Os 45 anos de ‘Terra dos Pássaros’ de Toninho Horta
Fábio Correa, jornal Estado de Minas, 30/10/24
Como uma carta misteriosa ajudou Toninho Horta a lançar seu primeiro disco
Guitarrista mineiro estava sem recursos para gravar “Terra dos pássaros”, na década de 1970, quando recebeu um pagamento inesperado pela música “Beijo partido”.
Toninho Horta estava desanimado. Era o final da década de 1970 e o mineiro, àquela altura já considerado o quinto melhor guitarrista do mundo pela revista britânica Melody Maker, lutava a duras penas para finalizar o primeiro álbum, “Terra dos pássaros”, produzido de forma independente por ele e por Ronaldo Bastos.
Foi quando a solução caiu do céu, na forma de um envelope pardo, direto dos Estados Unidos para o apartamento no Rio de Janeiro onde viviam Toninho e Gilda Horta. A irmã e parceira inseparável abriu a carta. Dentro havia um gordo cheque. Era o pagamento pelos direitos autorais de “Beijo partido”, canção dele gravada pelo Earth, Wind & Fire em 1977, no álbum ‘All in all’.
Gilda colocou o cheque no bolso, não falou nada e esperou o irmão aparecer.
“Eu não tinha dinheiro nem para dar para o guardador de carro na rua. Cheguei em casa desiludido”, lembra Toninho.
“Tenho um dinheiro aqui para você terminar o disco”, soltou a irmã.
“O que é? Você casou com um lorde inglês? Assaltou um banco?”, retrucou o guitarrista, que recorda a história junto de Gilda.
“Depois ainda veio outro cheque”, lembra Gilda, às gargalhadas.
A reportagem do Estado de Minas encontrou com os dois no final de setembro, no Bairro São Lucas, em BH, pouco antes de o compositor partir para um giro de 20 shows na Europa, previstos para novembro, em sua primeira turnê internacional como artista solo. O bate-papo ocorreu no Restaurante do Sorriso, em cujo cardápio o músico está eternizado com o PF Toninho Horta Vegetariano (omelete com ervas finas, salada, arroz, feijão e batatas).
Solos de guitarra
Antes de entrar definitivamente para o menu da música brasileira e mundial com clássicos como “Diana”, “Céu de Brasília”, “Beijo partido” e “Falso inglês” – cantadas por Boca Livre, Simone, Sá, Rodrix e Guarabyra; Milton Nascimento e também “Earth, Wind & Fire” –, Antônio Maurício Horta de Melo, que completa 76 anos em dezembro, ganhava a vida principalmente como guitarrista.
Durante toda a década de 1970, passou por conjuntos de Elis Regina, Edu Lobo e Gal Costa, sem deixar de lado os colegas mineiros no Clube da Esquina, de cujo álbum homônimo participou, em 1972. “Terra dos Pássaros”, no entanto, seria o divisor de águas, a obra em que o jeito tímido de cantar, influenciado principalmente por João Gilberto, apareceria junto aos solos de guitarra e às harmonias inspiradas no jazz moderno que mais tarde impressionariam grandes nomes do estilo e do instrumento, como Pat Metheny e John Pizzarelli. Estava tudo ali: de Beatles, Tom Jobim e Jimi Hendrix até o barroco e o impressionismo erudito que tocava na casa da família Horta.
Era 1976. Toninho havia acabado de gravar, em Los Angeles, o disco “Promises of the sun”, de Airto Moreira, percussionista curitibano e ex-integrante da banda elétrica de Miles Davis. De lá, emendou outra sessão a poucos quilômetros de distância, na ensolarada Malibu, no icônico Shangri-la Studios, que já havia sido utilizado por Bob Dylan e o The Band.
