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A ‘Canção Brasileira’, segundo Conrado Paulino

Desde que criei o site Clube de Jazz, o violonista Conrado Paulino, portenho de brasileiríssima alma, é uma constante nas minhas publicações. Nessa terceira entrevista tenho a honra de divulgar seu quarto trabalho e o segundo no formato solo: “A Canção Brasileira”. Nela, Conrado desmonta todo o processo, desde o seu financiamento, as escolhas das canções e o tratamento conferido a cada uma delas.

Wilson Garzon – Em 2015 você lançava ‘4 Climas‘, seu terceiro cd e o segundo do quarteto. Quando você pensou em lançar um quarto cd, a escolha era para um cd solo?
Conrado Paulino – Sim, eu já estava decidido a fazer um CD de violão solo, e por vários motivos. Um deles é que me pareceu interessante intercalar um CD com o meu Quarteto, e depois um CD de violão solo, e a seguir repetir a dose. Minha atuação com o Quarteto e como solista de violão são dois trabalhos diferentes, duas facetas minhas que gosto por igual e sinto necessidade de registrar.
Além disso, ultimamente tenho me apresentado muito mais como solista do que com o meu grupo. Isso acontece em parte porque o show do Quarteto é mais oneroso e de logística mais complicada, e em parte porque ter feito um CD de violão solo me abriu as portas desse mercado, feito de festivais de violão, seminários e também bastante oportunidades como docente. Um CD de violão solo vem a calhar.

Conrado Paulino só e com o seu quarteto formado por: Debora Gurgel (piano e flauta), Marinho Andreotti (contrabaixo), Pércio Sapia (bateria) .

WG – Como se deu o processo: era o seu primeiro crowfunding? Que ano começou o processo? Você esperava concluir o financiamento mais cedo?
CP – Foi meu primeiro financiamento coletivo, o tal crowdfunding. Não sabia nada do assunto e me preocupava muito falhar no intento de conseguir a verba para produzir o CD. E, além de um possível fracasso financeiro, me preocupava o risco que esse fracasso poderia acarretar para minha imagem. E ainda o temor de “queimar” desnecessariamente um cartucho. Fiz o possível para me informar, conversando com colegas e amigos e pesquisando outras campanhas. Fui entendendo mais ou menos como funciona, mas percebi também que, embora haja certas ações padronizadas, não há uma receita de sucesso. Por exemplo, na época que estava pesquisando vi alguns artistas com bastante nome que não tinham conseguido atingir a meta e tiveram que devolver o dinheiro e desistir do projeto. E o pior é que isso fica exposto na plataforma de crowdfunding.
Essa etapa de pesquisa começou no fim de 2015 . No começo de 2016 já estava começando a decidir qual plataforma usar, qual tipo de campanha fazer, o valor que iria pleitear, como fazer o orçamento, quais seriam os prêmios, como seria a logística para criar os prêmios, distribui-los, etc etc. Depois disso, tive que fazer vídeos para anunciar a campanha, os gráficos para mostrar quais seriam os prêmios, gráficos para enfeitar a página da plataforma, cartazes e mais videos ainda para colocar nas redes sociais… É um trabalhão, similar a montar uma loja. Só que sem sócios, e sem capital. Pelo contrário, todo esse trabalho é para levantar o capital para só depois tornar realidade o projeto.
A campanha começou no fim de 2016 e durou mais ou menos o tempo programado (as plataformas sempre dão uma esticada após a data final) . O que atrasou foi a gravação do CD. Houve uma série de problemas técnicos, atrasos e desencontros que, somados às minhas viagens profissionais, atrasaram o lançamento do CD em um ano. Mas eu fiquei aliviado ouvindo colegas – muitos – que me diziam que o CD deles estava atrasado dois, três ou quatro anos, rssss.

