“Zero gravity” é série para ver, ouvir e se emocionar com Wayne Shorter
Mariana Peixoto, Estada de Minas, 01/09/2023
Já sabíamos que ele foi grande na música, mas com a minissérie descobrimos que foi também enorme na vida. Lançado na última sexta (25/8) no Prime Video (dia em que completaria 90 anos), “Wayne Shorter – Zero gravity“, produção dividida em três partes, é uma maravilha de assistir (e ouvir).
Saxofonista e compositor, Shorter morreu a 02 de março desse ano, aos 89 anos. Mas é ele que, em boa parte das vezes, conduz sua própria história. O projeto, da diretora Dorsay Alavi, começou há muitos anos. A relação de décadas teve início quando ela foi contratada para dirigir um clipe dele, ainda nos anos 1990. A partir de 2002, passou a documentar suas turnês. Desta maneira, conseguiu a intimidade necessária para tirar confissões de um homem discreto, que pouco falava de si.
“Zero gravity” (título da música que fecha o álbum “Beyond the sound barrier“, de 2005) teve um corte de quatro horas em 2018. Na época, Shorter chegou a assistir ao projeto, que ganhou como parceiro Brad Pitt – sua produtora, Plan B, embarcou no projeto na parte final. Com o tempo reduzido para pouco mais de três horas e finalmente pronta, a série sofreu novos atrasos devido à pandemia de COVID-19.
Budismo e ficção científica
Cada episódio da série é denominado “portal” (uma referência tanto ao budismo que ele praticou por cinco décadas quanto à ficção científica que adorava). O primeiro, “Newark flash in NYC“, vai de seu nascimento, em 1933, até 1971; o segundo, “Faith is to be fearless“, acompanha o período de 1972 até 1999; o último foi nomeado “Zero gravity 2000 Infinity“.
A cronologia nos mostra como o garoto negro de Newark, em New Jersey, descobriu o cinema e a música ainda em meados da década de 1940. Há algumas cenas, principalmente as que se referem à infância de Shorter e do irmão Alan, que são retratadas por atores.
Astros do jazz estão em toda a série, Herbie Hancock (melhor amigo de Shorter, que capitaneou um tributo a ele no Hollywood Bowl, em 23 de agosto, dois dias antes do lançamento da série), Joni Mitchell, Carlos Santana e Ron Carter deram longos depoimentos. Mas são os ícones do jazz que se destacam no primeiro episódio, que cobre justamente a Nova York dos anos 1950 e 1960, quando o bebop deu lugar ao cool jazz.
Shorter estava no meio de tudo. Não há nada melhor do que vê-lo imitando o jeito de falar de Miles Davis. Um fato mostra o talento visionário do saxofonista. Em dado momento, Miles e (o baterista) Art Blakey, dois dos maiores líderes de banda da história do jazz, o disputaram.
O saxofonista soube o momento certo de deixar o grupo de Blakey e chegar ao de Miles. A primeira composição que Shorter levou para o trompetista foi “E.S.P.”, que se tornou também o título do álbum de Miles em 1965 – não são poucos a afirmar que Shorter renovou a carreira de Miles.
Ainda que traga muitos momentos importantes da carreira de Shorter a partir da década de 1970 – como a criação do Weather Report, a primeira superbanda de jazz do mundo – o segundo episódio enfoca mais sua conturbada vida pessoal.
Shorter namorou pouco na juventude, contam os amigos. Casou-se três vezes. A primeira mulher, a japonesa Teruko, o deixou após três anos de casamento – coube ao músico a criação de sua primeira filha, Miyako.
Com a segunda, a portuguesa Ana Maria, o casamento foi cheio de dores – a única filha do casal, Iska, sofria convulsões constantes desde bebê. Morreu aos 14 anos. Ana Maria era alcoólatra, e Shorter levou o casamento da melhor maneira possível, a despeito dos constantes sumiços da mulher. Descobriu o budismo.
Foi também a segunda mulher que o apresentou a Milton Nascimento. Apaixonada pela música do mineiro, Ana Maria sugeriu que eles gravassem juntos. Milton não deu depoimentos para a série, mas aparece em várias imagens do período da gravação de “Native dancer” (1975), álbum que trouxe novo frescor para a carreira de Shorter.
Tragédia aérea
Quando a vida parecia se arranjar, novo revés. Ana Maria, livre do álcool, foi uma das vítimas da queda do voo da TWA 800, em julho de 1996, que fazia a rota Nova York/Paris. O impacto da morte de Ana Maria em Shorter é contado em boa parte pela brasileira Carolina dos Santos. Amiga da portuguesa, era ela quem cuidava da casa quando os dois estavam fora. O músico e Carolina acabaram se casando em 1999 – e ficaram juntos até a morte dele.
A parte final do documentário traz Shorter em seus últimos anos – é quando o ícone se renova por meio da interação com jovens admiradores. É interessante perceber que, mesmo cobrindo uma trajetória longa e rica, de alegrias e tristezas, o personagem tem um senso de permanência, da juventude à idade avançada.
“Você conversa com ele e sabe que está na presença de alguém sem gravidade, atemporal e destemido“, como bem disse Carlos Santana.
WAYNE SHORTER: ZERO GRAVITY
Minissérie em três episódios disponível no Prime Video.