Entrevistas

‘Mesmo Outro’, Quatro a Zero na cabeça!

Esse espaço está sendo aberto a um dos mais instigantes e criativos grupos do choro contemporâneo: o quarteto Quatro a Zero. Sua formação atual é: Daniel Muller (piano e acordeão), Danilo Penteado (contrabaixos elétrico e acústico e cavaquinho), Eduardo Lobo (guitarra e violão) e Lucas Casacio (bateria e percussão). A entrevista ficou por conta de Daniel Muller, que, não só contou a história do grupo como ajudou a analisar o último trabalho ‘Mesmo Outro’ e nos antecipou os próximos projetos do 4 x 0.

Wilson Garzon – O quarteto surgiu dentro da Unicamp? E nasceu com um conceito firmado ou foi evoluindo aos poucos?
Daniel Muller – O Quatro a Zero já nasceu com a proposta que o caracteriza como uma iniciativa singular: tocar choro com essa formação não tradicional (bateria, baixo elétrico, guitarra elétrica e piano). Nasceu na UNICAMP quando os integrantes todos estávamos fazendo a graduação em Música Popular, dentro, inclusive, da disciplina Prática de Conjunto. O Paulo Braga era o professor, na época. É claro que esse conceito foi um ponto de partida e que, com o tempo, a proposta do grupo foi incorporando mais complexidade, mais detalhamento, interesses mais diversificados. Já de cara nos interessamos pela música do Radamés Gnattali, especificamente por um disco do começo dos 70 (Série Destaques) protagonizado pelo Sexteto do Radamés (formado por dois pianos – ele e a irmã, Ainda; guitarra – Zé Menezes; acordeon – Chiquinho; bateria – Luciano Perrone e contrabaixo – Vidal).

A forma com que Radamés escrevia arranjos de choros para essa formação nos interessou demais naquele primeiro momento. Com o tempo, fomos ampliando o interesse pela música do Radamés para além da abordagem que fazia do choro. Eu diria que o conceito do grupo foi evoluindo, com o tempo, sempre no sentido de uma expansão de fronteiras. O choro enquanto ponto de partida, mas em um diálogo cada vez mais informado e amplo com outras vertentes musicais, como o jazz, a música erudita ou outros gêneros brasileiros.


WG –
A escolha do 4×0 tem a ver com o futebol ou é uma metáfora? Vocês curtem futebol?
DM – Eu diria que não somos especialmente fãs de futebol, ou torcedores fanáticos dos grandes clubes profissionais. A história do nome é outra: surgiu ainda nos primórdios do grupo, dentro das aulas de Prática de Conjunto, como uma sugestão do professor Paulo Braga, em referência justamente ao Um a Zero, choro do Pixinguinha que foi o primeiro arranjo que o grupo trabalhou.

A pertinência do nome está, para mim, nessa referência ao jogo (de uma forma mais geral), pensando no aspecto lúdico envolvido no tocar, na importância da colaboração entre os músicos durante a performance e especialmente, na alegria que sempre existiu no Quatro a Zero. Diria, hoje, que uma força motriz desse grupo é justamente a alegria do encontro e da interação musical que esse encontro propicia. Alegria que tem um paralelo feliz, no meu entender, em uma partida divertida, talvez amadora, de futebol. Ou no tocar o repertório tão incrível do mestre Pixinguinha. Outro paralelo possível: diria que, no limite, cada nova composição que alguém escreve e leva ao grupo ou cada novo arranjo que a gente faz juntos é também um novo jogo (com um conjunto de regras específicas) desenhado para que os quatro joguem juntos, de forma que todos possam, interagindo, desempenhar sua musicalidade.

