritmo, toca percussão, é uma mãe e dona de casa maravilhosa, enfim… Vem cantado cada vez mais lindo. Canta chorinho com leveza, suavidade, agilidade e graça singulares. É uma guerreira iluminada, como define o significado do seu nome: Lúcia Helena. Tem muito swing no samba, é bossa-novista…
Juntou todas essas experiências e apresentou em 2015 um show inesquecível no teatro Municipal de Niteroi, que tive o prazer de dirigir. Lucynha encantou, fez da plateia um imenso coral, cantando cânticos indígenas. Com a nata musical da cidade dividindo o palco conosco e participações especialíssimas do meu parceiro Altay Velloso, de Jane Duboc e do Azymuth (Mamão e Alex foram gentilmente nos prestigiar), a noite foi mágica, culminando com seus alunos especiais (de uma escola para portadores de deficiências de vários tipos) cantando animadamente Linha do Horizonte, do primeiro LP do Azymuth, com acompanhamento do próprio Azymuth. Tenho certeza de que o CD de Lucynha vai ficar especial, trazendo muito dessas novas experiências, dessas vivências, dessa sabedoria. Em breve, sai.
WG – E o que vem a seguir daqui p frente na sua usina de música? Em relação a Marco Lobo, Delmiro e Ornelas, essas parcerias gerarão frutos?
KC – Com Marquinho Lobo, grande percussionista baiano, parceirão e um belo empreendedor da sua própria carreira, toquei ano passado e retrasado em projetos instrumentais interessantes, tendo como convidados músicos incríveis do jazz e do phusion, como Billy Cobham e Dave Liebman – com quem nos entrosamos muito bem.
Tive a oportunidade de acompanhar o Hélio Delmiro (um dos maiores guitarristas do mundo) alguns anos atrás, em show de quarteto (com os pheras Paulo Russo e Paulo Braga) e fazer um Duo, onde atingimos níveis de performance memoráveis. Nivaldo é um daqueles gênios da música mineira.
Profundo conhecedor da harmonia, Nivaldo Ornelas concebe lindas melodias, extrai lindos sons do seu saxofone. Volta e meia estou tocando com ele, ora em Duo de piano e sopros, ora no nosso quarteto que vem se apresentando já há mais de 10 anos (contando também com Braga e o legendário Sérgio Barrozo – temos um belo DVD lançado), ora em concertos elaborados como o que fizemos ano passado na Sala Cecília Meirelles com Nivaldo, quarteto e Banda Philarmônica, com composições de entonação Sinfônica do Nivaldo. Um belíssimo momento. Pode ser encontrado o registro no youtube – Série Brasil x Holanda. E assim, a gente vai levando. Vamos aonde a música, o trabalho, as afinidades profissionais e pessoais nos conduzem. Música é a mistura da persistência com o inesperado. E muitas vezes, adrenalina pura.