WG – Quando começou o financiamento, você já tinha escolhido as doze músicas do repertório?
CP – Sim, mas, na realidade eram 11. No fim ficaram 12, mas eu cheguei a gravar 13! rss . É muito difícil decidir qual entra e qual fica fora do play list, pelo menos para mim. Não lembro mais qual foi a 12a, ou seja, aquela que não estava prevista na lista inicial e acabou entrando. Mas as 13ª foi “Lembra de mim” de Ivan Lins e Vitor Martins. Adoro essa música, mas não curti muito o resultado e decidi deixá-la de fora. Se tudo der certo, estará no meu próximo CD de violão solo 🙂

WG – Gostaria que você me contasse sobre as escolhas das músicas e o estilo dos arranjos que escolheu para cada uma delas:
CP – Claro, com prazer. São canções que, além de serem muito representativas do cancioneiro brasileiro, eu particularmente gosto muito . “Sem você“, por exemplo, é uma canção que há anos me emociona e não me canso de ouvir. “O Circo Mistico“, além de ter uma melodia belíssima, complexa e delicada, é uma verdadeira obra de engenharia harmônica.  Mas há um elo comum entre todas as canções: são canções que eu gosto de cantar. Eu arranjo para violão as canções que habitam minha mente, as que ficam soando no meu inconsciente. E, no geral, essas canções são aquelas que eu curto cantar. Eu sei a letra inteira de todas as músicas que gravei e que toco. Acho que sou uma verdadeira exceção entre os instrumentistas, que normalmente não dão importância à letra.

a . Tom Jobim:
‘Sem você’
Minha inspiração básica vem da versão da Nana Caymmi, gravada em 1965. Naquela época ela já tinha aquele jeito especial de cantar, mas ainda dava para sentir trejeitos de Angela Maria, uma forte influencia para todas as cantoras dessa geração.
‘Falando de amor’
Aprendi essa música, um belo choro-canção, acompanhando a querida Alaíde Costa. Nesse arranjo fiz uma introdução “aflamencada” que vai até o fim do primeiro “A” da música. Mas, sinceramente, não sei – ou não lembro – de onde veio essa ideia, incomum na minha produção. Talvez tenha surgido devido ao intervalo de nona menor inicial que se forma sobre o acorde dominante, que é muito comum no flamenco.
‘Tema de Amor de Gabriela’
Aprendi essa música nos anos 90 tocando em numa casa noturna dos Jardins que era muito conhecida e já não existe mais. Chamava “Paisà“, e ali toquei em duo com um saxofonista durante muitos anos. O repertório era excelente e Tema de amor de Gabriela era um dos “sucessos” da dupla. É um belo samba-canção, e eu particularmente gosto mais desse estilo do que de Bossa Nova. E não só isso: considero o Jobim melhor como compositor de samba-canção do que de bossa nova. Como disse alguma vez, não troco um “Dindi” por 10 “Vivo sonhando“.
‘Garota de Ipanema’
Para gravar temas muitos conhecidos e com muitas gravações pelo mundo – como é o caso de “Garota de Ipanema” – só tendo alguma coisa nova ou a mais para dizer. Eu acho que a minha versão é original, diferente das outras sem ser exagerada e forçadamente diferente. A harmonia ficou bastante diferente da original, a quebrada rítmica da parte A é bacana (lembra um pouco a célula rítmica do Partido Alto) e, além disso, essa canção é uma plataforma ótima para improvisar.
No CD só tem duas músicas com percussão, e esta é uma delas. O bacana é que o percussionista, o super talentoso Douglas Alonso,  utilizou um vaso (ou moringa) no lugar do surdo e com isso conseguiu um som mais equilibrado entre a percussão e o violão.
b. Chico Buarque:
‘O Circo Místico’
Na realidade, nestas duas músicas o Chico entra como (excelente) letrista. O Circo Mistico é uma das maravilhosas canções que ele fez em parceria com Edu Lobo, o compositor da música. O arranjo inteiro, do inicio ao fim, é traspassado por um motivo melódico próximo dos “patterns” ou “fórmulas” que a gente vê no estudo de escalas. Esse motivo se apresenta logo no início da canção e vai aparecer umas dezenas de vezes. Uma das coisas interessantes nesse arranjo é o uso dos harmônicos artificiais combinados alternadamente com notas “normais” e que criam a ilusão de que todas as notas são os chamados “harmônicos”. Essa técnica foi desenvolvida pelos mestres da guitarra Lenny Breau (um dos meus ídolos) e Ted Greene, e hoje aperfeiçoada pelo virtuoso Tommy Emmanuel. O rei dessa técnica aqui no Brasil é o virtuose e querido colega Genil Castro.
‘Todo o Sentimento’
Utilizo essa mesma técnica no inicio de “Todo o sentimento”, mas de uma forma mais complexa, que consiste em tocar os harmônicos artificias simultaneamente com as notas normais. De novo, o efeito criado é a ilusão de que todas as notas são harmônicos artificiais. Outra coisa interessante nesse arranjo que logo na exposição do tema utilizo o polegar da mão esquerda como um quinto dedo, como fazem com frequência Guinga e Marcus Tardelli.

