DestaqueSem categoria

Paulo Thiago: uma despedida com estilo e arte

Em torno das treze horas de sábado último (05/05) recebi a notícia da perda de Paulo Thiago. Em meio à surpresa e espanto, não terminei meu copo de chope. Levantei-me da mesa, fui espairecer um pouco e pensar que forma de tributo deveria fazer. Tinha que responder a essa enorme vazio causado pela sua ausência. Contar trechos de nossa amizade ao longo do tempo poderia fazer do texto uma colcha de retalhos. Decidi então focar dois pontos e interligá-los: a sua influência na minha formação intelectual e à nossa única experiência em comum no universo fílmico, ‘Senhores da Terra‘.

 

Prólogo: Férias em Família

Dois seres humanos, prá lá de queridos, foram os responsáveis pela minha iniciação e envolvimento com a literatura, música e cinema. À minha tia madrinha Ghislaine Penna coube a literatura por onde passariam desde Karl May até Balzac indo a Mário de Andrade e Drummond. A Paulo Thiago, misto de primo e guru, coube trazer os novos ventos da capital, com a Bossa Nova e o Cinema Novo. A cada ano nas férias de janeiro trazia sempre discos, com destaque para João Gilberto ou Tom Jobim. Eu gostava de ouvir o seu discurso inflamado e apaixonado pela arte e política, que me fazia sentir os ares das mudanças que estavam rolando no Rio.

Passado o mês de férias, Thiago retornava à sua cidade e os rastros deixados pela sua presença ia aos poucos sendo dissolvida na poeira das rotinas de uma cidade do interior. A diferença de idade, dois anos, somados ao abismo cultural dos locais onde vivíamos, o transformava em um ser pouco acessível para mim. Com a minha mudança para BH e depois com a minha entrada no mundo universitário, pude estar mais presente no mesmo mundo que ele e ver essa distância diminuir.

O nosso verdadeiro encontro se deu quando Paulo Thiago partiu para Aimorés com o propósito de rodar seu primeiro longa, ‘Senhores da Terra‘. Foram dois meses e meio de convívio, onde não só pude participar do processo de filmagem, como estar mais próximo e conhecê-lo para tornar um grande amigo e um irmão de coração. Daí, abri meu baú de memórias para contar um pouco daquela grande experiência como tributo a esse grande ser humano que passou por essa terra e que tive a honra que partilhar sua amizade. Querido Thiago, o texto que será lido abaixo foi escrito pensando em ti.

 

 

SENHORES DA TERRA – FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO

 

Sequência 1 – Belo Horizonte, agosto de 1969

A essa hora era para estar cursando o terceiro semestre do básico da Economia da UFMG, mas em meio à repressão e loucuras de 69, acabei perdendo o prazo de matrícula. No mínimo, era para ficar puto comigo mesmo, mas creio que inconscientemente havia um motivo para essa ‘dançada’.

A essa altura Paulo Thiago já tinha começado a rodar em Aimorés, o seu primeiro longa, ‘Senhores da Terra‘, depois de concluir o curta sobre Guimarães Rosa. Daí, joguei na mala as minhas tralhas, parti para a Estação e peguei o trem às dez da noite e la pelo meio dia do dia seguinte estava descendo na minha terrinha. Cheio de gás e expectativas para participar da minha primeira experiência cinematográfica.

Sequência 2 – Hospedagem em Aimorés

As filmagens já tinham começado quinze dias antes quando cheguei na casa de meus pais, Wilson e Mary. Lá estavam hospedados Paulo Thiago (primo de minha mãe) e Cláudia, esposa e responsável pela cenografia e continuidade. Para minha surpresa, também estava hospedada na casa a atriz Ausonia Bernardes, uma baiana branca e sisuda, protagonista desse que foi a sua única participação em um filme. Creio que isso foi devido em parte a seu noivo ciumento, que volta e meia despencava de Salvador para aplacar seus ‘cornos‘ invisíveis.

No parte de cima do sobrado da Casa Thiago ficava a maioria da equipe de som e imagem e os atores Roberto Bonfim, Rodolfo Arena e Angelito Mello. No grande Palace Hotel da praça da Estação, ficavam os atores renomados como Milton Moraes, Paulo Vilaça, o diretor de fotografia Roland Henze e os produtores do filme.

Sequência 3 – Argumento e Roteiro do filme

O argumento, sem dúvida, estava pronto na cabeça do diretor, mas o roteiro ia sendo escrito aos poucos, sendo as falas entregues aos atores à noite, no sobrado, na véspera da filmagem. Só então os ensaios eram feitos e caso necessários, Paulo fazia os ajustes e correções no texto. Pelo fato dos atores serem do Rio e o local da filmagem na fronteira de MG/ES, o processo de filmagem não seguia a ordem do roteiro e sim a de estadia dos atores, pois alguns só participavam de algumas sequências ou planos e tinham às vezes alguns dias disponíveis para a filmagem.

