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Vitor Gonçalves ou o piano brasileiro em estado de arte

Wilson Garzon – A descoberta da música brasileira fez com que deixasse o rock e trocasse a guitarra pelo piano?
Vitor Gonçalves – Foi mais ou menos por aí sim. Ao longo das minhas aulas com meu primeiro professor, o Carlos Eugênio Paz, na Escola de Música Antônio Adolfo, no Leblon, fui avançando no conhecimento harmônico e descobrindo e me encantando com a música brasileira, principalmente bossa-nova e MPB.

WG – Em relação ao seu desenvolvimento como músico conte-nos um pouco da sua experiência na Itiberê Orquestra.Vitor Gonçalves-mont
VG – A orquestra do Itiberê foi uma verdadeira escola na minha formação. Entrei na oficina do Itiberê na Pro-Arte, que viria a se transformar na orquestra com 18 anos, quase que ao mesmo tempo que entrei na escola “tradicional”, na Uni-Rio. Nesse período em que participei da orquestra, 9 anos, aprendi muito sobre harmonia, ritmo, improvisação, estilos da música brasileira, arranjo, composição, tantas coisas … Toda essa bagagem que o Itiberê traz da experiência dele com o Hermeto é riquíssima. Foi um período extremamente fundamental no meu desenvolvimento.

Lá eu também tive a chance de buscar minha personalidade musical, de combinar todos esses elementos que ele trazia e digeri-los da minha maneira, coisa que o Itiberê sempre estimulava, e somá-los com interesses musicais que eu tinha (por exemplo durante um tempo eu fiquei muito envolvido com música cubana e afro-cubana), isso tem a ver com a universalidade da música que o Hermeto e o Itiberê sempre falam. Poderia aqui falar horas sobre quão rico foi o processo de aprendizagem lá, ver o Itiberê compondo na nossa frente durante os ensaios, criando as músicas e os arranjos na hora; o desafios de aprendê-las, tocar em grupo, escutar o coletivo e tocar coletivamente, saber acompanhar, desenvolver sua criatividade como solista, e por aí vai … Outra coisa muito importante desse período foram meus colegas musicais na orquestra, muitos com quem eu toco até hoje.

Eu me lembro de uma conversa com um grande compositor/arranjador argentino Guillermo Klein, em que ele falava de como é especial a relação que se cria com os colegas de universidade, e no caso dele foi uma tremenda geração de músicos de jazz americanos que foram contemporâneos dele na Berklee. No meu caso foi uma tremenda geração de músicos que passou pela orquestra do Itiberê. Essa fase da vida musical dos 18, 20 anos, em que você está descobrindo seu universal musical, expandindo, questionando, experimentando, explorando é muito importante. E dividir isso com colegas que você tem afinidade musical forma um laço muito profundo, e com muitos deles cultivado até hoje.

WG – O quinteto Bamboo foi a reunião de cinco talentosos e promissores instrumentistas brasileiros. Esse CD foi um passo à frente ou a continuação de seu trabalho na Itiberê Orquestra?
VG – Tudo que fiz e faço depois do trabalho com a Itiberê Orquestra é e será uma continuação desse trabalho. Afinal, como estava explicando na pergunta anterior, esse período foi muito marcante e todo esse aprendizado levarei a vida inteira comigo, portanto tudo será de alguma forma uma continuação daquilo. Claro, é um outro momento da vida, outro momento da carreira, outros rumos, outras buscas, outros desafios, outros questionamentos. Um passo à frente no sentido de continuidade, não no sentido de deixar pra trás tudo aquilo pra começar algo novo, simplesmente um outro passo, um novo passo, um passo posterior aquele dado naquele trabalho, mas sempre trazendo aquela experiência consigo.