c. Ivan Lins:
‘Dinorah, Dinorah’
A gravação original de Ivan Lins tem um quê de ritmo latino-americano, mas eu fui um pouco além e fiz o arranjo utilizando um ritmo cubano chamado “som montuno”, um dos tantos tipos de “son” cubano. Pode parecer raro que tenha incluído esta música no repertório, já que ela não tem jeito de “canção”. Mas, além de representar a diversidade do cancioneiro brasileiro, é uma composição emblemática por ser muito conhecida no exterior. Foi a primeira música de Ivan Lins gravada por um estrangeiro, no caso o incrível George Benson, e com muito sucesso! Essa gravação lhe abriu as portas do mercado internacional a Ivan Lins, hoje um autor reconhecido no mundo todo.
Além desse detalhes, é bem incomum ouvir arranjos de violão solo nesse ritmo. A linha de baixo é “atravessada” e difícil de concatenar com a melodia. É o arranjo mais improvisado do disco, toda a introdução e o 1° “A” foram improvisados no estúdio e seria incapaz de reproduzir o que toquei. E depois de expor o tema tem mais uma seção improvisada, desta vez sobre uma sequencia harmônica bem comum de música cubana, a famosa II_V_Im7_IV7. Acho que deu um bom contraponto com os outros arranjos do CD, mais sérios, estruturados e certinhos 🙂
d. Renato Motha:
‘Menina da Lua’
Há duas versões mais conhecidas dessa música belíssima, a do próprio autor, bem bossa, e a versão da Maria Rita, bem mais lenta, gravada no seu primeiro CD. A versão do Renato é ótima, e ele canta muito bem mesmo. Mas, eu me inspirei na versão da Maria Rita, acompanhada somente pelo grande pianista e arranjador Thiago Costa. Inclusive tenho que confessar que roubei uns acordes da versão dele e adaptei para o violão.

e. Paulinho Nogueira:
‘Simplesmente’
Essa música tem muito significado sentimental para mim porque, para minha sorte, quando era moleque e estava começando a tocar, caiu na minha mão o método de violão do Paulinho Nogueira. Esse método me ajudou muito na época e, além de ser bacana do ponto de vista violonístico, é um método que transborda carinho, delicadeza. Dá para chamar de um método bom e fofinho rsss. Tem desenhos super simpáticos e tem textos meio líricos, como aquele que diz que às vezes o violão acorda de mau humor e não quer tocar direito e a nós, violonistas, nos cabe respeitar. E, como disse antes, eu gosto de arranjar as músicas que gosto de cantar, e a segunda parte dessa essa canção é uma das melodias mais bonitas da mpb.  Além de tudo isso, eu desejava revindicar compositores menos conhecidos ou valorizados, como é o caso do Paulinho Nogueira, Elton Medeiros e Renato Motha.
f. Toquinho:
‘As razões do Coração’
Não tenho certeza, mas acho que é o primeiro arranjo que fiz para violão, há muitos anos, muitos mesmo. Se não foi o primeiro, foi um dos cinco primeiros. Eu sempre adorei essa música e, pessoalmente, a considero a melhor composição do Toquinho, superior a “Boca da noite“, que é a que os colegas músicos citam quando pensam qual seria a melhor. A melodia é bastante sofisticada, fora até do padrão do Toquinho, começando com uma tremenda maior no tempo forte. Tem uma harmonia bacana e, por acaso, o meu arranjo está no mesmo tom que a versão original. Me parece que é o único caso do CD.
g. Djavan:
‘Sim ou não’
Outra dessas melodias que sempre gostei e que canto, internamente ou de verdade (sou daqueles que canta aos berros dentro do carro 😁)  A sofisticação melódica, harmônica e rítmica, emfim, a musicalidade de Djavan é incrível, e mais ainda levando em conta que é pura intuição, ele não tem conhecimento teórico. Ele fez essa composição em 1980, e permanece bem moderna.
A introdução tem uns recursos de vozes que o pessoal chama informalmente de “manobras Guinga“, devido a que são recursos que o mestre usa com frequência.
O arranjo previa uma improvisação sobre a forma da música e, modéstia à parte, gostei bastante do resultado, ficou muito melodioso e “discursivo”, que é o tipo de imporvisação que eu gosto.
Por falar em improvisação, das doze músicas do CD, abri improvisação para apenas quatro, e esta é uma delas, juntamente com Garota de Ipanema, Simplesmente e Dinorah, Dinorah.
h. Elton Medeiros:
‘Coração Deserto’
Como disse acima, eu achava importante, além de reverenciar compositores consagrados como Jobim, revindicar também compositores menos conhecidos. O Elton Medeiros é mais conhecido como sambista e parceiro de Paulinho da Viola, mas é também um grande compositor de canções. Neste caso especifico, é uma valsa, e é difícil acreditar que uma pessoa que não tem instrução musical formal seja capaz de compor uma música com uma melodia e harmonia tão sofisticada quanto a de “Coração deserto”. As modulações são surpreendentes, e precisa ter muito bom ouvido e intuição para conseguir mudar de tom desse jeito incomum, porém musical.