Sobras de estúdio
Com Novelli (baixo), Airto (bateria), Raul de Souza (trombone) e o tecladista uruguaio Hugo Fattoruso (todos figuram em “Terra dos pássaros”), Toninho se juntou a Wayne Shorter e Herbie Hancock, também egressos do grupo de Miles, para as sessões do álbum “Milton”.
No final das gravações, Bituca chamou Toninho e disse que o colega poderia usar o tempo restante no estúdio.
“Ele falou: ‘Terminei o disco, vai sobrar uns três, quatros dias. Aproveita as fitas para você gravar um negócio’”, lembra Toninho, que chamou Ronaldo Bastos para ajudá-lo a produzir o álbum.
“Como o estúdio funcionava 24 horas, Toninho falou com os engenheiros: ‘Podemos gravar uma música aqui?’, e o engenheiro disse ‘sim’. Foi aí que começou”, lembra Hugo Fattoruso, que conversou com o EM, por telefone, de Posadas, na Argentina. Fattoruso era outra parte da Orquestra Fantasma, nome que surgiu para a forma de emular a música sinfônica com apenas guitarra e teclados.
“A gente tentava tirar o som de trompa no [sintetizador] minimoog, ou usava pedal de volume [na guitarra] para fazer violino, cello, umas coisas assim”, comenta Toninho Horta.
“A vida inteira, desde menino, eu ouvia orquestra. Então o sonho era ter orquestra real. Aí Gilda recebeu o cheque e foi quando eu pude pegar o dinheiro e aplicar no disco para terminar”, relembra o mineiro, que gravou os arranjos escritos por ele mesmo já no Brasil, entre São Paulo e Rio de Janeiro.
Enchente na fábrica quase afunda primeiro disco de Toninho Horta
Pronto em 1979, “Terra dos pássaros” ficou ‘boiando’ no final daquele ano. Álbum só foi lançado em março de 1980, por pressão de Toninho Horta.
A primeira canção do disco “Terra dos pássaros”, de Toninho Horta, gravada em Malibu, nos Estados Unido, foi “Diana”, escrita pelo guitarrista e compositor em parceria com Fernando Brant e que conta a história de uma cachorra com “tristeza no olhar”.
A faixa, com violão, baixo e voz de Toninho, tem a participação de Jorge Osvaldo Fattoruso, irmão de Hugo Fattoruso, com quem formara, ainda nos anos 1960, os Los Shakers, grupo pioneiro do rock uruguaio.
Ambos já viviam nos Estados Unidos, tocavam na banda de jazz-rock OPA com o baixista George Thielmann (que também participa de “Terra dos pássaros”), mas passavam por maus bocados.
George estava no estado da Geórgia, trabalhando como carregador de saco de farinha. Hugo era pianista de uma orquestra com uma família de amigos do Norte da Espanha, tocando em cassinos – e não tinha telefone.
“Quando o Bituca me chamou para tocar, eu estava com muita dificuldade. Não me pergunte como me acharam em um hotel. Foi um milagre”, recorda o uruguaio, que era casado na época com a cantora brasileira Maria de Fátima e, segundo ele, ambos chegaram a pesar 48 quilos. “Eu estava tocando o céu com as mãos por estar ali, com aqueles músicos. Foi um golpe de muita sorte.”
Show comemorativo
Pouco tempo depois, o OPA foi contratado para abrir um show de Milton Nascimento em Buenos Aires. De volta a Montevidéu, um show de comemoração do fim da ditadura levou Toninho Horta e outros artistas brasileiros ao Uruguai, onde Hugo conheceu Geraldo Azevedo.
O uruguaio se mudou para o Brasil para integrar a banda do pernambucano, vindo depois a tocar com Djavan e Chico Buarque. Atualmente, Fattoruso está em turnê no Japão com o duo Los Orientales, que conta com o baterista Yahiro Tomohiro.
