Argentina

Leo Genovese: ‘Música é dúvida’

Fernando Ríos, argentjazz.com, 17/12/2020

O recente álbum ‘Sin Tiempo‘, de Leo Genovese, Mariano Otero e Sergio Verdinelli, lançado pela Ears&Eyes, responde a um desejo antigo do pianista nascido em Venado Tuerto e radicado em Nova York há décadas. Artista inquieto, parte substancial do grupo de Esperanza Spalding ou colaborador próximo do Residente René Pérez, o argentino assume Sin Tiempo como um presente que lhe deu a vida. “A música só me interessa se fala comigo e me comove”, diz ele. A mesma coisa que acontece com quem aprecia sua arte.

Fernando Ríos – Este é um álbum que vocês gravaram há menos de dois anos. Qual é a sua sensação ao ouvi-lo novamente hoje?
Leo Genovese – Estou muito feliz. Todos nós três ficamos muito felizes. Não só com o resultado, mas também com o que significou fazê-lo. Como gravamos há pouco, também sentimos que os ciclos se fecham assim que o disco foi lançado. Eles são músicos que amo e que há muito admiro. Para mim, tudo isso foi uma coisa linda, pela forma como aconteceu e também pelo resultado. São esses desafios que a música nos oferece, nos propõe, nos dá.

FR – Em mais de uma ocasião você enfatizou a necessidade de federalizar a música. Algo assim aconteceu com os primeiros encontros que deram vida a este trio e a este álbum.
LG – Sim, claro. Já nos conhecíamos há algum tempo. Conheci o Mariano em um festival em Salta. Então, nós três nos cruzamos em 2015 em Santiago del Estero, em outro festival. Eu era fã do Sergio e do Mariano há muito tempo, mas naquele momento foi como se tivéssemos nos reconectado. Aí o Mariano veio para Nova York, nos reunimos, tocamos em dueto e senti que nos conectamos de uma forma muito profunda. Aí surgiu a ideia de colocar algo entre os três … Sergio e Mariano têm uma grande química em tudo. Eles são como irmãos.

 

 

FR – Sergio estava em Buenos Aires sem saber que fazia parte de um novo grupo …
LG – Sim, isso foi muito bom. Quando o Mariano voltou para casa, ele enviou algumas de suas canções via telefone e email e disse para tocarmos. Nós tocamos e nos conectamos por inteiro. Mas o mais maluco é que nós dois ‘ouvimos’ o Sergito tocando com a gente naquele momento. Ele estava a 10.000 km de distância, mas sentimos que ele já estava conosco. Que todos os espaços e o silêncio pertenciam ao Sergio. O trio estava formado, embora ele não soubesse disso. Embora não estivesse pessoalmente presente, já estava presente no espaço da música.

FR – Você disse que neste grupo não há lideranças. Mas, além do gosto ou das boas intenções, o papel principal do piano não é inevitável em um trio de jazz?
LG – Parece-me que isso corresponde mais a um conceito histórico do que a uma realidade concreta e atual. Mas também acho que um dos desafios é justamente esse. Assumir o papel do leão tem na savana. Quem iria ocupar esse lugar? … não sabemos. E se soubéssemos que haveria uma mudança que teria que ser estudada. Essa mudança pode ser proposta na música. Não estou falando em negar a história e os milhares de discos que todos nós ouvimos. Estou falando sobre tentar superar ou construir algo diferente.

FR – Mas mesmo músicos da nova geração como Brad Mehldau ou Jason Moran ou grupos comoBad Plus ou Esbjörn Svensson Trío são tributários desse esquema histórico …
LG – Sim, é verdade, mas pense em alguém como Masabumi Kikuchi, por exemplo. Kikuchi sabia ou não podia condicionar sua música e colocá-la a favor do que ele era ou ouvia na época. E isso muitas vezes significava que o piano ficava abaixo do baixo. E não apenas em solos. O que Kikuchi levantou foi o que aconteceria se a hierarquia fosse removida. Isso aceito. O que aconteceria? Bem, outras músicas aconteceriam.

 

 

FR – Aqui, a maioria dos temas é de Mariano. Será que isso tem alguma relação com os protagonistas de que falamos?
LG – Pode ser … com certeza a resposta está escondida nas melodias. Parece-me que para além do protagonismo a nível instrumental, nas temáticas de Mariano há a necessidade de retirar a hierarquia do tempo. Ser capaz de respirar em nosso próprio tempo. Olha, esta é a única banda da qual faço parte e que somos uma banda. Não tem líder, você não respira aquela coisa de frontman. Estamos nesses 33,33%, esse número mágico que nunca acaba, nunca se resolve.

