Lucía Boffo: uma canção entre Berlin e Ushuaia
Fernando Ríos, www.argentjazz.com.ar, 27 de junho de 2022
Através de um punhado de canções próprias, Lucia Boffo expressa em Nómade, seu primeiro disco solo, uma gama de textos e melodias altamente expressivos. Gravado em meio à pandemia e à dor pela morte do pai, entre sua nativa Ushuaia e Berlin, onde agora reside: “o feedback das pessoas foi como um presente da vida e me ajudou a não me sentir tão sozinha“, diz Lucia.
“Afastar-se de tudo o que se conhecia foi libertador para mim. A distância abriu a possibilidade de me observar em um novo contexto. Ela instalou uma espécie de silêncio e solidão que me permitiu ouvir a música que estava tocando dentro de mim e isso não era nada parecido com o que eu fazia antes. Eu também não era a mesma”, diz Lucía Boffo. O resultado palpável dessa busca é Nómade, o álbum que ela acaba de lançar com um punhado de músicas próprias e o sentimento na superfície.
Fernando Ríos – Qual a origem do projeto que deu origem ao Nómade e à edição da gravadora Ears&Eyes?
Lucia Boffo – É um projeto anterior à possibilidade de publicá-lo em Ears&Eyes, embora eu tenha conhecido Matthew Golombisky, seu diretor, muito antes. Acho que de um Festival em Roseti, quando toquei com o Andrés Marino. Naquela época, Matthew nos disse que tinha a gravadora e que gostaria de lançar nosso material. Mas já tínhamos acertado com o Club del Disco, onde finalmente foi lançado.
FR – Você está se referindo ao Dandelion, que saiu no segundo semestre de 2017?
LB – Sim. A partir de então, a possibilidade com Matthew estava sempre aberta. Além disso, continuei a assistir com muito interesse todo o material que ele editava, de amigos que amo. Então quando eu tinha o material do Nómade, mandei pra ele. Ele gostou e finalmente conseguimos finalizar a edição em sua gravadora. O que me deixa muito feliz, porque eu precisava de uma gravadora assim, com essas características, neste momento da minha carreira.
FR – Quais eram as características que você estava procurando?
LB – Ter uma edição que me conectasse com a Argentina, mas ao mesmo tempo pudesse chegar também fora do país. E o selo de Matthew atende a essas condições. A obra circula no país, mas também no exterior. Neste momento tem gente que está comprando o disco nos Estados Unidos, aqui em Berlim, na Espanha, está sendo ouvido em muitos lugares e isso é muito importante para mim.
FR – Em Nómade todas as músicas são suas, mas na anterior você também compôs, só que em dueto com Andrés.
LB – Sim, com Andrés compusemos muito juntos. E é ótimo. Mas isso também significa que muito do seu próprio material é deixado de lado. É inevitável. Enquanto eu continuei compondo, sempre querendo fazer meu próprio álbum. Quando cheguei a Berlin em setembro de 2019 com meu parceiro Ramiro Zayas, descobri que tinha muito tempo livre. Algo incomum quando eu estava em Buenos Aires. E também usei esse tempo para compor. Nesse momento chegou a pandemia, logo depois que meu pai faleceu e foi o momento mais difícil da minha vida. O tempo livre tornou-se algo indesejado. Estávamos praticamente trancados. Não só por causa da pandemia, mas também não pudemos sair do país por causa de uma questão de papel. Apenas um mês depois eles me deram o visto oficial que dizia que eu era residente…
FR – Você sente que o álbum, talvez pelo próprio título, representa momentos tão difíceis?
LB – Com certeza. Este álbum começou como uma busca comigo mesmo. Eu queria trabalhar justamente no conceito nômade. Eu sou da Terra do Fogo e como você sabe os povos originários eram nômades. E ao mesmo tempo é a história da ilha. Meus pais não são de lá. Acabei não morando lá, mesmo amando o lugar e voltando sempre. Então comecei a trabalhar nesse conceito e tudo o que isso implica. O que deixamos para trás, a distância, o desenraizamento, as ilusões. As expectativas. As emoções. E como estamos processando tudo o que nos acontece à distância.
FR – E as músicas acabaram refletindo tudo isso…
LB – Sim. A poesia contida na letra era minha maneira de repensar tudo o que havia acontecido, tudo o que eu sentia. Naquela época eu achava que ela só falava de mim, do meu universo, das coisas que aconteciam comigo. Mas depois que o álbum saiu, conheci muitas pessoas com histórias parecidas, que me agradeceram por colocar em palavras o que eles também sentiam. Então o que começou como algo lúdico, acabou sendo como um remédio para poder passar por tudo o que aconteceu com a gente. O feedback das pessoas foi como um presente da vida e me ajudou a não me sentir tão sozinha.
