Música instrumental reúne duplas em sintonia total
Ana Clara Brant, jornal ‘O Estado de Minas’, 09/09/2018
Álbuns gravados por duos registram encontros memoráveis de artistas dedicados à música instrumental. Brasilidade é a marca registrada de projetos que chegaram às lojas este ano. Que seria de Buchecha sem Claudinho, de Sá sem Guarabyra, de Ana sem Vitória ou de Zezé di Camargo sem Luciano? Essas duplas são praticamente “inseparáveis”, mas também há aquelas que se formam esporadicamente para fazer um show ou gravar um disco. E nem por isso a sintonia é menor. Três álbuns instrumentais lançados este ano são a prova de que duos esporádicos têm tudo a ver. Um deles uniu o violino do paulista Ricardo Herz ao violão de sete cordas do gaúcho Yamandú Costa. O outro reúne os violonistas Paulo Bellinati e Marco Pereira. O terceiro, Saci, marca o encontro do pianista Pedro de Alcântara com o gaitista Gabriel Grossi.
Homenagem para Bituca
Com pegada bem brasileira, ‘Saci‘ celebra o encontro do pianista capixaba Pedro de Alcântara com Gabriel Grossi, gaitista e arranjador brasiliense radicado no Rio de Janeiro. Entusiasta do trabalho de Grossi, Pedro o convidou para fazer um concerto didático na escola em que é coordenador, em Vitória (ES). A partir daí, os dois se tornaram amigos.
A parceria rendeu turnês e o disco que acaba de sair. “A base do álbum – Hugo Maciel e Fausto Lessa (contrabaixo), Pedrinho de Alcântara (violão e guitarra), Bruno Mangueira (violão), Gabriel Ruy (bateria) e Edu Szajnbrum (percussão) – é formada por músicos do Espírito Santo, mas o convidado especial é o Gabriel Grossi. Temos não só afinidade pessoal, mas musical. Esse trabalho reflete isso”, comenta Pedro de Alcântara.
O repertório de Saci é autoral e reúne temas instrumentais, com muito improviso e sotaque bem brasileiro. A faixa Pro Bituca, de Gabriel Grossi, faz homenagem a um ídolo em comum: Milton Nascimento. “A gente estava sentindo falta de uma música do Gabriel, e aí ele me mostrou essa. Ela casou muito bem, pois nós dois admiramos o Milton”, revela o pianista capixaba. Vira e mexe, Pedro de Alcântara produz álbuns com parcerias. “Um complementa e enriquece o trabalho do outro. Acho muito mais interessante do que ter parceiro fixo”, revela. A capa foi criada pelo premiado artista gráfico capixaba Ficore Kalic traz um saci e seu cachimbo estilizados.
“O Saci é a cara do Brasil. Como a música Deve ter saci por aí abre o disco, achei que esse nome tinha tudo a ver com a proposta do projeto”, comenta Pedro. “Sou fã da música mineira, mas, por incrível que pareça, nunca toquei em Belo Horizonte, infelizmente. Quem sabe não pinta um convite agora?”, diz.
Universo compartilhado
Praticamente da mesma geração – Ricardo Herz nasceu em 1978; Yamandú Costa em 1980 –, os dois instrumentistas já tinham se esbarrado em vários camarins. Há três anos, foram convidados para participar de um projeto do Sesc, em São Paulo. “Eram encontros musicais de pessoas que nunca haviam tocado juntas. Deu muito certo. Tanto que repetimos o show em outras ocasiões, com uma ou outra mudança no repertório”, conta Ricardo Herz.
Em 2017, Yamandú Costa convidou Herz para dar uma passada em sua casa, no Rio de Janeiro, onde mantém um estúdio. A ideia era gravar as músicas que a dupla tocou nas apresentações. “A ideia nem era fazer disco, mas aproveitar que as composições estavam frescas na nossa cabeça e, quem sabe, lançá-las na internet ou no máximo num EP”, relata o violinista. Quando percebeu, a dupla tinha 11 faixas prontas – solos de cada um deles, a belíssima Mourinho (de Herz), Xote da galinha (de Yamandú) e as parcerias Matutinho e Remanso. O disco Yamandú Costa e Ricardo Herz é uma celebração da brasilidade, com direito a coco, embolada, música de fronteira, choro.
“Como é um álbum que comemora o nosso encontro, o mais apropriado seria colocar os nossos nomes mesmo. Desde que vi o Yamandú tocando pela primeira vez, achava que essa parceria iria render. Quando a gente se conheceu pessoalmente, tive certeza disso, apesar de nossas histórias serem diferentes. Eu, vindo da música erudita para a popular, e ele, da música popular e cada vez mais tocando em palcos de concerto. Hoje, chegamos a um meio do caminho que se comunica muito bem”, ressalta Herz, que acaba de lançar outro disco em dupla – esse com o maestro e pianista Nelson Ayres.
“É muito legal fazer duo. Além de você entrar no universo da outra pessoa e se adaptar ao jeito dela de tocar, o que é muito prazeroso, a gente aumenta a nossa gama de possibilidades. Sem contar que somamos os públicos”, acredita o violinista.
Parceria consolidada
Paulo Bellinati e Marco Pereira se conheceram quando estudavam violão no Conservatório Dramático e Musical do Estado de São Paulo, no fim dos anos 1970, na capital paulista. Os dois chegaram a ter um mestre em comum: o uruguaio Isaías Sávio. “Violão tinha uma fama péssima. Era considerado instrumento de vagabundo, de malandro. O Isaías chegou no Brasil na década de 1940 e ajudou a mudar essa história”, explica Marco.
Os dois paulistanos se tornaram amigos no Conservatório. Chegaram a formar um duo quando se formaram. “A gente tem muita coisa parecida. A começar pelo aniversário. Nasci em 25 de setembro de 1950 e o Paulo, em 22 de setembro de 1950. A diferença é de apenas três dias. Porém, ele é um virginiano teimoso e eu, ainda bem, sou libriano”, brinca Marco.
Os parceiros se distanciaram por algum tempo, na época em que ambos moraram na Europa. De volta ao Brasil, Marco Pereira foi dar aula na Universidade de Brasília (UnB). Nesse período, compôs uma peça para dois violões e orquestra sobre as lendas amazônicas. “Quando ela ficou pronta, descobri que o Paulo ia estrear uma peça dele também para dois violões e orquestra. Era muita coincidência. Mesmo quando a gente estava andando por caminhos separados, eles eram paralelos. Temos as mesmas opções estéticas e musicais, além de uma identidade enorme”, acredita Marco.
Finalmente, a parceria se consolidou em disco. Xodós é o resultado do reencontro dos dois no Clube do Choro, em Brasília, em 2015. Durante essa homenagem a Dominguinhos, o álbum começou a tomar forma, mesmo sem a dupla perceber. “Nossa parceria se consolidou nesse registro fonográfico. O disco traz a mesma atmosfera do concerto que fizemos e com boa parte daquele repertório. Reúne canções nossas e também do Dominguinhos e do Dilermando Reis. Em muitos casos, com arranjos a quatro mãos. É um trabalho nada artificial, mas com o som puro dos nossos violões. Virou o nosso xodó”, celebra Paulo Bellinati.