Jazz News

Tony Bennett: O Último Crooner

Texto de Sergio A. Pujol, publicado no site Página 12 – Radar, em 21/01/2007

Nos anos 50, quando o mundo do pós-guerra caiu aos pés de cantores que falavam de corações partidos e sonhos perdidos, centenas de jovens lutavam para se tornar o novo Frank Sinatra. Muitos eram filhos de italianos, usavam ternos bem cortados e cantavam sentados em banquinhos na fumaça do cigarro. Mas entre todos eles, apenas um se tornou único. Agora, aos 80 anos, Tony Bennett, o homem que fez suar os fãs de Sinatra, retorna com um álbum de duetos cercado por grandes nomes.

Sua categoria de grande hotel se revelava nos cem quartos muito confortáveis ​​e na bela vista da baía. Com uma decoração um tanto extemporânea e um cardápio que pouco honrava o cosmopolitismo da costa oeste da cidade, o Fairmont Hotel de San Francisco costumava receber, para deleite de seus hóspedes ensolarados, números musicais. E naquela noite de 1961, o show tinha um nome ilustre.

Tony Bennett foi o melhor expoente desses cantores dos anos 50 relutantes em rock and roll. Os seus maiores sucessos, como “Because of You”, “Cold, Cold Heart” ou “The Boulevard of Broken Dreams”, encheram os reservistas de esperança, justamente quando Elvis estava começando a mudar as coisas. Tony sobreviveu melhor que outros, graças ao apoio da Columbia e ao gosto de alguns compradores de discos de jazz que perceberam no fraseado cúmplice do ítalo-americano uma musicalidade que não abundava no mundo da canção sentimental.

Se Tony Bennett ia substituir o ainda invencível Frank Sinatra, era melhor que se acostumasse com a ideia de que os anos dourados da canção americana não estariam mais conjugados no presente. A sensação de cantar um pouco desafinado – mas nunca desafinado – acompanharia Bennett ao longo de sua vida, mesmo em seus momentos mais reconhecidos. Ele saberia então que, ao persistir em seu estilo, sempre teria que lidar com uma pergunta não formulada: sua arte era clássica ou antiquada?

Naquela noite, Tony cantou em San Francisco uma música que falava muito diretamente sobre a cidade. Piscou seu sol dourado para os viajantes e reuniu seus bondes em colinas perto das estrelas, segundo a caligrafia duvidosa. O protagonista da música se sentia terrivelmente sozinho em Roma, Paris e Manhattan. Tudo o que ele queria era voltar para San Francisco. “I left my heart… –Tony começou– in San Francisco”: suspiro geral. Essa canção, escrita em 1954, não era um standard, não nascera do talento imantado dos compositores populares das primeiras décadas do século XX, mas dos ofícios de um ex-barítono da ópera da cidade –Douglass Cross– e de um ex-assistente do compositor Gian-Carlo Menotti, George Cory. Agora, na voz de Tony, era quase uma estreia: a suave melodia de um tempo que se recusava a morrer.

 

 

Mais de quatro décadas se passaram daquela cena em um hotel de São Francisco e Tony Bennett – agora mais clássico do que ultrapassado – resolveu comemorar seus 80 anos regravando os melhores momentos de seu repertório. Trata-se do velho truque dos grandes momentos inventariados, com o não tão velho truque do álbum de duetos, desses que acabam favorecendo mais os convidados do que o anfitrião. Como é fácil supor, a lista de vozes convocadas para Tony Bennett Duets. Um clássico americano é tão extenso quanto ofuscante: Paul McCartney, Barbra Streisand, Elton John, Sting, Stevie Wonder, Diana Krall, kd lang, James Taylor, Elvis Costello… e os nomes a seguir.

Em todo o caso, para a nova versão da música que Tony estreou naquela noite no Fairmont, quando os anos 60 ainda não eram os anos 60, o cantor e seu produtor, Phil Ramone, concordaram que a homenagem mais comovente que poderia ser prestada ao amor renovado por Frisco era suspender por alguns minutos o imperativo gregário dos duetos e deixar tudo exposto, correndo o risco de o argentino Jorge Calandrelli, encarregado dos sons volumosos do álbum, sofrer um ataque de vertigem ante os silêncios prolongados da versão . E assim foi.

Longe do barulho, Tony Bennett cantou sozinho, sem despedidas, o seu eterno sucesso. Sozinho e surpreendentemente exuberante, com o acompanhamento austero do pianista Bill Charlap, cujas suspensões perfeitas –onde nossa memória recordava cordas e mais cordas– identificam-se mais com o espírito de resposta do que com a declaração de amor urbano. O luxuoso descanso é mais ou menos previsível, com pérolas isoladas (Paul e Tony interpretando “The Very Thought of You” no Abbey Road Studios, para ser exato, ou Barbra e Tony interpretando “Smile” na mansão de Hello Dolly em Malibu) e a arte da música reduzida à lógica das grandes produções.

