Entrevistas

Bebel Gilberto lança “João”, com seleção de músicas gravadas pelo pai

Cantora diz que fez uma escolha afetiva das canções e convidou Chico Brown para tocar bateria no álbum, gravado em Nova York e já disponível nas plataformas.

Daniel Barbosa, Estado de Minas, 29/08/2023 04:00

Quando, nos primeiros meses de 2019, Bebel Gilberto preparava o álbum “Agora”, lançado em 2020, seu pai, João Gilberto, já estava com a saúde bastante debilitada. Ela ainda estava, também, às voltas com um conturbado processo de interdição do criador da batida da Bossa Nova, fruto de um imbróglio familiar. O novo álbum da cantora, o recém-lançado “João”, com que Bebel presta tributo ao pai por meio da gravação de músicas que ele tornou célebres, remonta, de certa forma, àquele período.

A cantora conta que, antes da morte do pai, em julho de 2019, eles se mantiveram muito próximos. Ela diz que sentia a necessidade de se expressar, de falar com ele e sobre ele. Dessa forma, “João” já estava presente, em estágio embrionário, enquanto se desenrolava o processo de pré-produção de “Agora”, conforme aponta.

Ela pontua que sempre acreditou conseguir se comunicar melhor por meio da música e que este seria o canal para falar sobre seu pai. Ao mesmo tempo, Bebel carregava a sensação de que só se sentiria autorizada a visitar a obra de João quando ele não estivesse mais por perto. “Quando acabei o ‘Agora’, eu já sabia, meio inconscientemente, que o próximo disco seria para ele”, comenta.

 

Na hora certa

Passados dois anos da morte do pai, Bebel entendeu que o momento havia chegado. Ao lado do produtor Thomas Bartlett, que também estava presente em “Agora”, ela entrou no Reservoir Studios, em Nova York, para gravar “João”. O guitarrista Guilherme Monteiro cuidou dos arranjos e aceitou também o desafio de tocar violão, instrumento no qual o homenageado é referência absoluta. Outros nomes, como Chico Brown, Kenny Wollensen e o próprio Bartlett estão entre os músicos que a acompanham.

Desse período de imersão no estúdio, resultaram 11 faixas, entre elas “Eu vim da Bahia” (Gilberto Gil), “Ela é carioca” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), “Caminhos cruzados” e “Desafinado”(ambas de Tom Jobim e Newton Mendonça). Bebel destaca que a seleção do repertório foi, sobretudo, afetiva. “Quis resgatar músicas que tivessem a ver comigo, que tivessem minha cara. Quem me conhece sabe que eu vou muito mais pelo coração do que pela cabeça, então fui nas coisas que eu gostava, sem nenhum viés comercial”, ressalta.

Ela explica que dois discos lançados por seu pai serviram de esteio para “João” – o que veio à luz em 1973, batizado apenas “João Gilberto” e apelidado como o “Álbum branco” do artista; e “Amoroso”, de 1977, que traz os arranjos de Claus Ogermann. “O ‘Álbum branco’ é a espinha dorsal desse meu novo trabalho”, observa. Dele foram pinçadas para “João” as faixas “Eu vim da Bahia”, “É preciso perdoar” (Alcyvando Luz e Carlos Coqueijo), “Undiu” e “Valsa (como são lindos os Youguis)”, ambas de autoria do próprio João.

Foi um disco feito quando estávamos morando nos Estados Unidos, eu com minha avó, então é um trabalho que fez com que eu me conectasse muito com meu pai. Tinha um quê de ansiedade, porque o fato de o álbum não ficar pronto nunca acabava atrasando nossa viagem de volta. Ao mesmo tempo, é um disco que me traz memórias lindas. A música engloba várias emoções, pode evocar até um cheiro, como o do pêssego, que eu adorava comer naquele período”, diz.

De “Amoroso” ela resgatou “Caminhos cruzados”, que considera ter sido a música mais difícil de cantar do repertório de seu novo álbum. “Eu tinha que fazer direito, o tom certo, a chave certa. Me envolvi muito no arranjo, cuidando para que cada pequena nota estivesse absolutamente correta”, destaca. Ela pontua, com relação à faixa de abertura, “Adeus, América” (Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa), que foi uma canção que levou alguns anos para entender.

“Só faz sentido para mim agora. Aquela música foi a história dele, mas, de alguma forma, também se tornou a minha história”, observa. “Adeus, América” está presente no álbum “Live at the 19th Montreux Jazz Festival”, lançado por seu pai em 1986. Outro tema selecionado por Bebel, “Eclipse”, presente em “João Gilberto en Mexico”, de 1970, é cantado em espanhol e tem letra de Margarida Lecuona. Desse mesmo disco, a cantora também buscou “Ela é carioca”.

Do seminal “Chega de saudade”, aparece em “João” o clássico “Desafinado”. Para fechar o álbum, Bebel escolheu “Você e eu”, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, originalmente registrada no terceiro disco solo do artista, “João Gilberto”, de 1961. O repertório de seu novo álbum se completa com “O pato”, de Jaime Silva e Neuza Teixeira, extraída do segundo disco de João Gilberto, “O amor, o sorriso e a flor”, lançado em 1960.