“Terra dos pássaros” abre com “Céu de Brasília”, outra letra de Fernando Brant. O poeta imaginou a Capital Federal descrita por Toninho, deslumbrado com o Planalto – e brincou, em “Falso inglês (Wonder Woman)”, oitava faixa do disco, com a forma do músico de cantar inventando palavras na língua estrangeira.
A terceira canção do disco é “Dona Olímpia”, assinada com Ronaldo Bastos, tema instrumental gravado para o documentário em média-metragem de Luis Alberto Sartori sobre uma senhora que mendigava em Ouro Preto para pagar a faculdade da sobrinha.
Outro tema instrumental do disco, “Aquelas coisas todas” – que John Pizzarelli gravou em 2004 – também surgiu da trilha da produção cinematográfica. Já Bastos é o parceiro em “Viver de amor” e “Serenade”.
Dream Team
O poeta Cacaso, por sua vez, divide os créditos em “Pedra da Lua”. O disco termina com “Terra dos pássaros/Beijo partido”, de Toninho, e “No carnaval”, versão intimista em guitarra e voz da canção de Caetano Veloso e Jota. Milton Nascimento, Robertinho Silva, Mauro Senise, Nivaldo Ornellas, Wagner Tiso e o grupo vocal Boca Livre também integram o “dream team” sonoro de “Terra dos pássaros”.
Gravado durante três anos, o LP foi concluído no final de 1979. Por causa de uma enchente que deixou os discos boiando na fábrica, em São Bernardo do Campo (SP), o vinil chegou às lojas só em março de 1980. À época, Toninho foi contratado pela EMI/Odeon para um segundo álbum, que saiu no mesmo ano.
“Prometi outro disco, mas falei que eles tinham que lançar aquele que estava pronto. Saiu um em março e outro em novembro, questão de seis meses”, explica ele, que comenta que o disco não deu retorno financeiro – mesmo que o cheque do Earth, Wind & Fire valesse, à época, um apartamento em Santa Tereza.
“Mas o ‘Terra dos pássaros’ para mim é tudo, toda a carga de tudo que eu tinha ouvido desde menino, até aquela época. Ter ganhado um crédito de elogio das pessoas por esse disco é algo que não tem preço”, afirma.
1. “Céu de Brasília” (Toninho Horta e Fernando Brant)
2. “Diana” (Toninho Horta e Fernando Brant)
3. “Dona Olímpia” (Toninho Horta e Ronaldo Bastos)
4. “Viver de amor” (Toninho Horta e Ronaldo Bastos)
5. “Pedra da Lua” (Toninho Horta e Cacaso)
6. “Serenade” (Toninho Horta e Ronaldo Bastos)
7. “Aquelas coisas todas” (Toninho Horta)
8. “Falso inglês (Wonder Woman)” (Toninho Horta e Fernando Brant)
9. “Terra dos pássaros/Beijo partido” (Toninho Horta)
10. “No carnaval” (Jota e Caetano Veloso)
TERRA DOS PÁSSAROS
Produzido por Toninho Horta e Ronaldo Bastos.
Gravado entre julho de 1976 e setembro de 1979, nos EUA (Shangri-la Studios, Malibu; Paramount Studios, Hollywood; The Village Recorder, West Los Angeles) e no Brasil (Estúdio Vice-Versa, em São Paulo; e Estúdio Transamérica, no Rio de Janeiro).
Lançado em março de 1980 pela EMI/Odeon.
Capa por Cafi, Ronaldo Bastos e Tadeu Valério.
Show em Dezembro
Toninho Horta vai celebrar os 45 anos de “Terra dos pássaros” em Belo Horizonte no próximo dia 7 de dezembro. O show será às 21h, no Grande Teatro do Sesc Palladium e terá as participações de Joyce, Wagner Tiso, Robertinho Silva, Nivaldo Ornelas e Lena Horta.
Toninho estará acompanhado no palco pela The Birdland Band, que conta com Beto Lopes (baixo), Cyrano Almeida (bateria) e Tatta Spalla (violões e guitarra).