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Minas e Bossa Nova: isso é muito natural

 

Raphael Vidigal, jornal ‘O Tempo’, 08/07/2018

Tiete, o rapaz não titubeou ao avistar o poeta: o chamou de mestre, pediu um autógrafo e guardou a preciosidade num envelope pardo. Poucas horas depois, assim que chegou aos estúdios da gravadora Odeon, no Rio de Janeiro, largou com displicência a assinatura de Carlos Drummond de Andrade em um canto qualquer e nunca mais a avistou nem se preocupou com isso.

Pacífico Mascarenhas, Roberto Guimarães, JK e o Clube da Esquina, Milton e Sambacana e Pacífico e seu mural.

A história é contada pelo músico mineiro Pacífico Mascarenhas, 83, que participou do episódio, e traz como personagem principal João Gilberto, 87, o inventor da batida de violão e voz diminuta que assombrou o país quando lançou, no dia 10 de julho de 1958, o compacto que trazia, de um lado, “Chega de Saudade” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) e, do outro, “Bim Bom”, de sua autoria.

De lá para cá, a Bossa Nova manteve, ao longo de seis décadas, o título de nobreza e modernidade, com o aval de músicos internacionais e a reverência dos que vieram depois, ainda que uma renovação, em termos de repertório, não tenha ocorrido. Para além da admiração pelos versos do itabirano Drummond, Minas entraria na vida de João de maneira mais decisiva quando, em visita à irmã Dadainha, que acabara de dar à luz a primeira filha, ele passou duas temporadas em Diamantina, entre 1955 e 1957. Foi ali que, de fato, a histórica revolução na música brasileira começou a ser construída pelo baiano de Juazeiro, três anos antes de revelar ao mundo o resultado de suas experimentações musicais.

Pesquisa

Essa é a tese do livro que o músico, escritor e pesquisador Wander Conceição, 57, prepara há uma década e que pretende lançar no próximo ano. Com dez dos 16 capítulos prontos, a publicação vai sair pela editora Mazza e traz um deles focado na passagem de João por Diamantina, intitulado “A Renovação no Ritmo”. Conceição, no entanto, faz questão de ressaltar que “não se trata de um livro apenas sobre João Gilberto”.

Minha pesquisa é sobre a importância histórica de Diamantina na evolução cultural do país no século XX e, nesse cenário, se inscreve a Bossa Nova”, explica. A ideia surgiu depois que ele leu “Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova” (1990), de Ruy Castro, e estranhou o fato de não haver menção ao período em que João viveu na cidade mineira, que fica a 294 km de Belo Horizonte.

Logo, seu olhar sobre a travessia mineira do intérprete de “Desafinado” é aguçado, tanto que ele entrevistou 40 pessoas que conviveram com João na cidade para chegar à conclusão de que, sem Minas, não haveria Bossa Nova. Os relatos de que o músico passava horas trancado no banheiro para chegar ao som perfeito, em busca da melhor acústica, são confirmados, mas relativizados. “Na verdade, o laboratório dele era o quartinho da casa, foi ali que ele desenvolveu o ritmo e chegou à batida de violão definitiva”, afiança o pesquisador.

Jazz

Outra contribuição foi a de um amigo, que só terá a identidade revelada quando o livro for lançado, que abastecia João diariamente com o melhor da discografia de jazz do momento. Regente aposentada do Conservatório de Música de Diamantina, Glaucia Assumpção é sobrinha de Eni Baracho, que deu aulas no mesmo local e hoje nomeia o coral da instituição.

Na década de 50, Eni morou numa casa que ficava próximo ao sobrado onde João estava hospedado. Embora recluso, a presença do baiano não passou despercebida. Glaucia relembra as impressões da tia. “Por entender de música, ela achava estranho João tocar uma nota só o dia todo, ficava encabulada. Acho que ele viajava nessa nota”, supõe. A personalidade do dedicado instrumentista foi outra característica a chamar atenção. “Ele era introvertido, ficava fechado por muito tempo, não queria entrosamento”, aponta.

