Entrevistas

Mongiovi Trio II: Uma bela Safra de qualidade musical

O músico, produtor e pesquisador Dom Angelo Mongiovi lançou nesse ano, o seu 4º álbum de jazz, Mongiovi Trio II (2020, Boa Vista Jazz Records), com temas de sua autoria, standards e de compositores pernambucanos. Conheço muito a atual vertente do jazz pernambucano, que me foi apresentada pelo contrabaixista e pesquisador musical Bruno Vitorino, que  também foi crítico de jazz e colaborador desse site. Através de Bruno pude conhecer a obra de Dom Angelo e desde então fiquei muito impressionado pela sua criatividade tanto como instrumentista como compositor. E para a minha alegria, Dom e Bruno se tornaram sócios da gravadora recifense, Boa Vista Jazz Records. Que acaba de lançar mais uma safra refinada que só se reproduz nessa terra e agora pode ser degustada em todo país.

 

ENTREVISTA

 

Wilson Garzon – Depois do exitoso lançamento do Monviovi Trio, porque demorou tanto tempo tempo para lançar seu a segunda edição?
Dom Angelo – Então, agora chego ao quarto álbum de minha carreira como bandleader, com todos os discos fundamentados na linguagem do jazz e da música instrumental improvisada. Coincidência ou não, há um intervalo de lançamento de cinco anos entre eles: Dom Angelo Jazz Combo (2010), Porto (2015), Mongiovi Trio (2020) e agora Mongiovi Trio II (2025). Esses dois últimos trabalhos marcam minha parceria de grupo com os músicos (e amigos): Miguel Mendes (baixo elétrico) e Rostan Junior (bateria).

WG – O que à primeira vista, diferencia a edição I da edição II do Mongiovi ?
DA – Uma sinergia e uma facilidade de comunicação musical, verbal e comportamental que quando é atingida e vivenciada revela-se como a verdadeira preciosidade da interação artística, entrosamento e trabalho que nós músicos buscamos num ambiente coletivo. Dito isso, reconheci rapidamente que Mongiovi Trio II se tratava de uma continuidade do Mongiovi Trio I, porém desta vez com os terrenos musicais sendo “defendidos” exclusivamente por nós. Somente pelo trio.

Isso porque a primeira edição contou com as presenças de músicos talentosos como,  Amaro Freitas, Henrique Albino, Ítalo Sales, Hugo Medeiros, Silva BarrosDiego Drão, Waleson Queirós, entre outros.

 

 

Repertório

 

São doze temas, sendo seis de autoria de Dom Angelo,  dois temas por integrantes do trio, um por PC Silva e Juliana Holanda, compositores pernambucanos, um tema composto por Bruno Vitorino e dois standards: um de Caetano Veloso e o outro por Thelonious Monk.

 

01 – O álbum abre com o tema autoral intitulado D“. Tem algum significado místico ou esotérico?

No Egito antigo a letra “D” era chamada de deret e significava “mãos“. O grande amparo divino. Posteriormente os fenícios a adotaram e deram o nome de daleth, que significa “porta“. Aqui ela é a porta de entrada do disco, mas também é um ponto de demarcação de mudança de um lugar ou paradigma, seja físico, mental ou espiritual. Por fim, os gregos chamavam a letra D de delta, que tem como símbolo o triângulo (não obstante, o trio, a santíssima trindade, o equilíbrio) e “D.” é a abreviação de “Dom”.

02 – Não Identificado de Caetano Veloso tem também um resgate sentimental?

A faixa dois do álbum corresponde, de alguma forma, a uma continuidade da faixa “D”. Também em ré maior, os que consultarem ou conhecerem a letra da sua versão original de Caetano Veloso (Não Identificado) compreenderão a força motriz desse “medley”, mesmo que presente na superfície dos fatos, ou seja: uma paixão, uma dor.

Esta canção sempre mexeu comigo desde a minha infância, quando ecoava pelos recintos de minha casa no “Vale do Capibaribe” em meados da década de 1980. Importante salientar que começamos a tocar esta releitura em 2018 pelos bares do Recife, antes do resgate cultural da mesma pelo filme Bacurau (2019).

03 – Well, You Needn’t” de Thelonious Monk. Com certeza, ele é uma das suas maiores influências no Jazz.

Com essa música faço minha reverência a uma das minhas principais referências como jazzista: Thelonious Monk. De alguma forma, comunicamos como trio nossos fundamentos na linguagem do jazz, amparados pelo conceito do paradigma bebop, como afirma o professor Acácio Piedade. O tema entrou no programa sugerido por meu amigo e parceiro no selo Boa Vista Jazz Records, Bruno Vitorino, e reflete toda a genialidade do Monk, passeando por recortes verticais nos modos lídios e mixolídios, sem a presença das cadências e progressões clássicas tonais, transmitindo claramente a representatividade figurativa de “cubista do jazz” para o Monk.

 

 

04 – Sopro”: nessa composição sinto muito a presença do guitarrista Bill Frisell. Um dos guitarristas mais criativos e originais do jazz americano.