WG – O que você como relevantes nos seus três primeiros trabalhos: Choro Elétrico (2005), Porta Aberta (2008) e Alegria (2011)?
DM – Choro Elétrico veio em um momento de muita empolgação. O repertório é, em grande medida, o que preparamos para as apresentações do 7º Prêmio Visa, em 2004, em que ficamos na segunda colocação. O processo de preparação para participar desse festival foi muito importante para o grupo. Ensaiávamos como loucos. E termos chegado à final nos deixou muito empolgados e motivados. Fora que o prêmio em dinheiro nos permitiu gravar em condições muito boas. Eu diria que é um CD que contém uma exuberância, uma força explosiva de juventude que, quando ouço, me traz muita felicidade.
Porta Aberta é, para mim, um trabalho mais minucioso, mais amadurecido. É o resultado de uma pesquisa sobre o choro das cidades interioranas do estado de São Paulo. Enquanto pesquisávamos, aprofundávamos também nossas pesquisas sobre a linguagem do choro, fazendo um trabalho detalhado de transposição dos elementos do conjunto regional para o nosso quarteto.
Alegria é um álbum muito singular. Porque registra uma transição. Em outubro de 2009 faleceu o Lucas da Rosa, baterista da formação primeira do quarteto. Naquele momento já tínhamos gravado em estúdio uma adaptação trabalhosíssima que fizemos da Suíte Retratos, do Radamés Gnattali, que comporia nosso terceiro CD, ainda sem nome naquela altura. Então perdemos o Lucas, e foi um grande baque.
Acaba que esse disco registra nosso processo de luto e superação, porque incluímos a Suíte Retratos e também várias outras faixas com participações de amigos músicos (Nailor Proveta, Joel Nascimento, Oscar Bolão) e, finalmente, composições nossas com um novo baterista, o Lucas Casacio. O disco demorou pra sair e foi batizado com a característica que mais marcava nosso amigo Lucas da Rosa, a alegria. Esse afeto, também, o que estávamos buscando para o futuro do grupo. E começando a encontrar (recomendo ouvir “Enfim, Primavera”, composição do Eduardo Lobo, com participação do Joel Nascimento).

 

 

WG – Até gravarem ‘Mesmo Outro’ em 2018, sete anos depois, o que o 4 x 0 andou fazendo? Houve projetos solos?
DM – Ser músico no Brasil é um tremendo desafio… Desde o primeiro momento de profissionalização, todos conduzem vários projetos ao mesmo tempo. Eu toco também no Conversa Ribeira (que tem 3 discos), no À Deriva (que tem 6 trabalhos lançados), toquei no Comboio, que já não existe, atualmente na Mundana Refugi, 2 álbuns lançados… O Danilo lançou um CD como compositor e cantor, participou de muitos outros grupos ou tocou na banda de outros artistas. O Lucas gravou vários discos com o Amanajé, o Edu com o grupo Ideia de Antes, em duo com o Fernando Vieira, em duo com o Rafael dos Santos… Lucas e Edu defenderam o doutorado e hoje são professores universitários. Quer dizer, isso é uma questão profissional mas é também uma opção. Todos temos interesses diversos e, creio, não seriamos plenamente realizados tocando anos a fio em apenas um grupo.

Mas o Quatro a Zero não ficou parado não! Nesse meio tempo teve um quarto disco: a gravação da integral dos Concertos Cariocas, do Radamés Gnatalli, com a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. Em 2014, após 8 anos de pesquisas e preparações, finalmente conseguimos estrear em concerto o Concerto Carioca nº 3 (1972) para sexteto e orquestra sinfônica, peça que nunca tinha sido sequer interpretada. Foi um trabalho louco – obtivemos o manuscrito da obra com a viúva de Radamés, o digitalizamos, revisamos, o Edu fez o mestrado dele sobre a peça e finalmente, depois de anos, conseguimos convencer um maestro (o chileno Vitor Hugo Toro) a tocá-la. Estreada a peça, o maestro se empolgou e propôs que gravássemos (com convidados – os pianistas Rafael dos Santos e Hercules Gomes) os outros dois concertos da série. Este concerto voltou a ser tocado no ano passado junto à OSFA (Vitória-ES).

E outros projetos também foram acontecendo: em 2016 o grupo fez sua segunda turnê europeia com apresentações em Portugal (incluindo o 25º Guimarães Jazz, o mais importante festival de jazz do pais) e Amsterdã. Em 2017 elaboramos um concerto em homenagem a Hermeto Pascoal, apresentado no 4º FMCB. Também fizemos novas apresentações em parceria com Toninho Ferragutti e integramos o elenco do programa “Brasil Toca Choro”, produzido pela TV Cultura.

