Orkestra Rumpilezz lança ‘A Saga da Travessia’
Kiko Ferreira, Estado de Minas, 04/09/2016
Apesar da decantada riqueza rítmica da música brasileira, não são muitas as orquestras que, ao longo dos anos, traduzem essa variedade em palco e estúdio. A Banda Veneno, de Erlon Chaves, a efêmera banda Metalurgia e, claro, a Orquestra Tabajara, de Severino Araújo, são algumas das iniciativas bem-sucedidas na área, além do projeto de Mário Adnet com a música de Moacir Santos. Por isso, o fato de a Orkestra Rumpilezz, do maestro e músico baiano Letieres Leite, comemorar 10 anos de existência, merece a louvação do que deve ser louvado.
Para celebrar a data redonda, acaba de ser lançado, pelo selo Sesc, o segundo CD da orquestra, . Um disco que convive bem ao lado de trabalhos recentes, como os da Abayomy Afrobeat Orquestra, a da Spok Frevo Orquestra e do grupo Bixiga 70, e mostra evolução desde a bela estreia, em 2009, que tinha a presença de Ed Motta (na faixa Balendoah) como chamariz para um novo público. A mistura de percussão baiana com linguagem jazzística segue um estimulante roteiro, inspirado na trajetória e nas tragédias do povo africano. Baseado no diálogo dos tambores com os sopros, compostos e arranjados pelo flautista e saxofonista Letieres Leite, o álbum foi gravado no Teatro Castro Alves, em Salvador, em janeiro passado. E registra, em oito faixas, um misto de densidade e fluência raro em trabalhos conceituais desse nível.
Com títulos que sugerem cenas e fatos que a música ajuda a imaginar e/ou reconhecer, o CD abre com a trilogia que dá nome ao álbum, uma espécie de suíte em três partes, com Banzo 1, Banzo 2 e Banzo 3. Banzo é o sentimento misto de nostalgia, saudade e melancolia que os africanos vindos para o Brasil tinham da sua terra. E a trilogia dá uma sensação de coragem e vigor no tratamento dessa sensação. Já valia o disco.
OGUM
Mas o roteiro, encerrado com os épicos 11 minutos da cinematográfica Mestre Bimba, visita o palácio de Ogum, que varia entre ritmo de capoeira e toque para Ogum, passa por cenas que remetem a nobreza, influências, sabedoria e cenas populares. A primeira foi feita inicialmente para o quinteto, mas Letieres confessa que, desde o início, tinha o que ele chama de “característica orquestral”. Professor Luminoso é um ijexá em homenagem a Gilberto Gil. Feira de sete portas tem uma origem curiosa, como conta o compositor: “Estava fazendo um ensaio fotográfico na feira e soltaram uma galinha. Vi música naquilo e me inspirou.” E Dasarábias, Letieres fez “para homenagear a origem ancestral árabe”.
A Rumpilezz é formada por quatro músicos de percussão, que tocam atabaques, surdo, timbau, caixa, agogô, pandeiro e caxixi, além da atabaqueria, bateria com tambores substituídos pelos ataques do candomblé. A essa “cozinha”, estão aliados 15 músicos de sopro, com naipes de trompete, trombone, saxes (alto, soprano e tenor), flautas e baixos (tuba, sax barítono e trombone baixo). O nome da orquestra, que traduz com precisão a sonoridade do grupo, vem dos tambores do candomblé, rum, rumpi e lé, com os dois zês da palavra jazz fechando o conceito e a marca.
Letieres Leite tem mais de três décadas de carreira. Começou com as artes plásticas, estudou música na Universidade Federal da Bahia, passou temporadas como músico, arranjador e produtor em Salvador, no Sul/Sudeste do país e na Europa. O elenco que contou e conta com seus serviços vai de Toninho Horta e Hermeto Pascoal e os jazzistas Joshua Redman e Steven Bernstein a estrelas populares como Gilberto Gil, Ivete Sangalo, Lenine e Lulu Santos. Esse livre trânsito faz com que ele destile sua musicalidade baseada na herança afro-baiana com elementos de outros estilos e culturas, formando um conjunto que rima erudição com popularidade. Casamento que falta em boa parte da cena instrumental brasileira, na maioria das vezes composta por músicos mais preocupados com escalas do que com escolas.