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Miles Smiles: A obra-prima (invisível) de Miles Davis

Pedindo licença à História e apresentando um ponto de vista demasiado pessoal, admito, acerca da discografia de Miles Davis, encontro no disco Miles Smiles (1967) a sua “obra-prima”. Sei bem que pôr esse disco no lugar historicamente ocupado pelo Kind of Blue pode parecer absurdo ou até mesmo herético. Dou de ombros. É inegável que as sessões de 24 e 25 de outubro de 1966 documentam um Segundo Grande Quinteto num patamar elevadíssimo, pondo tudo em xeque a todo instante e forçando no ato da performance a expansão das fronteiras estéticas do jazz naquilo que se convencionou chamar de Free Bop.

Quartas consecutivas, voicings em quartas, acordes sus4, conflito métrico, ruptura com a forma chorus, improvisação motívica: está tudo lá, na vanguarda de seu tempo.

O disco também registra o outro lado de um combo, ou melhor, de um organismo absolutamente integrado que fazia do repertório de standards, ao vivo, um laboratório, mas que em estúdio se dedicava a material novo, em grande parte escrito pelos membros do quinteto, com destaque para Wayne Shorter.

Todas as faixas do álbum são primeiros takes. Se Miles não interrompia para ajustar um acorde, uma dinâmica ou o andamento, era esse o take que iria ficar. Isso rende ao grupo uma intensidade performática cheia de riscos derivada dessa “estética da descoberta”, que vai ao encontro da “pressão” que Miles, à altura mais uma entidade jazzística do que mero bandleader, gostava de pôr nos músicos:
não saber exatamente o que se vai tocar para alçá-los a um outro patamar. E funciona. O próprio Miles está tocando como nunca.

 

 

REPERTÓRIO

Orbits”, a faixa de abertura, é um campo aberto numa forma nova, “time, no changes”, onde tudo acontece linearmente sem que um único acorde seja tocado – o próprio Herbie Hancock improvisa uma linha.

Há também a versão definitiva de “Footprints”, de Shorter, originalmente lançada em seu disco Adam’s Apple (1966) numa interpretação engessada e que aqui é explorada a cada chorus com modulações no andamento promovidas pela “cozinha” (baixo e bateria), o que provê, assim, uma atmosfera diferente para os solistas durante suas improvisações e os conduz expressivamente ao longo da forma.

Isso para não falar também de “Circle”, um dos temas mais bonitos (e pouquíssimo tocado) de Miles e de “Gingerbread Boy”, um blues de Jimmy Heath tocado num misto de respeito à forma e subversão interpretativa, com Ron Carter alterando o Bb7 o tempo todo com um mi na corda solta e Tony Williams incendiando tudo com a inquietude de sua bateria alicerçada num profundo e inabalável senso rítmico.

Em poucas ocasiões, um bandleader levou seu combo e a si mesmo tão longe quanto aqui. Poucas foram as vezes que um disco apontou tantas possibilidades de improvisação, composição e performance no jazz como em Miles Smiles. Uma “obra-prima” invisível numa discografia monumental.

Bruno Vitorino, músico e jornalista pernambucano, é colaborador frequente do site Clube e Jazz.
bvaguiar@gmail.com
@brunovsaguiar

 

MILES SMILES

1.”Orbits” (Wayne Shorter) 4:37
2.”Circle” (Miles Davis) 5:52
3.”Footprints” (Wayne Shorter ) 9:46
4.”Dolores” (Wayne Shorter) 6:20
5.”Freedom Jazz Dance” (Eddie Harris) 7:13
6.”Ginger Bread Boy” (Jimmy Heath) 7:43
Tempo total: 41:44

Miles Davis – trompete
Wayne Shorter – saxofone tenor
Herbie Hancock – piano
Ron Carter – double bass
Tony Williams – bateria

Lançado em 16/02/1967
Gravado em 24 e 25/10/1966
Estúdio da Columbia na 30th Street (New York City)