Autor de “João Gilberto” (2001), focado na obra do compositor, e de “Eis Aqui os Bossa-Nova”, sobre as principais etapas do movimento, Zuza Homem de Mello, 84, contesta o que ele considera, na prática, uma teoria infundada. “Tudo não veio de uma hora pra outra porque o João estava num banheiro em Diamantina. Uma boa lenda se espalha porque a verdade é meio sem-graça”, pondera.

Mineiro foi gravado por João Gilberto

Coube a um economista de São João del Rei a proeza de ser o único mineiro contemporâneo gravado por João Gilberto. Além de Ary Barroso e Geraldo Pereira, a honra recaiu sobre os ombros de Roberto Guimarães, 79, que conheceu o baiano de maneira despretensiosa. Ele acabara de assistir a um show de João no antigo teatro do Minas Tênis Clube, onde ficou sentado no chão com uma turma de amigos. No grupo, estava a sobrinha da tia Naná, que o convidou para ir até a casa onde João estava com sua mulher à época, a cantora Astrud Gilberto. Guimarães tinha, então, com 19 anos e, após os cumprimentos, foi apresentado a João como compositor. “Não foi nada combinado, me jogaram às feras, fiquei bem nervoso”, recorda Guimarães.

Passado o susto, ele tocou quatro músicas. João pediu para ele repetir “Amor Certinho”. Um ano depois, a canção integraria o álbum “O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960), ao lado de pérolas de Tom Jobim, Dorival Caymmi e Carlos Lyra. “Quando fui ao Rio, telefonei para o João, e ele me levou até a casa do Tom, onde estava o pessoal todo: Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Vinicius de Moraes. Nasci virado pra lua”, diz Guimarães.

Outro amigo em comum a desfrutar dessas companhias foi Pacífico Mascarenhas, que se destacou na cena mineira de Bossa Nova na década de 60, quando lançou em disco a cantora Joyce Moreno. Ele se lembra de um caso inusitado vivenciado com João, quando os dois se encontraram no hotel Normandy, na rua dos Tamoios, no centro de Belo Horizonte.

Eu tinha emprestado meu violão para o João, porque ele nunca trazia quando vinha fazer shows aqui. Era um violão com cordas de nylon, uma raridade. O pessoal da Bossa Nova usava porque era mais suave para tocar. Aí apareceu o cantor Pedro Matheus, que era cego, e ficou doido com o violão. Na mesma hora o João deu meu violão para ele”, conta. Partiu de Mascarenhas a ideia de oferecer a João um abrigo na cidade de Diamantina, com direito a cuidados médicos, já que o cantor enfrenta dificuldades financeiras. De acordo com a cantora Miúcha: “João ficou emocionado e comovido com a preocupação dos amigos, mas ainda não respondeu o que vai fazer”.

Presidente e acadêmico mineiros influenciaram 

No livro que aborda a presença de João Gilberto em Diamantina, o pesquisador Wander Conceição vai além. Apesar da importância absoluta de João, ele não se atém ao excêntrico violonista para firmar seu entendimento. “A Bossa Nova é fundamentada em quatro elementos: a renovação rítmica, harmônica, melódica e de linguagem. Era um momento de modernização, e tudo isso só acontece porque o presidente do país era o Juscelino Kubitschek, também mineiro de Diamantina”, observa Conceição, em referência àquele que ganhou o apelido de “presidente bossa-nova”.

A convivência do então diplomata Vinicius de Moraes com intelectuais mineiros, na sede do Itamaraty, também teria pesado. Segundo a pesquisa de Conceição, um dos mais próximos do Poetinha foi o filólogo e professor Aires da Mata Machado Filho, outro filho de Diamantina. Produtor e compositor, Bob Tostes aponta a influência do movimento na música de Milton Nascimento, que lançou, em 1964, a música “Barulho de Trem”, ao lado de Wagner Tiso. “Esse é um sambinha bem típico da Bossa Nova”, diz Tostes.