Gustavo Bergalli e a música que vem da alma
Fernando Ríos, www.argentjazz.com.ar, 24/06/2022
Ele tem mais de 50 álbuns gravados. Ele viveu 30 anos na Suécia. Ele percorreu o mundo com seu trompete. Ele dividiu sua paixão entre jazz e tango e tocou com os melhores músicos da história. Ele era um jovem rebelde na década de 1960 e hoje é um homem sábio que não acredita em orgulho e discriminação. Um artista criativo com uma verdade que o acompanhou durante toda a sua vida: “A música – diz ele – é um ato de amor“.
Uma dúvida perseguiu durante anos o jovem Gustavo Bergalli. Por que tocou jazz se nasceu na cidade do tango? Até que um dia encontrou Ernesto Sábato no metrô e timidamente lhe transmitiu sua preocupação. “Olha, jazz é música do povo. Como tal, sai da alma; e tudo que sai da alma é universal”, respondeu Sábato segundos antes de se perder entre túneis e catracas.
Nos dias sombrios de 1975, um já experiente Bergalli se mudou para a Suécia, onde passou os 30 anos seguintes como referência em seu instrumento, liderando seus próprios grupos, ingressando na Orquestra Jazz de Estocolmo e dividindo palcos com a grande história do gênero, embora periodicamente retornasse a Buenos Aires, onde agora está baseado. Entre um extremo e outro, o jazz e o tango continuaram a povoar a sua alma e a sua vida, agora sem as dúvidas que outrora confessou àquele escritor sombrio de poucas palavras.
Fernando Ríos – Que sentimento essa dúvida te deixa hoje, tantos anos depois daquele encontro casual com Sábato?
Gustavo Bergalli – Toda a minha vida me dediquei 100% ao jazz. E ele já estava fazendo isso até então. Sempre com aquela dúvida que me acompanhou por tantos anos. Mas a necessidade mais forte de fazer tango só veio depois da minha chegada à Suécia. Foi uma forma de reafirmar minha identidade. Por isso, com meu grupo sueco, comecei a tocar tango. Primeiras músicas do Gardel… Back, The day you love me … Depois fiz o disco Tango in Jazz, com meu filho Facundo. A proposta era tocar tango com senso de jazz. Joe Lovano gostou muito dessa modalidade e, anos depois, sugeriu que eu a levasse para Buenos Aires. Fizemos e o material está lá. Ele queria editá-lo no Blue Note, mas no final não aconteceu.
FR – A partir do que disse Sábato, pode-se dizer que o tango e o jazz têm origens comuns.
GB – O jazz tem raízes na habanera, uma música nascida no Haiti, mas adotada em Cuba. Saint Louis Blues, que é conhecido como o hino do jazz tradicional, é uma habanera. O tango também tem essa origem. E já existia uma coincidência importante desde o início. Jelly Roll Morton falou muito sobre a coisa latina no jazz e também fez algumas referências ao tango. São dois gêneros que cresceram juntos. Aqui, na década de 1920, Roberto Firpo já tocava jazz em suas orquestras e estamos falando do momento em que tudo começou nos Estados Unidos. Estava quase tudo ao mesmo tempo.
FR – E num caminho semelhante. Uma origem no bordel com a presença das classes populares e depois a ascensão social, a chegada aos salões elegantes, aos teatros, às universidades…
GB – É claro. E esse reconhecimento vem ao mesmo tempo. Quando ambos chegam à Europa. Um reconhecimento que ainda é válido hoje. Porque o tango ainda é a música que nos identifica em todo o mundo. São poucas as cidades que têm música tão forte quanto a nossa. E o mesmo acontece com o jazz, que, embora seja tocado em todos os lugares e se misture com a música local, não pode deixar de reconhecer sua origem negra e norte-americana.
FR – As coincidências são claras. Quais seriam as diferenças então?
GB – A diferença substancial é a improvisação. No tango toca-se “na grelha”, que é como tocar numa jam session. Mas ele não tem solos improvisados. E era isso que eu queria acrescentar. Uma vez conversei com Astor Piazzolla sobre isso. Perguntei a ele como ele fez isso. Ele me disse que em algum momento de suas músicas ele fez algo aleatório. Livre, sem acordes. Foi um toque. Uma cor. E foi bom, mas não um elemento que permitisse sair de lá para criar algo novo, como acontece no jazz. E era isso que eu queria. Mas quando comecei com o quinteto em Buenos Aires: piano, trompete, bandoneon, contrabaixo e bateria. Foi muito difícil para mim encontrar músicos que estivessem dispostos a pesquisar nessa linha.
FR – O que especificamente você estava procurando?
GB – Uma identidade mais profunda dentro do jazz. Com uma cor que não existia antes. E o tango foi servido em uma travessa. Mas para isso você precisa de uma bateria flutuando, dando suporte, criando climas. Se houver arranjos fazendo a figura dos arranjos. Mas se não houver arranjos, ele tem que improvisar na linguagem das duas músicas. Nisso, Pipi Piazzolla é o melhor. O mesmo vale para o contrabaixo. Por isso chamei Pablo Aslan. Mas ele não tinha um bandoneonista que pudesse improvisar e essa era a parte mais difícil. Agora, há algumas crianças que fazem isso muito bem, mas não naquela época. Se eu pudesse fazer isso mais tarde na Suécia, com alguns músicos muito bons…
FR – E como você conseguiu um tocador de bandoneon improvisado na Suécia?