FR – Outro elemento único do álbum é que ele foi concebido e feito entre duas cidades, tão distantes uma da outra…
LB – Sim, começamos a trabalhar nele com Daniel Schnock, que o produziu. Trabalhamos nos arranjos, ele em Buenos Aires, eu em Berlin. E comecei a gravar à distância com artistas que estavam na Argentina. Aqui, em Berlin, gravei com o Quique Sinesi, que é um grande músico argentino que mora em Berlin e que, além de ser uma eminência, é um cara super humilde e muito generoso. Ele nos ajudou muito a nos inserirmos na cena local, mas também concordou em vir até minha casa para gravar. Para mim foi um momento lindo que vou guardar para sempre. Depois pude ir a Ushuaia e lá conheci Juan Ignacio Sueyro, um grande músico que morava em La Plata, mas havia se mudado para o sul. Lá ele, junto com outro grupo de amigos, me ajudou a gravar a maior parte do álbum, o que foi muito difícil para mim depois de tudo que eu havia vivenciado.
FR – Você teve a oportunidade de apresentar o álbum lá?
LB – Sim, felizmente sim. Foi muito fofo. Montei um grupo com Mathilde Vendramin no violoncelo e backing vocals, Nana Tarui no violino e backing vocals, Zuza Jasińska: looper e backing vocals, Chris Sergeant: baixo e Leo Gerstner Osenda na bateria. Apresentamos em meados de junho. Em março tínhamos levado para a Argentina, com Juan Ignacio Sueyro no piano, guitarra e baixo, Ximena Rosé Cholvis e Melina Moguilevzky nos coros, Mariana Iturri nos coros, flauta e efeitos, Andrés Marino: piano push e Frane nos vocais como convidados, Quique Sinesi na guitarra e Danilo Abad Celleri na percussão.
FR – O motivo inicial da viagem foi trabalhar?
LB – Na verdade com o Ramiro pensamos em estudar. Queríamos continuar nos estimulando, alimentando nossa curiosidade, ficando acordados. Poder conhecer pessoas com culturas diferentes, visões diferentes e acho que isso está acontecendo. Berlin é uma cidade muito desperta artisticamente. Há um movimento underground muito grande, muito ativo, como em Buenos Aires. E os músicos são parentes próximos e não há discriminação de idade. É uma cidade que abre as suas portas aos artistas. Por isso, além dos meus grupos, toquei também nos de Armando Carrillos, no Ramiro’s, no Humboldt Big Band, com Quique Sinesi e com a dupla com Andrés Marino, que está morando aqui.
FR – E você está estudando?
LB – Estou terminando meu primeiro ano de canto e composição Jazz no Instituto de Jazz da Universidade de Artes de Berlin. Quando fui aceito, uma das propostas do meu professor era justamente me acompanhar no meu processo de composição. Eles têm um visual bem amplo que é super interessante. Acho que estou trabalhando com eles na minha própria música. Com músicas que são principalmente em espanhol. Focado em trabalhar musicalmente o que a poesia diz. E isso parecia lindo e muito enriquecedor.
FR – Na Argentina você foi reconhecida como um cantora mais próxima da experimentação do que da tradição do jazz. Foi um processo ou você se sentiu assim desde o início?
LB – Acho que com o passar dos anos comecei a sentir que a voz dos outros estava se tornando cada vez mais difícil para mim. Era como estar em um lugar que eu não queria. Acontece que encontrar um, é verdade, é um trabalho enorme. Além disso, a voz humana muda ao longo da vida e temos que ser realistas e aceitar essa mudança. Encontrei em Berlin aquele espaço para poder me ouvir. Para descobrir o que estava acontecendo comigo, deixando para trás meus próprios preconceitos. Tentando esquecer quem eu era em Buenos Aires ou o que se esperava de mim. É um processo difícil, mas totalmente enriquecedor.
Nômade – Lúcia Bofo
Lucía Boffo: vozes, sintetizadores, composição e arranjos
Daniel Schnock: clarinete, sintetizadores, arranjos
Juan Ignacio Sueyro: piano, sintetizadores, baixo elétrico, bateria, guitarra e arranjos
Nanaco Tarui: violino
Violeta García : violoncelo
Flavio Romero: contrabaixo
Patricio Bottcher : flauta transversal
Ingrid Feniger: clarinete baixo e sax tenor
Quique Sinesi : violão
Frane: voz em “Disappear”
Marina Gunn, Lola Boffo e Ximena Rosé Cholvis : coros
Andrés Marino: empurrar piano
Gravações:
Berlin (Home Studio, Andrés Marino), Buenos Aires (Home Studio) e Ushuaia (Om Studio e Hotel Arakur)
Mixagem: Om Studio (Marcos Silvestrini)
Mixagem e masterização: Pablo López Ruiz
Fotografia: Andrea Vargas, Alveré Di Pilato (Direção de Arte)
Arte de Capa: Hugo Muñoz
Produção musical: Daniel Schnock e Lucía Boffo
Produção geral: Lucía Boffo.