A história do filme, era carregada pela linguagem roseana mas dentro de uma dialética que recebia influência glauberiana e a recriava. Não mais o fanatismo religioso e o cangaço como formas de alienação social e a solução estando presente no. Em ‘Senhores da Terra‘, o conflito se dá entre o velho poder rural representado pelo Coronel Floro e novo poder tecnoburocrático representado pelo Engenheiro Hélio. Aqui, a solução estava na luta armada sob o comando do jagunço Iscariote e Viviana, enteada do velho coronel Floro.

Sequência 4 – Processo de Filmagem

A minha labuta diária começava em torno das sete da manhã, já de pé tomando café junto com Paulo e Cláudia. Um pouco depois a equipe se juntava, íamos para o set de filmagem. Antes que me esqueça, Paulo designou que minha função na equipe seria a de assistente de fotografia, responsável pela fotografia de cena (também conhecido como still). Nunca me esqueço da batalha que tinha de fazer toda manhã para encontrar um Jeep Willys azul, que era o veículo do delegado. Como era o transporte dos fazendeiros para a roça, ele nunca se repetia…haja problema de continuidade.

As locações eram na cidade de Aimorés, onde foram utilizadas a casa do Tio Washington (ex-prefeito), a Delegacia, o Forum (cena do assassinato do prefeito), na rinha de galo do meu pai, etc.. e é claro, o falecido Rio Doce, que no filme tinha um papel muito importante. Toda parte rural foi filmada nas fazendas da Lorena (que tinha sido da nossa família) e do Tio Oscar Castro (hoje lá tem um acampamento cigano). Havia também locações em Baixo Guandu, Minha função na equipe era de assistente de fotografia, também conhecido como still, responsável pela fotografia de cena.

Sequência 5 – Personagens

O velho poder representado pelo Coronel Floro era o personagem do veterano ator Rodolfo Arena, que se auto intitulava ‘o Take 1 do Cinema Nacional‘, ou seja, nunca repetia uma tomada em que o erro fosse dele. O jagunço Judas Iscariote, que é contratado para vingar a morte do prefeito, era o papel de Roberto Bonfim (colega de sala do Thiago na faculdade) e Rosa Viviana, a enteada do coronel, era o de Ausonia Bernardes, que faria a cabeça do jagunço para ter ideologia e comandar uma revolução. O novo poder, que representava o capitalismo emergente era o engenheiro Hélio, papel de Paulo Villaça, ator que tinha ficado famoso com o ‘Bandido da Luz Vermelha‘ de Rogério Sganzerla, cult do cinema underground.

O delegado, caiu como uma luva para Milton Moraes, muda de lado, abandonando Floro e passando a defender o poder emergente. E no meio disso tudo, tinha o profeta era representado por um artista local, Valdetá, que andava pela cidade como se fosse um Conselheiro. Por razões de interpretação, sempre falava de costas para a câmera, para que sua voz fosse dublada por Othon Bastos. No final do filme, Iscariote, já munido de consciência revolucionária, parte para a luta armada levando junto a sua noiva militante, aqui representando o poder feminino ascendente.

Sequência 6 – Rio de Janeiro

Em janeiro de 70 terminou a montagem do filme realizada por Raimundo Higino, muito presente em filmes do Cinema Novo. Em seguida iria iniciar o processo de dublagem e ele seria executado no Laboratório Líder, situado na Rua da Passagem em Botafogo. Como continuava no pique, me mandei para o Rio e fiquei hospedado na casa dos meus tios Haydée e Paulo, pais de Paulo Thiago. Mas, voltando à história, fiquei em torno de um mês por lá e deu tempo para me enamorar por uma secretária da Líder, que mais velha e mais sábia, curtiu o meu assédio e se manteve à distância.

Como o Rio era o centro cultural do Brasil naquela época, a vontade mudar era enorme, mas a minha realidade de dependente me fez cair na real, uma vez que era sustentado pelos meus pais, caiu a ficha voltei para BH, que por sinal, já não estava tão provinciana assim.

Sequência Final – Exibição

Com certeza, a primeira exibição foi no saudoso Cine Ideal (fundado pelo meu Tio Péricles), onde a plateia formada por aimoreenses que se deleitavam ao se reconhecerem, ou identificando pessoas e locais de filmagem. O enredo apesar de ser complexo e alegórico pouco importava; certos fatos ali ocorreram, como o assassinato do prefeito, o que foi suficiente para que as pessoas se identificassem com o clima do filme. Não se pode esquecer que ‘Senhores da Terra‘ acabou sendo premiado no festival de Karlovy Vary. E Paulo Thiago, quatro anos depois mergulharia num mar mais roseano que nunca ao filmar ‘Sagarana: O Duelo‘.