Essa composição é um aceno à maior influência de corrente musical que este disco foi pautado: a inspiração, a doçura tonal, o espaço e a pureza musical de uma linha do jazz contemporâneo desempenhada principalmente por Bill Frisell, Jakob Bro, provindas de Paul Motian, Lee Konitz, Kenny Wheeler, Jim Hall, e de alguma forma de Miles Davis e do cool jazz, na qual Frisell traz como vocábulo representativo em suas entrevistas atuais e que gosto de chamar de jazz naive.

05 – “Stillness”

Aqui, a proposta foi revisitar o tema “Stillness”, de minha autoria que foi gravada originalmente no álbum Porto (2015). Uma balada com forte atmosfera do modo lídio, que na ocasião as liner notes escrita por Spok (saxofonista pernambucano) dizia: “…uma improvisação na guitarra com frases elegantes e com forte identidade, num tema de harmonia contemporânea“.

Se no álbum anterior do projeto Mongiovi Trio trouxemos intervenções artísticas com poesias declamadas no programa do disco, neste as citações das entre faixas são puramente sonoras.

06 – Nuvem

intitulada “Nuvem”, Miguel Mendes evidencia sua criatividade compondo um solo de baixo completamente autêntico  e de estética inesperada.

07 – “Boomerang”

música composta originalmente em formato canção por PC Silva e Juliana Holanda, talentosos cantautores da Movimentação Reverbo (agrupamento de artistas no qual sou grande admirador, e que ainda conta com nomes como Martins, Marcello Rangel, Flaira Ferro, Isabela Moraes, Almério, dentre outros). Em nossa interpretação, trouxemos uma roupagem de balada jazzística, com presença marcante das vassourinhas conduzindo a pulsação na primeira parte, enquanto que o trio segue arquitetando um ótimo alargamento da dinâmica piano – forte – pianíssimo em suas três partes estruturais.

08 – “Coragem”:

Inicialmente essa música foi intitulada de A1982p/A2015, um código que significava\; “de Angelo, nascido em 1982, para Antonino, nascido em 2015”. Um tema-homenagem de pai para filho. Contudo, a primeira vez que esta melodia ecoou em minha casa surgiu justamente dos dedos, ouvidos e coração do meu filho. Com apenas 5 anos de idade na época, sentado em frente ao seu teclado, ele estava reproduzindo (tirando de ouvido) um pequeno trecho da trilha sonora de um jogo infantil que tinha em um dos nossos dispositivos eletrônicos.

Fiquei encantado com sua memória musical e, mais ainda, por escolher uma melodia forte e marcante em suas brincadeiras lúdicas. Pela ambiência e modalismo western do tema, intitulei-a de “Coragem“. Um sentimento que, assim como a fé, é essencial para encarar os desafios e as mazelas existenciais deste nosso percurso na Terra.

 

 

09 – “Paixão”: é um solo de bateria que mostra toda a versatilidade е pernambucanidade de Rostan Junior.

Reforçando sua pluralidade, por outro lado percebemos uma linguagem bastante diferente em todo o restante do disco. Lembro que nas ideias preliminares às gravações conversamos sobre uma estética de bateria mais suave, flutuante e moderna para o disco, a partir de referências como Paul Motian, Joey Baron, Jorge Rossy e Jon Christensen. O resultado foi maravilhoso. Serei sempre grato pela sua abertura, confiança e pelo ato de se lançar no “desconhecido” nas sessões deste álbum.

10 – “Ansiedade”: Após alguma ausência de instrumentação na faixa anterior, trouxemos em contraste um excesso de elementos na faixa de intervenção “Ansiedade”.

Ansiedade é quase uma condição unanime da nossa era. Da nossa fase transicional da tecnologia em sua velocidade de mudanças. Tudo está online. Nunca foi tão fácil entrar e contato com a sabedoria do Ser, enquanto que nunca foi tão difícil, com tanto alimento para a mente.

11 – Banzo”: uma música especial de um grande amigo, Bruno Vitorino

penúltima faixa do disco é um tema de autoria de Bruno Vitorino. Jazzófilo e intelectual de primeira ordem, Bruno liderou no passado um grupo de jazz chamado Nebulosa Quinteto. O tema que mais me chamou atenção naquele disco foi justamente “Banzo”. Talvez pelos seus caminhos melódicos e harmônicos inesperados. Uma forma muito autêntica de composição. Sempre quis tocá-la. Apesar de algumas alterações melódicas nas partes B e C, considero-a em Mongiovi Trio II uma celebração à nossa amizade e nossa paixão em comum pelo jazz.

12 – “Respiração”: finalizando o setlist em grande estilo,uma faixa solo de guitarra intitulada “Respiração”. 

Mecanismo automático do corpo, mas também porta divina para retomada do nosso centro existencial, este tema/improvisação livre dialoga com a abertura do disco (faixa 1 “D”), trazendo igualmente ornamentos e articulações da música mística. O simbolismo de transcendência representado por um salto de tom de ré (D) para mi (E). A experiência narrativa de um álbum que abre com “D” como uma porta, e fecha com a “Respiração“.

Créditos Finais

Por fim, até onde me cabe comentários, ouço um álbum com identidade performática, composicional e timbrística, sem um encaixe claro em uma “escola” jazzística, mas cheio de referências como suporte artístico. Num estado multicultural como Pernambuco e como no nosso país Brasil, parece ser uma resistência social, cultural e política fazer música improvisada e lançá-la como álbum, nos dias atuais.