Aliás, todo mundo sabe que o único efeito interessante que esse tipo de companhia tende a ter é sempre retrospectivo, um convite para desenterrar discos antigos, comparar épocas e refletir um pouco sobre o lugar que nossos artistas preferidos conseguiram conquistar para si em um mundo marcado por muitos boulevards de corações partidos. Desta vez, a recuperação de uma discografia tão soberba –Bennett gravou pelo menos uma dezena de magníficos discos– será seguida de prémios de boa memória: um especial de televisão que os americanos já viram e um documentário realizado por Clint Eastwood e narrado por George Clooney. Como diziam nossos avós: alugar varandas.

 

 

De Benedetto a Bennett

Ele cresceu em Astoria, Nova York, durante a Depressão, e em algum momento de sua vida considerou seriamente se tornar um pintor. Seria mais tarde, mas ao fundo, como quem revela, com um traço resignado, que o seu hobby sempre soube ser uma profissão em formação, aquela outra vida de que todos a dada altura abdicamos, porque não há tempo para tudo. “Pinto durante o dia e canto à noite“, disse ele há alguns anos.

Filho de imigrantes italianos, o jovem Anthony logo descobriu que a nacionalidade dos pais não seria mera informação das Migrações caso optasse por cantar. Quando começou a cantar em clubes e cassinos populares, conheceu muitas crianças italianas que sonhavam, seguindo um pouco Mario Lanza e muito Frank Sinatra, com a fama repentina. Todos usavam smokings impecáveis, ocasionalmente enfiavam os lenços brancos nos bolsos superiores e, ansiosos para conquistar o público, sentavam-se na beira de um banco, segurando o microfone com uma indiferença praticada.

Eles cantavam em Little Italy English, segurando notas longas sempre que podiam, como um final de ária, mas estalando os dedos com swing. Daquela infinidade de cantores e rotinas, alguns tinham algum talento, como Perry Como, Vic Damone ou o ator Dean Martin, embora a maioria desses homens legais fosse direto para o purgatório do show. Como era, pelo menos até o final dos anos 50, a sociedade americana parecia precisar de seus crooners para lhe contar as provas do amor.

Depois de ser chamado de Joe Bari por um tempo, o jovem Anthony finalmente encontrou sua assinatura artística definitiva: Tony Bennett. Coloquialmente americano e de clara descendência italiana, o nome teve o efeito de uma história condensada. Muitos Tonys, mas apenas um Bennett: a democracia americana celebra os ilustres enquanto encoraja aqueles que se esforçam para se tornarem ilustres. E então o acaso, o golpe de sorte necessário para que a biografia valha a pena ser contada uma vez.

Foi então dito que houve uma descoberta. Bob Hope decidiu continuar uma longa noite de festa em um lugar quase anônimo da Big Apple. E então, oh surpresa!: quem era aquele menino ingrato na frente dele? Tão reacionário quanto generoso, Hope prometeu ajuda a Tony Bennett – ou ele ainda era Joe Bari? – e ambos cumpriram. O famoso ator deu-lhe contactos da sua agenda e o cantor venceu a timidez cantando cada vez melhor. Até se tornar o cantor perfeito, aquele capaz de atuar sem problemas em cada linha da música.

O contrato na Columbia salvou Tony da opacidade dos cabarés do pós-guerra, embora o obrigasse a seguir as instruções do astuto Mitch Miller –o vilão das fábulas musicais– e um arranjador um tanto bombástico: Percy Faith. Fiel a quem o ajudou quando ainda não era um clássico americano, Tony jamais deixaria de falar com respeito e gratidão desses personagens, mas desconfiemos que ficou genuinamente feliz ao gravar o primeiro dos dois LPs com a orquestra de Count Basie (vale acrescentar também que TB foi o primeiro cantor branco a gravar com Basie; Sinatra seguiria seus passos).

 

 

Ao longo dos anos 60, lutando contra o rock e o pop – embora na verdade Tony fosse um cantor pop… da era do jazz – o homem que confessou ter deixado o coração em San Francisco continuou a gravar discos com covers convencionais e canções magníficas, embora algumas fossem um tanto inchadas por excesso de melodia, se assim se pode dizer. Mesmo naquelas situações melodramáticas, a elegância e a precisão de Tony impressionavam a todos e a todos. Em “For Once in My Life”, por exemplo, ele subia duas oitavas sem vacilar, depois passava para uma música mais falada ou entrava em passagens tão intrincadas que apenas uma voz tecnicamente educada poderia navegar com habilidade semelhante, talvez menos graciosa.

