Argentina

América Latina torna-se uma Big Band

Fernando Ríos, www.argentjazz.com.ar, 27 de agosto de 2021

A pandemia privou os músicos de jazz do palco e do encontro de colegas. Mas a virtualidade, inicialmente assumida como confinamento, acabou propiciando a criatividade conjunta. E então a distância não era grande e as telas aproximaram talentos e vontades. Nesse contexto, surgiu a Big Band latino-americana, um encontro de diferentes referências, antecipando um futuro de shows e música compartilhada. Como parte desse movimento, Alejandro Demogli analisa o fenômeno para argentjazz.

Fechar-se dentro de si mesmo nos força a ir mais fundo. Para questionar você. Para reformular você. Para experimentar coisas novas. E você acaba indo a lugares que não teríamos alcançado da forma anterior”. Quem se expressa assim é Alejandro Demogli, guitarrista com larga experiência que agora, do estúdio que montou em sua casa, se tornou um dos principais promotores da primeira Big Band latino-americana, integrada à distância pela principais referências do jazz na região.

 

Fernando Ríos – Parece ilógico, mas parece que as fronteiras pré-pandêmicas foram decisivas. Em vez disso, agora existem novas maneiras de se aproximar, apesar da impossibilidade do encontro real.
Alejandro Demogli Totalmente. Pense nessa big band. Isso antes era impensável. Porque era impossível reunir todas aqueles músicos em algum lugar para tocar. Mas apesar dessa loucura pandêmica, isso tudo foi montado. Com cada um tocando em casa. E, finalmente, esse movimento originou algo impensável: o surgimento de organizações internacionais dispostas a investir para que isso finalmente acontecesse pessoalmente. É como se fosse uma lógica reversa.

 

 

FR – E dentro dessa lógica reversa, o que aconteceu com a improvisação, componente substancial deste tipo de música?
AD – Outra coisa incomum. O que é tão importante aqui ficou um pouco de fora e a produção foi privilegiada. Como você sabe, o jazz é gravado ao vivo. E muitas vezes esse take não está muito relacionado ao tema original e nem mesmo a outro take anterior do mesmo tema. Mas nessa gravação não foi assim. Tudo foi gravado em camadas. Em outras palavras, existe uma produção. Mas quando você ouve aquela música, não soa assim. Soa no espírito acima.

FR – Ao ouvir, parece que estão todos tocando ao mesmo tempo …
AD – Claro. Antes, seria impensável gravar jazz com essa lógica. Mas como eu estava dizendo, toda essa loucura nos levou a outra dimensão. Isso nos forçou a ser mais criativos. Fato esse que mudou nossos paradigmas …

FR – Como surgiu essa big band latino-americana?
AD – É um projeto que tem vários fomentadores. De um lado, Gianni Bardaro, que é um saxofonista italiano que vive na Colômbia há muito tempo, e de outro Kike Purizaga, um incrível pianista peruano que ganhou vários Grammys. Eles começaram a pensar nessa ideia de uma big band de músicos latino-americanos. Conversaram sobre isso com Horacio ‘El Negro’ Hernández, um cubano que para mim é um dos melhores bateristas de jazz latino do mundo. E aos poucos, eles começaram a esboçar o movimento.

FR – E como você se integra?
AD – Hernández e Gianni me chamaram e junto comigo veio Oscar Stagnaro, um tremendo baixista peruano; e assim convocaram outros artistas, todos referentes em seus países. Juntei alguns nomes, como os trompetistas, Sebastián Jordán, que é chileno, Walmir Gil e Junior Galante do Brasil.

FR – O outro argentino é Javier Girotto, saxofonista que vive há muitos anos em Roma.
AD – Bem, Javier foi trazido por Gianni. Eles se conhecem há muito tempo. Como eu ia dizendo, estávamos todos sugerindo nomes, comentando sobre músicos que achávamos que poderiam contribuir para o que estava sendo montado. Assim chegaram também Carlos Zambrano da Venezuela e Patricio Bonilla da República Dominicana, dois grandes trombonistas.

FR – E como o repertório foi montado?
AD – A ideia sempre foi fazer música original. A primeira música foi Bogo, de Bardaro. Uma homenagem a Bogotá, cidade onde reside. É uma música incrível, com uma dificuldade técnica bastante grande, mas apesar disso soa totalmente nova. A partir daí seguimos com canções dos demais músicos que integram a banda, sempre com fortes raízes latino-americanas.

