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Selo Sesc lança disco de João Gilberto

Em abril de 1998, João Gilberto (1931-2019), a bordo de uma turnê nacional que comemorava os 40 anos da bossa nova, fez uma escala na então recém-inaugurada unidade Vila Mariana do Sesc São Paulo. Por lá, apresentou um show cujo repertório totalizava 36 músicas, entre sambas antigos e clássicos do movimento que ajudou a fundar. Agora, esse registro vem à luz, em formato de álbum, marcando a estreia do projeto Relicário.

Trata-se de uma iniciativa que visa trazer à tona, por meio do Selo Sesc, preciosidades guardadas no baú da instituição, ao longo de três décadas, dos anos 1970 aos 1990. Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, afirma que essa iniciativa reforça o compromisso da entidade com a valorização do patrimônio imaterial do país e com a democratização do acesso aos bens culturais.

A partir desta quarta-feira (5/4), o álbum ‘João Gilberto ao vivo no Sesc – 1998’, com o áudio remasterizado da apresentação na unidade Vila Mariana, estará disponível gratuitamente e com exclusividade na plataforma Sesc Digital.

Álbum no dia 26

O destaque da gravação é a música “Rei sem coroa”, de autoria de Herivelto Martins e Waldemar Ressurreição. Apesar de compor o repertório de alguns shows de João Gilberto, ela nunca foi registrada em estúdio ou gravada oficialmente pelo artista.

Também a partir desta quarta, a canção estará disponível, como single, em todas as plataformas de streaming, que recebem o disco completo a partir do próximo dia 26. O álbum também será lançado nos formatos CD e vinil, no fim deste mês.

Segundo Santos de Miranda, a descoberta desse registro nos acervos do Sesc São Paulo foi o que motivou a criação do projeto Relicário. “A figura de João é absolutamente exponencial. Ele é mais que um cantor, é o iniciador de um movimento, de uma música brasileira conhecida no mundo inteiro”, destaca.

O Sesc Vila Mariana foi inaugurado em dezembro de 1997, e o pai da bossa nova foi um dos primeiros grandes nomes a pisar no palco de seu teatro. “Como parte do conjunto de ações que promoviam aquela nova unidade do Sesc São Paulo, nós o convidamos. Ele aceitou, veio e participou do nosso projeto, de uma forma inusitada”, afirma o diretor do Sesc São Paulo.

Foram três noites de apresentações, sendo que na última, em 5 de abril daquele ano, foi feito o registro que agora é lançado. Miranda comenta que assistiu à série de apresentações e diz que em todas as três correu tudo muito bem.

“João estava muito disponível, tranquilo, permitiu que a plateia cantasse com ele algumas músicas, o que nunca foi muito do feitio dele”, diz, observando, no entanto, que o notório perfeccionismo do artista estava presente. “Mas o som também estava absolutamente perfeito, então ele se sentiu muito à vontade.”

Na ocasião, foram gravadas, além das músicas, algumas imagens, mas não o suficiente para a confecção de um DVD, segundo Santos de Miranda.

“Tínhamos os registros desse show do João, como temos de tudo o que passa pelas unidades do Sesc. Mais recentemente, ao vermos essa riqueza em mãos, procuramos os mecanismos, através dos representantes dele, para obter as autorizações para efetivamente transformar isso em um álbum. É um material que tem qualidade, porque estava guardado em muito boas condições”, afirma.

 

 

Supervisão de Bebel

A gravação original foi realizada em fita DAT, que passou por um cuidadoso processo de recuperação. A feitura do álbum ganhou uma parceria especial: Bebel Gilberto, filha do intérprete, assumiu a supervisão artística do material.

“O pato”, “Retrato em branco e preto”, “Carinhoso”, “Desafinado”, “O amor em paz” e “Eu sei que vou te amar” são alguns dos clássicos da MPB que compõem o repertório. Estão presentes autores como Ary Barroso, Tom Jobim, Dorival Caymmi e Wilson Baptista. A faixa instrumental “Um abraço no Bonfá”, uma homenagem ao violonista Luiz Bonfá (1922-2001), é a única música de autoria do próprio João Gilberto interpretada na apresentação no Sesc Vila Mariana.

De acordo com Miranda, os títulos que vierem à luz pelo projeto Relicário serão embalados por uma contextualização histórica, com textos, vídeos, fotografias e material iconográfico em geral, como folhetos, cartazes e notícias jornalísticas veiculadas na época. Ele sublinha que toda essa documentação relativa aos lançamentos poderá ser acessada, de forma gratuita, no site sescsp.org.br/relicário.

Para o lançamento que marca a estreia do projeto, o compositor e letrista Carlos Rennó, que também esteve presente no show de 1998, destaca como João Gilberto vai muito além da interpretação. “É interessante observar os cortes e as trocas de palavras que ele aplica às letras originais, pondo em prática um projeto de dissecação, contenção e economia, que cria espaços e retira excessos. Ele se torna, de certa forma, coautor”, escreve.

Essa visão de Rennó sobre a importância deste lançamento – além das transcrições das letras com as alterações feitas por João Gilberto detalhadas – fazem parte dos materiais que compõem o Relicário e serão disponibilizados no site do projeto, a partir de amanhã, e no encarte do CD e do vinil a serem posteriormente lançados.

“Não temos a menor intenção de concorrer dentro do mercado fonográfico. Tem uma direção que orienta nossos lançamentos, de modo geral, que passa pelo registro daquilo que já fizemos ou ainda fazemos. O lastro não é comercial, ainda que a gente pretenda, claro, que a comercialização desse material reponha substancialmente o custo dele. Mas essa não é a essência da nossa proposta”, salienta Miranda.

 

Significado histórico

O Sesc é uma instituição com 80 anos de atividade. O diretor do Sesc São Paulo explica que o recorte que o projeto Relicário faz nas décadas de 1970, 1980 e 1990 se justifica por dois motivos. O primeiro é que foi a partir dos anos 1970 que os registros de apresentações realizadas nas unidades do Sesc começaram a ser feitos de forma mais sistemática, com qualidade, norteados por uma ideia mesmo de preservação.

“Outra coisa é que tenho a impressão de que, a partir dos anos 2000, os registros têm menos significado histórico. A história exige um tempo de decantação, um afastamento, então a gente também reflete nesse sentido para estabelecer esse recorte temporal”, diz. Ele afirma que não há, ainda, uma definição dos próximos lançamentos do projeto Relicário, mas deixa escapar alguns nomes.

“Temos vários registros guardados de maneira muito cuidadosa, de Paulinho da Viola e Zélia Duncan, por exemplo. Somos uma instituição que tem esse propósito de preservação da memória. Há material de muitos artistas em início de carreira, como Titãs e Vanessa da Mata, que começaram se apresentando em nossos programas, como o Prata da Casa. O início dos Titãs está muito vinculado ao Sesc Pompeia”, aponta.