Em meados dos anos 60, com o piano preciso de Ralph Sharon protegendo suas costas e guiando-o em harmonia, Tony Bennett atingiu o auge de seu estilo. Mudaram de arranjadores – Ralph Burns, Torrie Zito e Don Costa escreveram para ele algumas partituras muito engenhosas – e a sua gama de tenores prevaleceu no seu género, numa linha até então dominada por barítonos como Crosby e Sinatra.

Tinha 40 anos, uma idade impensável nos tempos do baby boom, e não havia música da era pré-Beatles que lhe resistisse, ou da qual não extraísse uma beleza sem precedentes. Cantava de forma descontraída e apaixonante ao mesmo tempo, algo muito seu e muito raro. Os fãs de Sinatra suavam de nervosismo toda vez que uma versão de Tony parecia replicar suas crenças mais profundas. Ele era sinônimo de elegância e honra. Ele ainda usava terno e gravata, nada impressionado com a liberação da Era de Aquário. Seu sorriso franco e corte facial etrusco emanavam um brilho capaz de cativar até mesmo o mais desalinhado dos caminhantes da Carnaby Street.

Voltar com glória

Em 1973, descobriu-se que Vittorio De Sica planejava filmar a vida de Tony Bennett. Como teria sido a vida de Tony depois do filme que não foi feito? A verdade é que em 1973 aquela vida parecia ter acabado, pelo menos em termos artísticos. Dois anos antes, o cantor havia batido a porta da Columbia, cansado de sofrer pressões para modernizar seu repertório e entrar em sintonia com os tempos. O que eles estavam fazendo? Que ele deixaria o cabelo crescer e trocaria seus ternos italianos por coletes de couro? Sua voz parecia encantar a todos, exceto os tesoureiros da Columbia. De qualquer forma, se ele tivesse se afastado naquela época, deixando a narrativa de sua vida nas mãos de biógrafos, cineastas e colecionadores de vinis, seria lembrado com admiração hoje. Mas a história não acabou: ainda haveria uma longa faixa bônus.

 

 

Em meados dos anos 80, promovido por seu filho Danny, o homem estava de volta à mesa. Com exceção de dois álbuns com Bill Evans – obras-primas, por sinal – e algumas apresentações isoladas em salas de concerto, a aposentadoria foi longa o suficiente para que seja legítimo falar de um verdadeiro retorno. Desde então, Bennett não saiu mais. Nos anos 90 não saía de lugar nenhum sem visitar. Apareceu nos MTV Awards ao lado dos Red Hot Chili Peppers, foi o primeiro ator convidado em The Simpsons, fez o seu próprio unplugged show para cabo e dedicou-se à gravação, novamente com a CBS (agora nas mãos da Sony): um álbum dedicado a Duke Ellington, outro a Frank Sinatra, um terceiro a Fred Astaire... O que terá acontecido? Vários argumentos foram apresentados. Para os críticos mais conservadores, O retorno de Bennett foi a prova de que grandes melodias resistiram com sucesso às hordas bárbaras dos anos 60 e 70. De certa forma, o próprio cantor – intransigente neste ponto – compartilha desta tese, e que em seu novo CD ele cante um dueto com o ABC do pop moderno talvez seja mais uma vingança sutil do que um gesto de sociabilidade.

No entanto, a dinâmica do avivamento não é exclusiva ou limitada. Também não se pode dizer que a melodia morreu com o antigo álbum de padrões. Ou não são os Beatles, o epítome da cultura anti-crooner, alvo de constantes homenagens e fontes inesgotáveis ​​de melodias? Uma explicação menos ideológica é provavelmente plausível. Afinal, os valores que Tony Bennett pode representar já teriam ido para o inferno se o cara estivesse balbuciando seus antigos sucessos e seus olhos lacrimejassem a cada lembrança. Mas Tony continua cantando como sempre – ou quase como sempre.

Essa é a verdade, por mais calculadas que sejam as produções de seus discos e cansativas as campanhas publicitárias. Ou seja, o homem canta como se suas canções existissem fora de toda inconstância, acima de nossas modestas vidas, lá onde tudo permanece e as coisas não têm preço. Sua voz, um delicado equilíbrio entre reserva e teatralidade, não parece ter mudado muito ao longo dos anos. Isto significa que, numa época que celebra sucessivas reinvenções, Tony Bennett optou por permanecer Tony Bennett, como se imaginava, de uma vez por todas.