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Disco inédito com Victor Biglione marca os 60 anos de Cássia Eller

Augusto Pio, Estado de Minas, 10/12/2022
Hoje é dia de Cássia Eller. Neste sábado (10/12), a cantora estaria completando 60 anos. Ela morreu em 29 de dezembro de 2001 de infarto do miocárdio, causado por malformação cardíaca. Tinha 38 anos. Como tristeza não era a praia dela, os fãs ganham um presente da “sessentona”: o disco inédito “Cássia Eller & Victor Biglione in blues”, que acaba de sair pela Universal Music.  Com 10 faixas, o álbum reúne clássicos do rock, do blues e do jazz gravados nos estúdios cariocas da Polygram, hoje Universal Music, em 1991 e 1992.
Guitarrista, compositor, arranjador e produtor argentino naturalizado brasileiro, Biglione conta que as gravações ocorreram depois do show da dupla no Circo Voador, no Rio de Janeiro. O tesouro foi para a gaveta, segundo ele, porque a gravadora temia que Cássia ficasse estigmatizada como cantora de rock, o que poderia atrapalhar a carreira dela.

Falei com o responsável, o produtor musical Max Pierre, que o aquilo (o veto) era uma bobagem. Disse pra ele: isso é um projeto especial meu e um projeto especial dela. São dois artistas fazendo um projeto extra lindo, que não vai atrapalhar a carreira de ninguém.”

Biglione insistiu, lembrou a Pierre que era guitarrista de jazz fusion. “É um projeto especial, os músicos norte-americanos não se cansam de fazer isso. Eles se juntam para fazer uma coisa bonita e depois cada um segue o seu caminho”, argumentou.

 

Chico Chico resgatou obra da mãe

Há pouco tempo, o filho da cantora, Chico Chico, procurou Biglione. Disse que a mãe faria 60 anos em 10 de dezembro e gostaria de lançar o álbum inédito dela.

Orgulhoso, ele comemora o lançamento, 30 anos depois da gravação. “O disco não sofreu nenhuma alteração, só o remasterizei com o Ricardo Garcia, craque no assunto. O som ficou lindo.” A seleção do repertório coube a Biglione, que se lembra bem do dia em que entregou a Cássia a fita cassete com as canções.
Eu havia escutado uma menina cantando Beatles com um tom muito bonito, e depois uma música do Renato Russo. Ela abria com ‘I got a feeling’, de Lennon e McCartney. Falei: essa menina canta muito. Procurei me informar e a produtora Lígia Alcantarino me disse para dar um toque nela. Cássia foi lá em casa”, relembra.
O guitarrista lhe contou que gostaria de gravar rock, blues e jazz. “Acho que sua voz encaixa perfeitamente nesse projeto, topa.? E ela ali, muito tímida e na dela. Disse que o repertório seria com canções dos Beatles e Jimi Hendrix, entre outras feras”.
Cássia topou. Victor Biglione tinha data no Circo Voador, e os dois ensaiaram dali a três dias. “Cheguei ao estúdio com a banda completa, tal como está no disco, dois teclados, metais, guitarras… Quando ela abriu a boca, ‘comeu com farinha’, negócio impressionante”, relembra.
Fizemos as datas no Circo, ela matou a pau. Ficou o maior badalo, só se falava naquilo. Fizemos vários shows lá, depois fizemos duas semanas no Jazzmania e começamos a gravar o disco.”
Os dois, aliás, se apresentaram em várias ocasiões: na Eco/1992, no Rio de Janeiro, “um showzaço”, segundo ele; no Free Jazz Festival, com Albert King e Robben Ford; em palcos de São Paulo e Rio de Janeiro. “Foi mais ou menos um ano de shows juntos”, diz Victor.

Mágoa e mal-entendidos

A negativa de Max Pierre, que impediu o lançamento do disco, não foi o único problema, revela Biglione. “Depois veio o pior. Ao que parece, Cássia foi instruída por alguém a dizer coisas sem fundamento”, lamenta.
Isso me fez sofrer, muito mais do que o disco não ter sido lançado. Diziam que ela havia declarado que não ficou satisfeita, que não cantou bem no disco e por isso ele não sairia. Pensei: se ela não cantou bem, então não entendo mais nada de música”, relembra.
Você pode imaginar o Zé Nogueira e eu ouvirmos aquilo? Produzimos o disco no estúdio, com todo o carinho e cuidado, refazendo as vozes compasso por compasso, misturando canais gravados e muitas outras coisas.”
Doeu – e muito. “Uma coisa é falar que, mercadologicamente, vai atrapalhar. Você aceita. Mas botar a desculpa do lance de que ele era ruim é muito chato. Eu pensava: poxa, será que o mundo é isso mesmo? Você faz um trabalho bonito, honesto, e depois tem de ouvir que está ruim? Mas nada como um dia após o outro, o álbum está sendo lançado agora. Está maravilhoso. Tenho muito amor por esse trabalho, digo que este disco coloca as releituras brasileiras de rock em outro patamar.”

Na opinião do guitarrista, trata-se de um trabalho atemporal. “Na época, a Polygram me deu tudo, pude experimentar muitos timbres, foi muito legal. É um disco que não se perdeu no tempo, não soa datado. A Universal garantiu que, em breve, sairá o vinil e o minidocumentário, que até já comecei a filmar”.

Foram muitos os momentos especiais da dupla em estúdio. “Eu e Cássia entramos de cabeça no ritual mágico”, diz Biglione, ao comentar a faixa “Same old blues”, marcada, segundo ele, pela ancestralidade e “pegada quase religiosa”.

Viagem com Hendrix

Biglione lembra que Jimi Hendrix morreu antes de concretizar sua almejada colaboração com Miles Davis. Ao criar o arranjo de “If six was nine”, o guitarrista diz que tentou imaginar a fusão da “intrincada sonoridade” do guitarrista com o fraseado do trompetista. “E Cássia embarcou lindamente nessa viagem”, observa.

Outro momento que Biglione destaca se dá em “Prision blues”. Cássia Eller está “em estado bruto” naquela “autêntica cacetada”, afirma. Já em “When Sunny get’s blue”, a cantora exibe “interpretação sedosa e elegante”, nas palavras dele.

Victor chama a atenção para o fato de sax-alto, sax-tenor, trompete e trombone se juntarem para dar suporte à “interpretação gutural de Cássia” em “I’m your hoochie coochie man”.

A superbanda da dupla

Victor Biglione, que tocou guitarra e violões, contou com uma superbanda para gravar o disco ao lado de Cássia Eller. Participaram do projeto:
Ricardo Leão (teclados), Marcos Nimrichter (órgão), André Gomes (baixo elétrico), Nico Assumpção (baixo acústico), André Tandeta (bateria), Zé Nogueira (sax-alto e soprano), Chico Sá (sax-tenor), Zé Carlos Ramos (sax-alto), Bidinho (trompete) e Serginho Trombone (trombone).
Gravação, mixagem e masterização ficaram a cargo de Sérgio Murilo e a remasterização de Ricardo Garcia. Biglione e Zé Nogueira assinaram a produção musical.