FR – Como tudo continua a partir da conformação do seu repertório?
AD – Bom, acho que essa primeira música foi gravada de forma praticamente caseira. No meio da pandemia e da casa de cada um. Por exemplo, acabei montando um estúdio, uma vez que não tinha antes. Mas a partir daí, e enquanto seguíamos preparando outras edições, o projeto foi apresentado a diferentes entidades e organismos internacionais, que já manifestaram a intenção de arcar com as despesas para queo projeto pudesse continuar. Por enquanto, continuamos trabalhando com essa possibilidade um tanto reclusa, mas com certeza assim que tudo melhorar poderemos nos encontrar. Continuamos trabalhando mesmo assim. E isso é ótimo.

FR – Você disse que montou um estúdio em sua casa. Você também está fazendo outras iniciativas lá?
AD – Sim, já estou fazendo isso. Já gravei muita música lá. Como todo mundo, eu costumava gravar em estúdios. E agora eu faço isso de casa. Eu coloquei tudo junto. Eu toquei … Bem, finalmente a gente acaba aprendendo coisas à força. E isso é bom. Porque no final das contas você acaba soando da maneira que deseja.

FR – Que outros projetos você tem, além da Big Band latino-americana?
AD – Existe uma organização internacional de escolas de música que não sei se vocês conhecem. Alaemus, é chamado. Núcleo todas as escolas e universidades, de Berklee para baixo. Trabalho lá como coordenador pedagógico e o diretor artístico é Oscar Stagnaro, baixista do Paquito D’Rivera e chefe do Departamento de Jazz Latino da Berklee. Com ele e outras pessoas temos o projeto de publicar jazz e música contemporânea de compositores latino-americanos, para que essa música seja conhecida e todo o bem que se faz na região seja conhecido. Com essa lógica gravamos minha música, Pintando Días, em formato de sexteto, com músicos do Brasil, México e Peru. (Ver vídeo)

 

 

FR – Tudo com o mesmo look integrador …
AD – Totalmente. Também estou em um projeto muito interessante de Nacho Mena, um dos melhores bateristas chilenos. Nacho fez digressões e gravou com Ornette Coleman, Pat Martino, Delmar Brown, Sam Morrison, Don Cherry, entre outros e nos anos 80 fixou residência no Rio de Janeiro, onde tocou e gravou com Egberto Gismonti, Hermeto Pascual, Gilberto Gil, João Donato , Sivuca e Ricardo Silveira.

FR – Agora, embora a pandemia o obrigasse a trabalhar em casa, você já andava com músicos de outras geografias …
AD – Sim. O que sempre pensei é que embora Buenos Aires seja uma cidade com uma forte presença cultural, ela tem suas limitações. Como tantas grandes cidades latino-americanas. E é por isso que seria até injusto pedir a ele que me forneça tudo que eu preciso para meu sustento e minha música. É por isso que sempre viajo muito e me conecto com pessoas de todo o mundo. Mas é claro que essa situação atual me colocou em outro lugar. Agora estou tocando e compartilhando projetos com músicos de outros países e faço isso de minha casa. E, como dissemos, em uma extensão muito maior do que antes, quando não havia restrições. É paradoxal, mas ainda é uma excelente oportunidade para nos conhecermos mais. Para trocar, colaborar e para que o resto do mundo conheça o bem e muito que se faz nesta parte do mundo.

 

 

Big Band latino-americana
Junior Galante ( Brasil), Pavel Zuzaeta (Cuba), Walmir Gil (Brasil), Sebastián Jordán (Chile), Eric Chacón (Venezuela) trombetas / Gianni Bardaro (Itália-Colômbia), Gerry López (México), Sergio Chaple (Cuba) , Sintia Piccin (Brasil), Javier Girotto (Argentina), saxofones / Patricio Bonilla (República Dominicana), Alfredo Tauber (Chile) , Xito Lovell (Panamá), Carlos Zambrano (Venezuela), trombones / Ale Demogli (Argentina), violão; Kike Purizaga (Peru), piano; Oscar Stagnaro (Peru), baixo; Fabio Ortiz (Colômbia), percussão; Horacio ‘El Negro’ Hernández (Cuba), bateria.

Ale Demogli Sextet – Alaemus
Oscar Stagnaro , Peru no baixo / Fernando Martínez , Argentina na bateria / David Maxwell Smith , EUA-México no sax / Quinzinho de Oliveira , Brasil no trompete / Guilherme Ribeiro , Brasil no piano / Ale Demogli , Argentina nas guitarras, composição e arranjos.

Quinteto Nacho Mena
Marcelo Martins , sax soprano / Andrés Sylleros , teclados / Marcelo Córdoba , baixo elétrico / Alejandro Demogli , guitarra / Nacho Mena (bateria e produção)