FR – Entre as nove faixas do álbum, existem apenas duas suas. Blues , o primeiro corte, e Cyclones, um turbilhão de quase sete minutos. São composições projetadas para este grupo?
LG – Sim, totalmente. É bom pensar para quem você está compondo. Saiba quem vai tocar nele. Acho que é uma ideia que sempre existiu… Uma vez li que o Duke Ellington compunha pensando nos músicos e sempre gostei disso. Quanto à quantidade … a verdade é que o álbum é uma seleção de músicas. Tínhamos cerca de 20 músicas gravadas. Entre eles, havia mais temas meus, mas na seleção final não eram. Talvez eles saiam em outro momento, mais tarde, ou podem nunca mais sair. Quem sabe.

FR – Você já disse que “música é dúvida“. Essa falta de certezas em última análise funciona como combustível para a criação?
LG – Absolutamente. Portanto, continuamos procurando respostas. É uma dúvida que aproveitamos. É por isso que continuamos compondo, tocando, estudando. Tudo passa pelo filtro da dúvida. E as respostas são musicais. Sempre.

FR – Em relação às incertezas, como você passou esse difícil 2020?
LG – É … já o fato de sobreviver em uma cidade como Nova York, onde tudo foi muito parado ao longo do ano, é uma arte em si. Passei o ano gravando muito, com diferentes artistas e diferentes bandas. Também gravei muito da minha casa, mandando faixas para outras pessoas. Como não podia tocar, dediquei-me à gravação.

 

 

FR – E antes da pandemia?
LG – Eu estava trabalhando muito. Essa é outra das coisas que me uniram ao Mariano. Ele estava trabalhando com o Fito Páez, acho que foi em 2018, e eu estava tocando com o René Pérez, o residente, o cantor da Calle 13. Lá nos encontramos em vários festivais e estávamos fazendo essa amizade de que falei. Foi um ano agitado para mim. Quando isso diminuiu, me concentrei mais nos meus grupos, nas minhas bandas, na minha própria música. Um pouco com Esperanza Spalding, um pouco com bandas de Nova York… Trabalhei muito como músico freelance. Agora tudo se complicou de novo e muitas lojas começaram a fechar. O streaming está ficando forte.

FR – Como você se dá com o streaming? … Alguns dizem que veio para ficar.
LG – Pode ser. Eu convivo com isso. Mas ainda sinto falta das pessoas. Amigos, família, afetos, o público. Esperamos tudo isso nos faça crescer e reavaliar as coisas que tivemos que adiar. É bom ter a chance de acordar com aquela sensação de estranheza, de saudade do que perdemos; pensando no momento em que podemos recuperá-lo.

FR – Leo, você mora em uma cidade onde a arte é permeável a uma gama enorme de influências e onde o que chamamos de jazz hoje é atravessado pelo rap, hip hop, improvisação livre ou música eletrônica. Como isso impacta a você?
LG – Por um lado, tem muita gente fazendo isso e acho isso bom. Mais além do geracional ou estilístico, estou interessado em saber se isso me move, me inspira ou produz algo para mim. Estou até interessado se é a música que me irrita. Nesse caso, estou interessado em saber por que isso me irrita. Eu testemunhei essas mudanças que você mencionou. E eu acho que lá a pessoa pode se fechar ou sair para conhecer essas coisas novas. É uma jornada pessoal. É claro que não estou dizendo isso, porque você é uma pessoa aberta, que fuma qualquer droga e diz que está tudo bem….

FR – Isso seria apenas uma pose, algo artificial …
LG – É claro. Mas é bom ouvir algo novo e ver o que acontece com você. Se isso mexer com você, investigue por quê. Tentando saber por que o que acontece com você está acontecendo com você. E deixar os preconceitos. Se tem uma música que você gosta e te faz dançar: bom, coloque e dance, qual seria o problema? Quando ouço música, não estou interessado em que gênero é, de onde vem, em que época ou quando foi feita. Eu só estou interessado se ela fala comigo e me comove.

 

 

 

Sin Tiempo:  Genovese-Otero-Verdinelli

Blues 04:24
Pato 02:22
Grooves 05:14
La Memoria 04:33
Ciclones 06:54
Klimt 02:29
El Mar 02:40
Chewel 04:33
Eastwood 04:10

Leo Genovese, piano e composição;
Mariano Otero, contrabaixo elétrico, contrabaixo acústico e composição
Sergio Verdinelli, bateria.

Gravado, mixado e masterizado por Mariano Otero no Insigno Studio, Buenos Aires, Argentina
Arte da capa de Gonzalo Elvira
Design de Matthew Golombisky
Ears and Eyes: www.earsandeyesrecords.com