Lançamentos

Os novos discos de André Mehmari e Diogo Monzo

Daniel Barbosa, Estado de Minas, 14/09/2021 

André Mehmari chega com Notturno 20>21”, em que apresenta temas próprios, improvisos, uma música de Hermeto Paschoal e composições de autores europeus, com foco no barroco, passando por Itália, Alemanha e França, abarcando, portanto, um arco que cobre desde o século 17 até os dias atuais. Embora “Notturno 20>21” contemple um vasto mosaico musical, Mehmari considera que é um trabalho que tem unidade, na medida em que os temas encontram um ponto de convergência que é dado pelo caráter reflexivo e intimista da obra. Trata-se do primeiro álbum de piano solo que ele lança e foi todo concebido e executado em seu estúdio, o Monteverdi. Na opinião do pianista e compositor, “Sarabande”, de J. S. Bach, se conecta, sem atritos, com “Uma valsa em forma de árvore”, de sua autoria, por exemplo.

O repertório é amplo, vai do século 17 até Hermeto Pascoal, passando pelos improvisos, mas percebo que existe ali um fio condutor, que é o estado de espírito reflexivo e intimista”, diz ele. “Embora a gente passe de um período a outro e de uma latitude a outra a largos passos, sinto que só essas peças poderiam estar ali, porque elas têm uma interação entre si. Sinto que Brahms conversa com Louis Couperin, que é representante do barroco francês. E a gente também pode ver essa influência do barroco nos improvisos”, aponta.

A ideia inicial de Mehmari era fazer um álbum inteiro de improvisos ao piano solo, mas “Notturno 20>21” acabou ganhando uma característica diferente, a partir do momento em que abraçou a música barroca:
Achei que existia uma feição própria desse álbum no encontro dessas peças e acabei incluindo só três improvisos na versão que está para streaming e oito faixas bônus na versão que está no meu site”, diz. Ele afirma que os temas de outros autores que compõem o repertório o acompanham há décadas e conta que, agora, até mesmo em função do atual cenário da pandemia, resolveu “mergulhar” nesse material e fazer o registro.

No texto de apresentação do álbum, o crítico de música erudita Irineu Franco Perpétuo observa que, em razão do caráter barroco da obra, as interpretações são informadas pelo profundo conhecimento e amor de Mehmari pelo cravo – que ele, no entanto, optou por não usar, apesar de ter o instrumento disponível em seu estúdio e de tocá-lo com desenvoltura.

O instrumentista explica que resolveu registrar tudo ao piano, mesmo o repertório do século 17 pensado para cravo, como uma forma de buscar novas cores e novos significados para as composições:
Gosto de transpor para o piano algo que não foi composto para ele. Tem a ver com as dinâmicas que faço, extremamente contrastantes. Tenho o cravo, tenho como tocar com o temperamento da época, mas quis revisitar esse repertório tão amplo ao piano solo”, aponta.

 

 

ESTADO DE ESPÍRITO

Inteiramente executado, gravado, mixado e masterizado por Mehmari, “Notturno 20>21” reflete estes tempos pandêmicos de isolamento social. “Acho que toda produção de um artista neste momento em alguma medida reflete o estado de espírito dele e o estado do tempo em que ele vive”, diz.

Mas esse é, talvez, o álbum mais introspectivo e mais intimista de todos que eu já lancei. Não à toa ele se chama ‘Notturno’, porque foi gravado nas madrugadas insones do primeiro semestre deste ano. É um repertório profundamente reflexivo”. Se o desejo de fazer um álbum de piano solo vem desde o ano passado, quando lançou com seu trio instrumental o “Música para uns tempos de cólera”, a efetiva feitura da obra teve início em março deste ano.

Ele diz que, diferentemente de “Noël: Estrela da Manhã”, que também veio a público no ano passado e foi todo gravado em uma única madrugada, a execução de “Notturno 20>21” demandou um período de tempo maior. O álbum, conforme aponta, traz duas composições inéditas, escritas recentemente, “O tema que não entrou no filme” e “Rio antigo”, além, naturalmente, dos três improvisos, batizados como “Expresso notturno 1: agitato”, “Expresso notturno 2: corale” e “Expresso notturno 3: stazione termini”.

Sobre “O tema que não entrou no filme”, Mehmari diz tratar-se exatamente disso:
É uma música que integra um conjunto de composições que fiz para uma trilha sonora de 2012, da série ‘Suburbia’, e esse tema acabou ficando de fora. Reencontrei o caderno de anotações daquela época, fiz uma segunda parte para ele agora em 2021 e a faixa veio finalmente à luz com esse hiato de nove anos”. Por outro lado, ele diz, o repertório também guarda composições de sua autoria com mais de duas décadas, caso de “Uma valsa em forma de árvore”, que é de 1998.