GB – O primeiro que tocou comigo foi o Gustavo Paglia, um argentino que estava de passagem pela Suécia. Então trouxe Mikael Augustson, um excelente músico. Muito sério. Ele tinha estudado em Buenos Aires. Hoje na Europa existem bandoneonistas muito bons. Muitos formados por argentinos que estiveram lá, como Juan José Mosalini, falecido em maio passado. Há toda uma escola de bandoneonista, pessoas muito interessantes com uma mente muito aberta. Nisso você percebe a importância que Astor teve para abrir a mente das pessoas, dos tangueros.
FR – Antes da experiência sueca você já misturava jazz com ritmos locais…
GB – Sim, no Quinteplus, um grupo em que misturamos folclore e tango com jazz. Estive também em outro chamado S:O:S, Som Original do Sul, com o preto Rubén Rada, em que tocávamos candombe, chacareras, carnavalitos.
FR – Você acha que ainda há um longo caminho a percorrer nessa intersecção entre o tango e o jazz?
GB – Claro que sim. Mas tudo depende de quem faz. São músicas que são constantemente nutridas. Há sempre elementos de um e de outro que se juntam. E isso desde o início. Há muito tecido para cortar por aí. Veja o que Diego Schissi, Juan Pablo Navarro, Escalandrum, Pablo Aslan, Jorge Retamoza fazem… isso é muito bom.
FR – Mas são músicos de jazz que nutrem suas propostas com cores ou nuances do tango, como Adrian Iaies ou Nicolás Guerschberg também. Mas o contrário não é tão visto: músicos de tango que usam ferramentas de jazz.
GB – Não estou muito ciente do que está sendo feito agora a esse respeito. Mas historicamente foi feito. Osvaldo Berlingieri fez. Também Osmar Maderna, Eduardo Rovira, músico que merecia maior reconhecimento; Horacio Salgán, talvez não tão óbvio, mas com uma importante questão rítmica. Obviamente Astor e Osvaldo Tarantino, que tocou com ele. E mais aqui Dino Saluzzi, Pablo Ziegler…
FR – O que você resgataria de essencial dos 30 anos que viveu na Suécia?
GB – Deixe-me dizer-lhe que foi Américo Belloto que me deu a oportunidade de ir. Ele foi maravilhosamente bom para mim. Aqui foram tempos difíceis. Os meses antes da ditadura. Quando cheguei, o Américo deu-me abrigo na sua casa em Estocolmo e até conseguiu o primeiro contrato para eu começasse a trabalhar. A partir daí tive a oportunidade de tocar com grandes músicos. E também tenho viajado muito. Isso me permitiu ter um raio de ação maior e a possibilidade de tocar com artistas extraordinários. E isso torna a pessoa enriquecida em tudo, não só na música. Depois de retornar à Argentina, ele voltava periodicamente para tocar e visitar amigos.
FR – Muitos sabem, mas lembram de alguns nomes com quem você dividiu palcos e gravações naqueles anos.
GB – Bem, eu toquei com Kenny Werner, Adam Nussbaum, John Scofield, Palle Danielsson. Eu toquei com Michael Brecker e Jack DeJohnette. Também toquei com Kenny Dorham, Bobo Stenson, Jim McNeely, Bob Mintzer e Jimmy Heath. Eu estive na orquestra de Maria Schneider, fizemos coisas muito interessantes com Joe Lovano, são tantos… Uma vez eu substituí Chet Baker, você sabia?
FR – Como foi isso?
GB – Ele veio a Estocolmo e me convidou para tocar com ele na Catedral de Jazz, que é a sede da Federação Sueca de Músicos de Jazz. Cheguei para o segundo set e descobri que estava no vestiário e muito chateado. Então ele me pede para substituí-lo. Então eu tive que subir no palco, explicar para as pessoas o que tinha acontecido e tocar no lugar dele. Ele era um grande músico. Uma grande personalidade. Também toquei e gravei com Lee Konitz, outro grande, com Phil Woods. Você sabia que ele admirava muito Astor Piazzolla?
FR – Sim… ele até gravou um álbum com músicas do Piazzolla…
GB – Ele sempre me disse que se eu encontrasse o Astor deveria contar a ele sobre a sua admiração. Então, quando surgiu a oportunidade, disse ao Astor que Phil o admirava muito. Astor não sabia dessa admiração, então ficou feliz e retribuiu a saudação. Quando vi Phil novamente, não acreditei que Astor sabia sobre ele e que também disse oi. Um grande músico.
FR – Você estava falando sobre a luta de Piazzolla. Na arte, essa tensão entre tradição e modernidade parece inevitável. Nesse sentido, o que você acha do trabalho de Wynton Marsalis, tão criticado por defender um estilo que para muitos está ultrapassado?
GB – Wynton tem um mérito impressionante. Ele é um trompetista excepcional, disso não há dúvida. Ele não me parece um criador no mesmo nível de Clifford Brown, Dizzy Gillespie ou Miles, mas fez um trabalho pedagógico e didático tremendo. E isso deve ser reconhecido.
FR – Você estudou Belas Artes quando era muito jovem. Você encontra alguma relação entre essa formação e sua carreira musical posterior?
GB – Sim, eu diria que sim. É algo que me fez muito bem. Abriu minha mente para sempre. Ele me ensinou que nunca se deve abandonar a busca e que também não adianta pontificar ou descer a linha. Você pode ter seus gostos, suas preferências. O que pode ser diferente dos outros. Mas isso não lhe dá o direito de desacreditar ou desvalorizar. Isso é algo que nunca esqueci e que sempre tentei aplicar na minha vida. É por isso que para mim a música é essencialmente um ato de amor.