WG – O encontro com o guitarrista Todd Neufeld foi fundamental na sua tomada de decisão para se mudar para New York? Como foi esse processo? O desejo de residir em NY já estava presente em você antes?
VG – Sim, o encontro com o Todd teve um papel muito importante nisso. Eu conheci o Todd na Itiberê Orquestra Família. Muitos americanos e estrangeiros vinham visitar os ensaios e ficavam encantados com o som e com o processo. Ficamos amigos e nos correspondíamos de vez em quando, ele me contava os projetos que estava envolvido e eu fazia o mesmo, ele voltou a visitar o Rio mais umas duas vezes eu acho. E ele sempre falava que eu deveria me mudar pra NY, que falava de mim para seus colegas músicos. E esse desejo já existia em mim sim, mas eu sentia que ainda não era o momento.

Em 2008, se não me engano, eu saí da Itiberê Orquestra Família e pouco depois comecei a trabalhar com a Maria Bethânia. Em 2011 fizemos um show em Miami e dali eu fui pra NY ficar umas duas semanas. Aí eu já estava decidido a viabilizar minha mudança pra aqui. Visitei algumas universidades aqui e comecei a focar nisso. E nessa estadia o Todd marcou um show em que tocamos eu, ele, o Thomas Morgan e o Joey Baron (baterista). Depois desse show ficou bem claro pra mim que esse era o momento e que eu ia perseguir esse objetivo de me mudar.

WG – Depois de trabalhar com Anat Cohen, Anthony Wilson e Vinícius Cantuária, entre outros, você decide gravar seu primeiro cd solo, Quartet. Ele representa um resumo da sua trajetória ou tem um conceito próprio?
VG – Um CD solo era algo que eu pensava em fazer há muito tempo já, inclusive tive uma oportunidade antes, enquanto ainda morava no Rio, que deixei passar. Mas eu não sentia que era o momento ainda e não queria me forçar a fazer aquilo. Depois que me mudei para cá comecei a compor mais e fazer alguns shows como líder. O projeto foi se concretizando e eu sentia que precisava registrá-lo. Não é um resumo da minha trajetória no sentido de representar explicitamente um pouquinho de cada etapa da minha carreira, é mais no sentido de registrar esse ponto em que eu estava que foi o ponto em que culminou todo esse processo iniciado lá na minhas aulinhas de violão com o Carlos Eugênio, passando pelas minhas aulas de piano com a Cristina Behring, pelo bacharelado na Uni-Rio com a professora Estela Caldi, pela “universidade” Itiberê Orquestra Família, pelo Grupo Bamboo e tantas outras coisas.

O conceito do CD é trazer essa minha bagagem e apresentá-la (na forma de composição, execução e arranjo) a alguns dos músicos de Jazz daqui que eu mais admiro, músicos esses que admiram e respeitam profundamente a música brasileira mas que não necessariamente são especialistas em executá-la, e ver nascer um resultado que é uma mistura desses dois universos. NY é um ambiente muito propício a esse tipo de encontro e de experimentação.

WG – Em relação aos músicos, além de Todd, como você conheceu Dan Weiss e Thomas Morgan? O quarteto se reuniu para gravar, ou ele já estava formado anteriormente?
VG – O Dan Weiss é um dos músicos para o qual o Todd sempre falava de mim, ainda quando eu estava no Rio. Eu não conhecia muito o trabalho dele até que pouco depois que eu me mudei eu fui ao 55 bar numa terça-feira ver o saxofonista David Binney, com quem o Dan estava tocando. E eu não conseguia desgrudar os olhos da bateria. Naquele momento eu imaginei que em algum ponto eu gostaria de tocar com ele, e o CD foi essa oportunidade.

O Thomas Morgan eu conheci naquele show que falei a respeito, com o Todd o Thomas e o Joey Baron (tem até alguns clipes no Youtube desse show pra quem quiser ver, me perdoem que a qualidade da imagem não é muito boa mas é um registro desse momento que pra mim foi histórico). Eu já tinha tocado alguns shows com o meu material musical, com o Todd, o Thomas e um outro baterista, também incrível, Richie Barshay. Mas algumas músicas gravadas nunca tínhamos tocado, e outras eu elaborei mais os arranjos para a gravação. Com o Dan toquei pela primeira vez nos dois ensaios que precederam a gravação.