 

 

Trilha sonora doméstica

Bebel salienta que, pela primeira vez, está interpretando o repertório que ficou famoso na voz do pai de modo a revelar como tais canções realmente foram marcantes para si. “São músicas que ouvi durante toda a minha infância, então foi uma escolha de repertório muito afetiva, guiada pela intimidade. Não tive, em momento algum, a preocupação em me prender aos clássicos”, afirma.

Ela diz se recordar de ouvir seu pai tocando quando ainda era criança e não ter a menor ideia de que estava presenciando os bastidores de uma revolução na música popular brasileira. “Para mim, era só a vida acontecendo. Acordava, levava café e ele tocava violão. Era normal, fazia parte do meu cotidiano. Mas adorava ouvi-lo tocar seus exercícios de aquecimento todas as manhãs”, lembra.

Não teve nada disso. Só não me deixei levar por um caminho mais comercial, como, aliás, nunca me deixo. Peguei músicas que fazem sentido para mim. Meu produtor entendeu perfeitamente eu não querer gravar ‘Chega de saudade’, por exemplo, que é lindíssima, mas toca minha sensibilidade menos do que as outras que escolhi”, afirma.

“João” acaba por guardar, dessa forma, uma certa marca autoral, de acordo com Bebel. A identidade que ela imprime ao repertório passa por vários elementos – a forma de interpretação, os arranjos, a escolha dos instrumentos e até mesmo a escolha dos músicos. “Sempre me envolvo em todas as etapas dos discos que gravo. Neste fui coprodutora, o que me permitiu apontar os caminhos por onde seguir”, diz.

Guilherme Monteiro foi, a propósito, uma escolha muito acertada, comenta. Ela observa que o guitarrista e violonista teve a abertura necessária para que pudessem trabalhar em parceria, e que o resultado foi “um trabalho muito incrível”. “Ele vive para a música, é muito dedicado, e, ao mesmo tempo, é muito humilde, aceitou de mente aberta as minhas sugestões. Ele é quem assina os arranjos, mas eles foram concebidos conjuntamente. Pensando que meu pai nunca se repetia, eu acabei por alterar algumas passagens de acordes”, diz.

Seria ridículo eu tentar cantar igual a ele. Quis homenagear através das músicas, dos acordes, pensando na maneira como ele mudava os fraseados. Isso tudo foi um impulso inicial, mas o tempo todo tendo em mente que precisava estar sob meu controle, com todo o empenho para tentar atingir a genialidade do que ele criou‘.

 


Coleção de desafios

A cantora não nega que, mesmo com a possibilidade de imprimir ao trabalho uma marca pessoal, foi desafiador revisitar o repertório que o pai registrou ao longo de sua discografia. Ela diz que foram, na verdade, vários os desafios, como escolher as músicas certas, dentro da limitação que um álbum impõe, e cantar de uma forma que, ao mesmo tempo, evocasse o pai e estivesse no seu próprio tom e estilo.

Seria ridículo eu tentar cantar igual a ele. Quis homenagear através das músicas, dos acordes, pensando na maneira como ele mudava os fraseados. Isso tudo foi um impulso inicial, mas o tempo todo tendo em mente que precisava estar sob meu controle, com todo o empenho para tentar atingir a genialidade do que ele criou”, salienta. Ela observa que a questão emocional também foi algo que teve que ser trabalhado.

As sessões de estúdio foram carregadas de sentimento. Muitas vezes tive que parar, chorar, colocar para fora a emoção e começar de novo. Tem sido difícil. Eu lido com isso profissionalmente, como uma pessoa adulta, mas é difícil. Tive que trabalhar duro para abraçar essa situação. Meu pai e eu éramos muito próximos. Já se passaram quatro anos, mas eu adoraria ligar para ele e pedir conselhos. Isso é algo que nunca vai acabar”, ressalta.

Controlar a ansiedade antes do lançamento do álbum foi outro ponto. “Ainda estou processando esse trabalho. Tenho passado os últimos tempos angustiada com o que as pessoas vão pensar. Isso faz parte do processo. Mesmo na minha família, foram poucas pessoas que escutaram. Vem-me à cabeça, principalmente, o que João acharia desse trabalho”, destaca.

Para Bebel, o que mais chama a atenção na arte de João Gilberto é seu estilo, a maneira como ele transformava as músicas – o que não se resume à batida do violão.
“Há tempos, ele me falou de ‘Estate’ (dos italianos Bruno Brighetti e Bruno Martino, gravada em “Amoroso”), dizendo que, da primeira vez que ouviu, gostou, mas sentiu a necessidade de reinventá-la, imprimindo sua marca. Essa marca não é só a batida da Bossa Nova; passa pela produção, pela forma de frasear, de tocar o violão, de cantar, enfim, é tudo, um som que ele criou.”

1. “Adeus América” (Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa)
2. “Eu vim da Bahia” (Gilberto Gil)
3. “É preciso perdoar” (Alcyvando Luz e Carlos Coqueijo)
4. “Undiu” (João Gilberto)
5. “Ela é carioca” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes)
6. “O pato” (Jaime Silva e Neuza Teixeira)
7. “Caminhos cruzados” (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça)
8. “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça)
9. “Valsa” (João Gilberto)
10. “Eclipse” (Margarita Lecouna)
11. “Você e eu” (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes)