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O Centenário da estreia do Jazz na Rádio Sociedade do Brasil

Ao reconhecermos o papel essencial desempenhado pelos meios de comunicação modernos e suas relações de poder na difusão do jazz, nota-se que a sua popularização teve uma relação estreita com o rádio. A disseminação do jazz conferiu tanto uma recepção positiva por uns, quanto negativas por outros. O impacto da violação das fronteiras nacionais pelas ondas do rádio, determinou até que alguns regimes totalitários elaborassem estratégias para enfrentar a ameaça representada pelo jazz (JOHNSON, 2019). Associado fortemente como uma expressão cultural afro-americana, o jazz trouxe consigo muitas associações com negritude, sexualidade desinibida e primitivismo. Algumas estações de rádio nos Estados Unidos e Inglaterra também trabalharam contra a miscigenação cultural em sua desaprovação do jazz durante a década de 1920, e proclamaram em voz alta sua recusa em permitir o jazz em suas ondas de rádio, até que sua popularidade os forçou a reconsiderar (CRAIG, 2000).

Em abril de 1923, foi instalada a primeira emissora de rádio brasileira: a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, de propriedade de Henrique Morize e de Edgar Roquette Pinto. As primeiras rádios, foram sociedades ou clubes e tinham como objetivo difundir a cultura e promover a integração nacional. As primeiras emissoras do Brasil foram a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro em 1923, Rádio Sociedade de São Paulo em 1924, e a Rádio Clube Pernambuco no Recife e a Rádio Clube Paranaense em Curitiba em 1924.

 

 

A Rádio Sociedade (RJ) organizava diariamente concertos, conferências, discursos, músicas e a transmissão dos principais espetáculos realizados na capital do Brasil. Logo no início, uma das medidas de Roquette-Pinto antes de iniciar as transmissões, foi realizar um tipo de levantamento das preferências dos ouvintes para montar a programação da emissora, inspirando-se no que havia realizado a revista francesa Radio Magazine. Através da revista Rádio (n.º 06, 01/01/1924, p. 08), houve uma enquete com opções entre música séria, clássica ou de ópera, música leve ou jazz band.

Os sons modernos alcançaram pontos de preferência e em 29 de janeiro de 1924 anunciaram a inclusão na programação do dia, de oito fox-trots executados pela Java Jazz Band. O grupo comandado pelo Maestro Eduardo Andreozzi foi formado em agosto de 1923, após seu retorno de Paris. O violinista Eduardo Andreozzi transitou em formações instrumentais e repertórios diversos desde 1913, apresentados por seus grupos em constante adaptação, enquanto atuou na sala de espera do Cine Odeon e gravou diversos fonogramas. A partir de 1923, terá uma relação com cenas transnacionais no Brasil e na Europa (GILLER, 2020). Em janeiro de 1924 se torna o pioneiro a apresentar seu jazz band, considerado como o primeiro programa com jazz no rádio do Brasil. Em 1925, parte para uma temporada de mais de dez anos na Itália, Alemanha, França e Suíça.

Segundo a programação divulgada na revista Rádio (n.º 09, 15/02/1924, p. 12), as composições executadas pela Java Jazz Band foram o fox-trot “Some Sunny Day” originalmente composto por Irving Berlin em New York em 1922. Berlin foi um dos compositores mais populares daquele tempo de sucessos no Tin Pan Alley e na Broadway. A canção “Wild Flower” de um musical em três atos de autoria de Vincent Youmans e Herbert Stothart, com letras de Hammerstein & Harbarch, foi lançada em 1922. A produção original da Broadway estreou no Casino Theatre em fevereiro de 1923, considerado um sucesso, teve 477 apresentações, encerrando em março de 1924.

O fox-trot “Yes, We Have No Bananas”, de Frank Silver e Irving Cohn, foi um dos maiores sucessos no Rio de Janeiro no segundo semestre de 1923, lançada pelo cabaretier André Randall durante a segunda temporada da Companhia Ba-Ta-clan de Paris, a canção manteve-se nas paradas de sucesso e nos repertórios da maioria dos grupos musicais. Uma série de fox-trots completam o repertório como “Fate” (It Was Fate When I First Met You) de autoria de Byron Gay, foi registrado por Paul Whiteman & Orchestra em 1922, “Stak O’Lee Blues” uma composição de Ray Lopez & Lew Colwell, “Just like a Thief” composta por Horatio Nicholls e “Honolulu Blues” de Miff Mole & His Little Molers, todos lançados em 1923. Destaco o fox trot “Tut-Ank-Amon”, um camel-trot da Argentina, composto por José Bohr, com letra de Canción Millán, foi registrado por Carlos Gardel e pela Orquestra Jazz Band de Francisco Canaro.

 

 

Porém, na mesma Revista Rádio, existem críticas alegando ser o jazz “uma das mais frisantes demonstrações da grosseria musical” e que em sua terra de origem começou a entrar em declínio e que eram muitos os protestos contra o jazz radiofônico nos Estados Unidos. Em 1926, na Revista Eléctron dedicada a radiofonia, protestos inflamam o espírito e lemos: “Combatamos o jazz por todos os modos. Música popular sim, mas que seja música. As estações que transmitem o tal jazz, estão fazendo a cultura do mal gosto, deve a Rádio Sociedade continuar a transmitir essa barulheira?” (ELÉTRON (RJ), 1926, p. 2).

O impacto do jazz através do rádio pode ser percebido pela noção “jazz diáspora” introduzida por Bruce Johnson, na qual, descreve-se o movimento global do jazz, utilizando a migração de músicos e a disseminação através dos meios de comunicação de massa como principais canais (JOHNSON, 2019). Os primeiros movimentos em torno do jazz no Brasil aconteceram através dos mesmos canais diaspóricos identificados por Johnson e este movimento envolveu a ação de músicos de multi locais em trânsito ou que se estabeleceram por motivos pessoais, sociais, artísticos, políticos ou econômicos.

Como em uma espiral no tempo, enquanto os músicos profissionais em cabarés, cinema, sociedades e teatros estavam desenvolvendo a sua própria compreensão do significado da música jazz, os produtores, críticos e o público consumidor também formavam sua própria apreensão da ideia do jazz. A maioria das canções originais estão disponíveis em arquivos digitais. É possível ter uma ideia do repertório executado pela Java Jazz Band na Rádio Sociedade em 29 de janeiro de 1924 acessando os links abaixo.

LINKS

1. “Some Sunny Day”
https://archive.org/details/78_some-sunny-day_majestic-dance-orchestra-berlin_gbia0439694a
2. “Wild Flower”
https://archive.org/details/78_wild-flower_majestic-dance-orchestra-vincent-youmans-and-herbert-stothart_gbia0414066b
3. “Tut-Ank-Amon”
https://www.youtube.com/watch?v=LZ0xTvvTOsk
4. “Stak O’Lee Blues”
https://archive.org/details/78_stack-o-lee-blues_warings-pennsylvanians-ray-lopez_gbia0007368a
5. “Just like a Thief”
https://www.youtube.com/watch?v=qkJLykVpL_k
6. “Fate”
https://www.youtube.com/watch?v=Da6N_zOsFuI
7. “Honolulu Blues fox-trot”
https://archive.org/details/78_honolulu-blues-tristezas-de-honolulu_jack-chapman-and-his-drake-hotel-orchestra-r_gbia0002748b
8. “Yes, We Have No Bananas”
https://archive.org/details/78_yes-we-have-no-bananas_the-lanin-orchetsra-frank-silver-and-irving-cohn_gbia0029784b

 

Marilia Giller é pianista, compositora e pesquisadora. Professora no curso Superior de Instrumento da UNESPAR Campus I de Curitiba. É Doutoranda em História (AMENA/PPGHIS UFPR-2021), possui Mestrado em Etnomusicologia (UFPR-2013); Especialização em Música Popular Brasileira (FAP-2005); Bacharelado em Música Popular (FAP-2007); Bacharelado em Pintura (EMBAP-1984). É idealizadora do NEMUP – Núcleo de Estudos da Música no Paraná e Líder do GEJAZZBR Grupo de Estudos do Jazz no Brasil.

 

REFERÊNCIAS

CRAIG, Douglas. Fireside Politics Radio and Political Culture in the United States, 1920–1940 (Radio at the Margins). Johns Hopkins University Press, Maryland, 2000.
GILLER, Marília. O jazz transatlântico na América Latina na década de 1920: trajetórias e músicos pioneiros no atlântico sul. In: Estudos Latino-Americanos sobre Música: vol. I /Organizador Javier Albornoz – Curitiba, PR: Artêmis, 2020.
JOHNSON, Bruce. Jazz Diáspora (Transnational Studies in Jazz) Taylor and Francis. 2019.
Revista Rádio Sociedade, Rio de Janeiro (RJ), n.º 06, 01/01/1924, p. 08.
Revista Rádio Sociedade, Rio de Janeiro (RJ), n.º 09, 15/02/1924, p. 12.
Revista Electron, Rio de Janeiro (RJ), n.º 01, 01/02/1926, p. 02.

 

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