Um detalhe curioso é que eu não chego no estúdio com a música 100% pronta, uma boa parte eu crio na hora mesmo. É o caso da introdução dessa música, eu fiz no mesmo dia da gravação. Eu estava incomodado porque a melodia começava “de cara”, sem uma preparação, e felizmente surgiu uma ideia bacana. A introdução de ‘Todo sentimento‘ foi criada na noite anterior à gravação. Outra parte criada no estúdio foi a repetição da parte B de “Tema de amor de Gabriela“.

Outra coisa que criei na hora de gravar mesmo foi a última frase da introdução de “Falando de amor“, frase que se repete no fim do primeiro “A”. Estava gravando essa música e o Thiago Faria, dono e técnico do estúdio, teve que parar a gravação porque precisava almoçar com o filhinho dele. Eu disse para ele almoçar à vontade e que, enquanto isso, iria aproveitar para estudar. E aí surgiu essa frase, com uma sonoridade tipicamente flamenca e uma letra oculta: “O Thiago foi almoçar” (Sol, Ré, Mib, Do, Si, Lab, Sol), dedicada a ele, claro. Quem quiser conferir, aparece em 0:33 e depois em 1:07.

WG – Como e quando você está preparando o lançamento do cd?
CP – Felizmente o lançamento já aconteceu . Teve um concerto de pré-lançamento no Memorial da America Latina no dia 25 de setembro. No dia 5 de outubro foi o lançamento digital oficial, data em que o CD passou a estar disponível nas principais plataformas digitais de download e streaming. Inclusive foi destaque da semana do Tidal, que é justamente uma plataforma de conteúdo diferenciado e com maior resolução de áudio.
Do dia 11 ao 14 de outubro apresentei o CD na Argentina, durante o Festival Guitarras del Mundo. No dia 10 de novembro tocarei em Montevideo, Uruguay; depois tocarei no dia 17/11 no Instituto Cervantes em São Paulo, no dia 24/11 em Brasilia e no dia 08/12 no especialíssimo Espaço 91, em São Paulo. Estou negociando uma apresentação em Porto Alegre para 3ª semana de dezembro no maravilhoso Café FonFon, mas ainda não está confirmada.
Recebi as caixas com o CD físico na terça feira passada, dia 23 de outubro, de forma que em algumas semanas também o CD vai estar disponível. Curiosamente, a maior parte vai para o Japão, um país em que o mercado de CD físico continua forte.

WG – As ausências de Cartola, Baden, Cartola, Bonfá,…nos aponta para um volume dois sobre a canção brasileira?
CP – Certamente. Se tudo der certo, quero gravar um segundo volume. Uma música que com certeza vou gravar é “Causa perdida” da grande Rosa Passos. E tenho arranjos prontos de “Bananeira” de João Donato, “O pato“, da desconhecida dupla Neusa Teixeira e Jayme Silva e “Lembra de mim“, de Ivan Lins e Vitor Martins, entre outros. Compositores bons não faltam. Tem ainda Lupicínio, Ary Barroso, Caymmi (Dorival e Dori), Carlos Lyra, Nelson Cavaquinho, Gismonti, Menescal, Noel, Ataulfo, Milton, Gil, Gonzaguinha, João Bosco, Marcos Valle, Francis Hime, Joyce... O cancioneiro brasileiro tem tantas canções bonitas que é muito difícil escolher quais entram no CD, e mais difícil ainda quais ficam de fora.

 

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