 

 

WG – “Mesmo Outro’ no fundo significa fazer a mesma música de um modo diferente?
DM – Essa é uma leitura possível sim. Mas há outras possibilidades! Por exemplo, Mesmo Outro pode significar um estado de equilíbrio na dualidade entre o que é tradicional e o que é novo; entre uma identidade já consolidada e a expansão em direção a novas possibilidades. Quando pensamos no nome estávamos mais interessados nesse significado. É possível ser o mesmo sendo outro? E ser outro sendo o mesmo? Para um grupo com 18 anos de trajetória, são perguntas que se impõem. E, de nossa parte, a resposta é sim para as duas. E é essa percepção que nos dá convicção da relevância de seguirmos juntos fazendo música.

WG – Analisando o repertório, seis músicas são de autoria de membros do quarteto (uma com Hermeto), mais uma do Jacob e a outra do Gnatalli. As músicas autorais foram compostas para a gravação ou já estavam prontas?
DM – Esse é nosso disco com mais repertório autoral. Acho que é um processo natural do amadurecimento tanto do quarteto quanto dos quatro músicos individualmente. Ainda há – e o repertório traduz isso com clareza – um vínculo com o choro tradicional (vide a presença do Receita de Samba, do Jacob, que tocamos há anos de uma forma solta, improvisada, sem muito arranjo, como se estivéssemos em uma roda de choro) e ainda há, como no começo, a presença inspiradora do Radamés (desta vez com um choro lento que talvez esteja mais para um samba-canção sem letra). Mas agora arriscamos mais apresentar nossas próprias composições. E via de regra, sim, elas foram compostas especificamente para o Quatro a Zero tocar.

WG – Os arranjos foram escritos pelo grupo ou cada autor cuidou do seu arranjo?
DM – Nos primórdios do grupo, ainda jovens estudantes, ensaiávamos ao menos uma vez por semana (e em alguns períodos ensaiamos bem mais que isso!), era possível que todos os arranjos fossem criados coletivamente, durante os ensaios. A vida adulta, casamentos, filhos, contas mais volumosas pra pagar, impõe uma outra dinâmica. Hoje, infelizmente, não conseguimos mais trabalhar juntos toda semana. Por outro lado, somos mais experientes e temos mais recursos para que nosso tempo juntos seja mais produtivo. Quanto aos arranjos, diria que na maioria dos casos os autores delineiam alguns elementos do arranjo e levam ao ensaio onde todos tem voz para fazer sugestões e então, coletivamente, fazemos ajustes para que todos estejam confortáveis e satisfeitos.

WG – A repercussão da mídia e a divulgação foram as que se esperavam?
DM – Sempre temos esperança de que um novo trabalho trará muitos frutos. Possibilitará o contato com novos públicos, um diálogo novo com gente que já nos conhece de trabalhos anteriores, ou mesmo com parceiros, músicos, críticos musicais, espaços culturais… Por outro lado, já temos uma certa experiência para analisar como o cenário se estrutura, como funciona o mercado, que alcance tende a ter um trabalho de música instrumental, nesse cenário em que o CD tem uma relevância tão menor (e aproveito aqui para agradecer, Wilson, o espaço pra falarmos do nosso trabalho e a militância do Clube de Jazz!)… Então a resposta é não e é sim. A gente teve respostas muito positivas de gente que ouviu e gostou do disco. Mas o álbum ainda é novo e acreditamos que tem um caminho a percorrer.

WG – Que projetos vocês pensam em desenvolverem para os próximos anos?
DM – Me parece que o material composicional é incontornável daqui em diante. Mas também temos vontade de aprofundar as parcerias com outros músicos, não só de gerações anteriores à nossa, como fizemos até aqui (Nailor Proveta, Joel Nascimento, Toninho Ferragutti, Hermeto Pascoal), mas com músicos das novas gerações (chorões ou não!). Aguardem que em breve, se o mundo não acabar antes, ouvirão novidades do Quatro a Zero!