 

 

ÓPERA

Artista extremamente prolífico, Mehmari diz que a chegada da pandemia não o impediu de manter a média de três a quatro lançamentos por ano, e que, além de sua produção discográfica, tem composto muito sob encomenda – inclusive para a Orquestra Ouro Preto, que deve estrear em breve uma obra sua – e trabalhado em uma ópera, o que lhe tem demandado muito. Não tanto a ponto de impedi-lo de se desdobrar em outras frentes.

Tenho me ocupado muito em gerenciar o meu estúdio, que virou um centro de produção muito importante durante a pandemia. Tenho recebido alguns artistas, a Mônica Salmaso, o Zé Miguel Wisnik, que vêm gravar aqui, então virei também videomaker, fotógrafo, editor de vídeo”. “Descobri essa vertente minha de produção de conteúdo, então investi em equipamento. A vida de viagens que foi interrompida me abriu um portal de produção aqui no estúdio bastante intenso, então gravo outros artistas, atuando como engenheiro de som, produtor de vídeo e o que mais precisar”.

Ele avalia que essa reorientação está em consonância com o atual momento. “A vida mudou completamente, e a gente quer sempre fazer o melhor nos formatos disponíveis. Esse formato de conteúdo digital é o que há neste momento.” Em relação à retomada de atividades culturais presenciais, ele segue cauteloso. “Essa ideia dos palcos continua bastante nebulosa, o quando voltar e o como vai ser. Para mim, o retorno está bastante lento, sou muito criterioso. Desde o início da pandemia, fiz apenas duas apresentações, e sem público”.

 

REVERÊNCIA À MÚSICA BRASILEIRA

Se André Mehmari contemplou um vasto mosaico de compositores em seu novo álbum, o pianista, arranjador e compositor Diogo Monzo optou por centrar foco numa produção autoral e inédita no disco que acaba de lançar, intitulado “Sebastiana” em homenagem à sua avó, que morreu poucos dias antes do início das gravações, em janeiro deste ano. Das 11 faixas, apenas uma não leva a sua assinatura – “Chorinho para Fernanda Póstress”, de Luiz Eça – e só duas não são inéditas, “Segredos” e “Meu samba parece com quê?”. A inclusão de Luiz Eça no repertório deve-se ao fato de ele ser assumidamente a maior influência de Monzo, cujo mestrado, concluído em 2016 na UnB, foi sobre a obra do pianista fundador do Tamba Trio.

 

 

INÉDITA

Eu já tinha gravado uma outra música inédita dele, porque a viúva, Fernanda Quinderé, tem disponibilizado essas partituras que permaneciam guardadas. Tenho tido o cuidado de fazer o registro dessa obra porque ele é realmente uma influência grande na minha trajetória, me impactou muito”.

Monzo afirma que a base erudita aplicada a uma forma de tocar “voltada para o Brasil” é o que chama a sua atenção em Luiz Eça. Com uma discografia que inclui títulos como “Meu samba parece com quê?” e “Diogo Monzo filho do Brasil”, ele estima que “Sebastiana” aprofunda seu interesse pela música brasileira.
“A minha intenção foi desenvolver pequenos temas a partir de ritmos brasileiros, como baião, frevo, maracatu, samba, choro, que se entrelaçam e ganham corpo através dos momentos de improvisação”, define. “Sempre procuro nos meus discos trabalhar essa coisa da cultura musical brasileira, mas deixando muito espaço aberto para a improvisação.”

Ele diz que “Sebastiana” representa, contudo, uma experiência nova, já que nunca tinha composto temas a partir de ritmos. “Eu nunca tinha escrito um frevo, por exemplo, então acaba saindo de um jeito meu. Acho bacana isso, você criar a partir de quem você é, porque aí acaba misturando tradição e inovação, sempre com a contribuição das pessoas com quem você está tocando. É a forma como eu me relaciono com esses ritmos. Cada músico se relaciona de um jeito, na hora a gente junta tudo isso e colhe os frutos”.

A propósito, ele conta com o acompanhamento do baixo de Bruno Rejan e da bateria de Di Stéffano na maioria das faixas, além do violão de Roberta Mourim em uma delas. Monzo cita que já tinha gravado alguns temas com o baterista e com o baixista e que tinha o desejo de executar um álbum completo ao lado dos dois músicos.

Assim, as faixas de “Sebastiana” foram gravadas em trios, duos e, no caso do tema de Luiz Eça, ao piano solo. “Tem uma improvisação no disco para a qual convidei a Roberta Mourim, que, assim como eu, também está fazendo doutorado. Essa peça tem a ver com criar livre, deixar acontecer naquele momento. A forma como as faixas se apresentam foi uma coisa meio natural. Em três dias de gravação, fomos estipulando esses formatos, experimentando as músicas, os temas.”