 

WG – Das oito músicas que fazem parte do seu repertório, seis são de sua autoria. Conte-nos um pouco sobre o conceito de cada uma e quando foram criadas:

VG – 
Sem Nome
Essa música começou como um estudo de harmonia e voice-leading, ainda no Brasil. Aqui eu a desenvolvi um pouco mais, ornamentei um pouco a melodia, e mexi na estrutura rítmica, a maior parte do tema é em 7/4. Na parte B tem uma estrutura rítmica construída por um processo de redução, um compasso de 2/4 seguido por 12 pulsos, depois 9 pulsos, 6 pulsos e três pulsos. Não é diretamente inspirado na música clássica indiana, mas tem essa característica em comum no uso desse tipo de processo. A introdução e extrodução foi escrita depois, pouco antes da gravação. Nela utilizei uma linguagem harmônica pós-tonal ligada a música de concerto do século XX, um assunto que me interessou muito durante o curso de mestrado que fiz aqui.
Cortelyou Road
Essa música teve uma história parecida com a anterior, também começou com um esqueleto que era só a sequência harmônica e notas longas. Aqui em NY, na primeira casa que eu morei (na esquina da Cortelyou Road) eu elaborei a melodia a partir dessas notas longas e criei uma estrutura rítmica em 5/4, com algumas mudanças de compasso às vezes. A introdução e o arranjo depois do solo de guitarra vieram depois, também pensadas pra gravação. Essa reexposição do tema depois do solo utiliza um acompanhamento agrupado em 7, contrastando com o tema agrupado em 5, e as harmonias são bem contrastantes também.
Desleixada
A ideia dessa música surgiu após eu tocar e gravar com um guitarrista chamado Syberen Van Munster. Ele tinha uma composição em 9/8, e era um compasso difícil de tocar. Aí decidi criar uma peça que fosse um estudo, que explorasse esse compasso em diferentes combinações, 5+4, 4+5 e 3+3+3. E para isso utilizei a estrutura harmônica de uma valsa do Garoto chamada Desvairada. Essa valsa em alguns momentos tem uma frase rápida de 9 notas por compasso, daí veio a inspiração para compor esse “estudo” em 9/8. E por isso o nome da peça, meio que um trocadilho com a valsa do Garoto.

 

Winter Landscapes
Winter Landscapes nasceu numa sala de estudo em Bushwick no Brooklyn, onde eu dividia o espaço com um outro pianista, Dahveed Beroozi. Era uma tarde de inverno muito muito fria e da janelinha da sala eu podia ver a primeira grande tempestade de neve, tudo branquinho na rua, nos estacionamentos … A ideia musical foi inspirada numa peça do Bernardo Ramos chamada “Faça-se Luz” que tocamos e gravamos com o Bamboo no disco “Abertura”. Nessa peça o Bernardo utiliza um compasso de 11/8 que é mais ou menos derivado de um compasso de 12/8 com uma sub-divisão a menos. Eu resolvi compor sobre uma estrutura que alterna um compasso de 11/8 e um de 12/8 constantemente. E com o baixo e a guitarra e a melodia do piano eu criei umas ritmos intrincados onde cada parte está bem deslocada da outra, e como um tapete sob tudo isso está a mão esquerda do piano num ostinato que claramente marca os compassos.
De Cazadero ao Recife
De Cazadero ao Recife é um frevo que me foi encomendado pelo genial maestro Spok da Spok Frevo Orquestra. Eu conheci o Spok numa oficina de música brasileira que acontece há 20 anos na California, perto de São Francisco. Logo depois ele vinha com a orquestra dele tocar no Lincoln Center e me convidou pra participar, o que foi uma grande honra e emoção. E depois do concerto ele me convidou a compor e arranjar uma peça para o então novo projeto deles chama “Frevo Sanfonado” que destacava sanfoneiros de todas as regiões do Brasil tocando frevo com eles. Daí nasceu esse frevo que gravei com eles nesse disco fazendo a sanfona solista sobre o meu arranjo. A minha ideia era trazer essa música para esse quarteto mas que ela tivesse uma leitura completamente diferente. Porém quando eles tocaram, tocaram com se fosse um samba com aquele bumbo e baixo fazendo tum-tum tum-tum … Aí tive que contextualizar e explicar e mostrar o ritmo do frevo, que eles adoraram e ficaram super interessados. Então a nossa versão não é e nem se propões a ser um frevo autêntico, mas o ritmo do frevo ficou muito presente na execução, acho que talvez seja a música com uma interpretação mais explicitamente “brasileira” do disco.

