Yamile Burich: ‘A música é como um sonho’
Fernando Ríos, argentjazz.com.ar, 16/11/2019
O quinteto Jazz Ladies tem sido uma presença constante na cena portenha do jazz há mais de cinco anos. Com quatro álbuns lançados, o grupo, liderado pela saxofonista Yamile Burich, não apenas mostrou talento no palco, mas também ganhou um reconhecimento que já transcende fronteiras. Acabando de chegar do Brasil e da Colômbia, onde se apresentaram para mais de 30 mil pessoas, o Jazz Ladies desfruta do lançamento da Alegría, no qual são incorporados ritmos latinos.
Fernando Ríos – Em pouco tempo, seu quinteto lançou dois álbuns: Live at Thelonious Club e Alegría. Além das diferenças óbvias, o que você destacaria de cada uma deles?
Yamile Burich – O álbum ao vivo é um típico show de jazzclub. Alguns standards, um punhado de músicas próprias e toda a energia da música ao vivo. O outro, por outro lado, tem uma abordagem diferente. Existem seis músicas minhas e Alfonsina y el mar, de Ariel Ramirez e Felix Luna e em todas elas, há um visual mais latino. Também aqui usamos alguns instrumentos que não são comuns no jazz local.
FR – Por exemplo?
YB – Bem, tocamos kalimba e pandeiro. Além disso, Pepi Taveira, que, como você sabe, estuda tudo o que é percussivo. Ele nos emprestou alguns sinos sinfônicos e um instrumento chamado Marimba de Chonta*, que ele trouxe da Colômbia. Lá ele é muito tocado, principalmente em um ritmo chamado Aguabajo… É um som muito bonito. Eu curti muito o grupo que Pepi teve com Luis Agudo: esse conceito é lindo e assim, você também vai se envolvendo de outras formas.
*instrumento típico da Colômbia, cujas teclas são feitas da palmeira Chonta e os ressoadores de bambu.
FR – Você acredita que este álbum, Alegría, está levando você a outros caminhos?
YB – Sim totalmente. Este álbum está me levando de maneira diferente. Bem, procuramos e encontramos outros caminhos … é disso que se trata. Por exemplo, nesse álbum eu toquei mais soprano. É um sax melhor para tocar o latin. Porque você também tem influências do que ouve. E há também o que surge de cada um ao longo do tempo, com o trabalho, com o estudo. Sua própria identidade aparece à medida que você avança.
FR – E qual foi a contribuição do grupo nesse desenvolvimento que você mencionou?
YB – É fundamental. O grupo, os parceiros. Com Ramiro Penovi (guitarra), eu toco desde 2007. Com Patricia Grinfeld (guitarra) e Diana Arias (percussão), eu toco desde 2013. Com o Jazz Ladies, estamos juntos desde 2014 e já gravamos quatro álbuns. Essa coisa de fraternidade, de união, também faz música. Eu sei que consigo coisas melhores tocando com pessoas que amo e com as quais toco há muitos anos. E é por isso que eu as escolho todos os dias. Também tenho outro grupo com Diana Arias, Analía Ferronato (baixo elétrico) e Manuel Ochoa (piano), com quem estava no Brasil e que também conheço há alguns anos.
FR – Tocar muitas vezes une o grupo de uma maneira muito especial, imagino.
YB – Tocar e sonhar, certo? Porque a música é como um sonho. Antes de tudo está em sua própria imaginação. Veja o tema dos sinos que coloquei em Alegría. Eu venho de uma cidade pequena, cresci em Salta. Minha mãe e meus avós vieram de outras aldeias. E lá você sempre ouve os sinos da igreja. E o tempo parece ter parado. Como se isso não tivesse acontecido. E aí componho com todas essas coisas na cabeça. É como pintar uma imagem.
FR – O grupo faz parte de um sonho compartilhado.
YB – Claro. É por isso que eu volto a escolhê-los. É por isso que eu tenho projetos que os incluem. São as pessoas com quem quero tocar, com quem quero subir no palco e fazer a música que gostamos. Não é algo que você faz com um computador. É algo que você faz com a alma. Uma vez eu li que Duke Ellington compunha pensando nos músicos que tinha em sua orquestra. Eu acho que isso é importante. Penso em quem vai tocar o que estou escrevendo. Isso acontece comigo o tempo todo. Eu faço um tema e penso em Patricia fazendo um contramelodia, em como colocar as congas ou num solo de baixo …
FR – Sendo todas mulheres, você sente que existe uma conexão especial entre vocês?