 

The Touch of Your Hand
Essa canção eu compus para a minha esposa no dia seguinte ao dia em que nos conhecemos, e ela depois colocou uma letra que deu o título a música. É uma canção simples executada ao piano solo que encerra o disco. Achei que foi um fechamento apropriado ao disco, um canção de amor simples e lânguida depois de tanta informação rítmica … 🙂 E pra mim também serviu como um boa conexão com o início do disco que começa com piano solo e ritmicamente esparso.

WG – As outras duas, Samba do Perdão de Baden e Pinheiro e Se é por falta de adeus, de Jobim e Duran, representam músicos importantes e influentes na sua trajetória como músico?
VG – Sem dúvida Baden e Tom são músicos importantíssimos e de grande influência para mim, como não poderia deixar de ser. Mas na verdade o critério para a escolha não foi bem esse. “Samba do Perdão” é uma canção que sempre adorei desde que a cantora Mariana Bernardes me apresentou um disco do Baden com Paulo Cesar Pinheiro chamado “Cantores da Lapinha”. Todas as canções são lindas nesse disco e sempre tive uma ideia de rearranjar todas elas, mas por enquanto só fiz essa … 🙂 Esse arranjo, que eu fiz aqui, vinha tocando nos meus shows e achei que caberia bem no disco. Também representa um pouco dessa ideia da música brasileira sem ser explicitamente brasileira.

A música do Jobim e da Dolores eu conheci quando estava relendo o livro seminal do Ruy Castro “Chega de Saudade: a História da Bossa Nova”. Ele conta a história dessa música, que se não me engano foi a primeira parceria dos dois. Parceria que surgiu nos corredores da Rádio Nacional, quando Jobim mostrou essa canção a Dolores que na mesma hora pegou um guardanapo e um lápis de olho e ali mesmo rabiscou a letra. Enfim, eu simplesmente me apaixonei por essa canção e achei que seria um belo número no disco.

WG – Como está sendo o lançamento do cd nos Estados Unidos e aqui no Brasil? E quanto à repercussão crítica?
VG – Está ótimo. A gravadora Sunnyside Records é excelente e tem ajudado muito a colocar o disco no mundo. Já recebi mensagens de muita gente no Japão que adorou o disco, teve um escritor japonês que me fez uma entrevista … Aqui no Estados Unidos o destaque foi uma excelente crítica na revista mais importante de jazz, a Downbeat.

WG – E quanto aos projetos atuais e futuros, o que teremos pela frente em relação em relação a seu trabalho?
VG – Eu tenho um disco mixado e gravado com meu projeto “SanfoNYa Brasileira”, um trio de acordeom, baixo e bateria, com o Eduardo Belo e o Vanderlei Pereira. O disco conta com a participação do grande saxofonista Steve Wilson. É um projeto bem voltado para a música brasileira instrumental onde nós três trazemos nossas composições e arranjos. Então aguardem, esperamos finalizar o disco em breve. Outros projetos ainda estão por vir, tenho várias ideias mas ainda não decidi qual o próximo passo, provavelmente um disco de trio mais focado em canções.

LINKs

http://sunnysidezone.com/album/vitor-gon-alves-quartet

www.vitorgoncalvesmusic.com