YB – Pode ser. Mas não acho que seja uma questão de gênero. E muito menos algo comercial. É simplesmente um grupo humano. Posso dizer-te que há um respeito diferente entre nós. E para mim isso é fundamental. Mas também sinto isso quando toco com Ramiro Penovi ou Leo Cejas (contrabaixo), que conheço há tantos anos.
FR – Que diferenças você destacaria entre Diana Arias e Leo Cejas quando tocam contrabaixo? Você pode falar sobre um toque feminino ou masculino ou eles são simplesmente estilos diferentes, além do gênero?
YB – Não. Existem diferenças de personalidade, nada mais. Mesmo não seja muito objetiva, adoro tocar com Diana e Leo. Quando Diana não pode vir, ligo para Leo e ele se integra perfeitamente ao grupo. Acho que Leonel é um dos músicos mais talentosos que conheço. Canta, toca violão, tenha uma mente muito aberta. Ele não tem preconceitos. Eu amo tocar com ele.
FR – Este ano também foi a estreia internacional do quinteto. Como foi?
YB – Foi uma ótima experiência. Em setembro, fomos chamados para o Festival Jazz al Parque, em Bogotá, um evento que já tem mais de 30 anos de experiência. A verdade é que foi uma conquista para nós, porque fizemos isso sem manager e sem marketing. É tudo música original, com músicos importantes. Este ano foi Ron Carter. E lá fizemos o nosso show. Tocamos para mais de 30 mil pessoas. Foi bonito.
FR – Também estiveram no Brasil.
YB – Sim, outra bela recordação. Antes disso, estávamos no Festival Internacional de Ushuaia, por volta do final de setembro. Então, dali fomos para o Brasil, tocar no ViJazz Festival, que acontece perto de Belo Horizonte. Fizemos três shows por lá. Patricia não estava nessa turnê; ela não pôde vir e aí, chamamos o Manuel Ochoa. Fizemos apresentações em quarteto, porque Carolina Cohen (percussão) também não podia. Esses shows abriram muitas portas e esperamos continuar mostrando nossa música fora ou dentro do país durante 2020.
FR – O interessante é que você está abrindo portas com sua própria música.
YB – Sim, claro. Eu acho que você tem que tentar mostrar o que faz. O diferente, o pessoal. Eu ainda amo o bebop, sou apaixonada por Charlie Parker, adoro Sonny Rollins, estudei tudo isso por um longo tempo, mas chega um momento em que essa música precisa decantar sozinha … falando nisso, eu contei o que me escreveu o baterista do Sonny?
FR – Não, me diga …
YB – Muitos anos atrás, fazia com Ramiro Penovi, muitos temas de Rollins. Entre eles, Global Warning, que estão no disco que tem o mesmo nome. Esse tema e outros, eu os enviei para o meu canal do YouTube. Bem, um dia, para minha surpresa, Perry Wilson, o baterista que tocou no álbum Rollins, de 98 anos, escreve para mim e me diz que adorou nossa versão e o sentimento que colocamos nela. Uma boa surpresa. Wilson tocou nos últimos álbuns de Sonny … This is what i do, ou nos álbuns ao vivo do Road Show. Para mim, Rollins é o máximo. A loucura que ele tem ao tocar. Ritmicamente, é inigualável. Sonny Rollins é a lenda viva. Para mim é o jazz.
FR – Você estava falando sobre criar sua própria música. Hoje, parece que essa independência criativa não é bem vista pelos programadores, que apostam mais nos royalties do que em músicas autorais.
YB – Não é fácil. O ambiente é muito difícil. É verdade. Muitos lugares não querem que você faça sua música. Eles apostam em royalties. É uma pena. Mas acho que você tem que lutar para mostrar o que faz. Aqui, os músicos também têm nossa responsabilidade. Eu quero fazer minha música. Eu trabalho para isso, construo grupos, vou com trios, com quartetos, com quintetos, sempre carregando a minha arte. É um trabalho constante e árduo. Conseguir lugares, difundir tudo o que puder. Mas esse é o caminho, não outro. Felizmente, existem muitas pessoas que nos seguem, muitos jovens interessados em nossa música. Isso é bom. E voltamos a Rollins. Ele sempre dizia que um músico deveria fazer o que sente. E eu acredito totalmente nisso.