Roberto Rutigliano: com ou sem ‘Sotaques’?
Quatro anos depois de ter dado a sua primeira entrevista ao Clube de Jazz, o baterista argentino Roberto Rutigliano, radicado no Rio de Janeiro e tricolor doente, nos apresenta o seu mais novo lançamento, “Sotaques”. Como é muito atuante nas cenas carioca e portenha, ele também discorre sobre seus projetos musicais, cursos, workshops e os próximos lançamentos.
Wilson Garzon –Em 1993 você lança “Xekerê“, que foi o seu primeiro cd autoral. Qual foi o conceito desse seu trabalho?
Roberto Rutigliano – O primeiro dos discos do Xekerê tinha três fontes inspiradoras o jazz, a música latina e a brasileira. O jazz como conceito de música, com improviso e pelas influências das nossas audições. Na época, escutávamos muito: Zawinul, Pat Metheny, Hermeto, Chic Corea e Miles Davis. Nesse disco, a Miles eu pessoalmente dediquei à música “I don’t play trumpet”. A música latina era um grande diferencial da banda; escutávamos Andy Narrell, um instrumentista de steel pans; e os pianistas: Rubalcaba , Chucho Valdez e Emiliano Salvador.
A banda chegou a tocar ao vivo com três percussionistas o lendário Dom Chacal (que tocou com Paul Simon), Dudu Marins da banda “Mambo que Sambo” e Edson Quesada (na época, recém chegado da Colômbia). Por último, a nossa influência da música brasileira, que está presente no fato de que o repertório incluía ritmos como choro, baião e samba.
WG – Agora, 25 anos depois você está lançando “Sotaques”. É uma espécie de síntese de sua história e influências musicais?
RR – Sim; a gente é a soma das nossas audições, das músicas que tocamos e que amamos. O disco “Sotaques” tem músicas próprias que incluem estilos como balada, bossa nova e samba-choro e músicas de compositores marcantes como Tom Jobim, Edu Lobo, Charlie Parker e John Coltrane. O título do disco (“Sotaques”) fala de algo que carregamos na nossa forma de falar que está ligado à nossa historia e ao mesmo tempo algo que passamos na hora de tocar. É essa musicalidade que faz de cada um de nós um acontecimento único.
WG – Quando e como surgiu o projeto “Sotaques”?
RR – Eu estive fazendo vários shows com o formato de tributo, comecei homenageando ao Bill Evans junto com Dario Galante (no piano) e Bruno Migliari (no contrabaixo) em 2010 e segui com homenagens a músicos como Edu Lobo, Coltrane, Miles, Luiz Eça, Charlie Parker, Piazzolla e muitos outros. Em 2017, gravei o disco “A música de Miles e Coltrane” e “Tango Jazz” como parte desse percurso.
Em 2018 achei que deveria me colocar como compositor. Como tenho muitas músicas compostas que ficaram relegadas, achei que, depois de todo esse mergulho na obra de todos esses maestros, que tinha chegado a hora de gravar algumas da minhas músicas.
WG –Como foram escolhidos os músicos para esse projeto? E as gravações foram em que estúdio? E o processo de gravação rolou tranqüilo?
RR – A escolha dos músicos foi conseqüência natural das minhas parcerias, Sergio Barrozo no contrabaixo e Marcelo Magalhães Pinto no piano fazem parte da base dos meus principais projetos dos últimos anos; José Arimatéa no trompete e Marcelo Martins no sax são dois dos principais solistas da música instrumental brasileira. A gravação ocorreu durante duas sessões no estudo da Warner Champell Brasil, teve ainda mais dois dias de mixagem e masterização, todo isso junto ao técnico Cezar Delano.
O som do estudo é muito bom e os músicos são excelentes assim que isso permitiu que tudo flua livremente. Meu lugar como direção musical foi o de não realizar arranjos que possam deixar os músicos muito pendentes da leitura alem de cuidar para que eles levem a música para onde acham que ela deve ir. Se tratando de músicos muito bons seria uma perda não ouvir o que eles têm a dizer. Todas as músicas foram gravadas praticamente no primeiro take, o que produz uma sensação leve ao escutar o resultado.
WG –Conte-nos um pouco sobre o conceito e o processo de criação de cada uma das composições:
Estudo Jobiniano é uma composição, produto de uma pratica que fiz ao estudar uma grande quantidade de composições de Tom Jobim tentando reconhecer seu território melódico e harmônico. Inspirado no universo sonoro do mestre surgiu esta composição.
Lua Nova é um bolero com uma melodia muito marcante. Aliás, queria comentar que as minhas composições prestigiam as melodias; essa é uma das marcas de meu estilo, algo raro porque sendo baterista, o natural seria produzir músicas com o lado de mudanças rítmicas e convenções mais fortes.
Noemi é uma balada dedicada a minha mãe onde também encontramos a valorização melódica.
Garças sobrevoam a Avenida Brasil um samba-choro no estilo das gafieiras, uma música alegre e otimista. O titulo faz alusão a uma cena real: estando na sordidez urbana da Avenida Brasil, a aparição de umas garças trouxeram a poesia na paisagem.
Francisca n°15 uma balada com uma melodia que tem um leve sotaque japonês. A imagem da capa do disco também afirma este conceito da arte oriental no que esta arte tem de singela.
WG –Como está sendo a divulgação e a repercussão na mídia de “Sotaques”?
RR – A música instrumental não recebe os mesmos espaços que a indústria fonográfica oferece aos seus produtos de massas, mesmo assim existe uma mídia underground que se interessa pela arte contemporânea.
Por exemplo recebi elogios de críticos com Antonio Carlos Miguel (ex jornalista do O Globo) e o Luiz Orlando Carneiro do jornal “Correio Braziliense” que falou: “Gostei muito das faixas que ouvi no Spotify (Estudo jobiniano, Lua Nova, Noemi, Garças e Francisca nº 15). Trata-se realmente de samba-jazz (ou jazz-samba) de alta qualidade. Ótimo álbum!” A música do disco foi divulgada em programas de rádio da Argentina e do Brasil e em numerosos blogs especializados em jazz e música brasileira que transitam pelas redes sociais, as plataformas digitais como Spotify, Deeser e YouTube Music.
WG – Ano passado foi lançado o cd “Tango Jazz’, um projeto que você está coordenando há muito tempo. Nele, além de clássicos do tango (Oblivion, Decarísimo,…) tem também composições tuas, como Lírios e Ditirambo. Conte-nos um pouco sobre o processo de criação desses tangos autorais.
RR – Há alguns anos que desenvolvo trabalhos com tango aqui e na Argentina; no Rio, primeiro no duo com Odette Ernest Dias tocamos “os estudos tanguisticos” de Piazzolla; depois formei o “Tango Negro” com Chico Chagas (acordeom) e Tomás Improta (piano) entre outros músicos; isso até formar o “Tango Jazz” um quinteto junto a músicos como Alexandre Carvalho (guitarra) e Marcio Sanchez (violino). Na Argentina, nesses últimos anos, toquei com grandes músicos do estilo portenho como Daniel Binelli (bandoneon) e Juan Pablo Navarro (contrabaixo).
Em relação às composições “Lírios” e “Ditirambo” presentes no disco “Tango Jazz” foram músicas minhas que surgiram naturalmente; te comento que não planejo as composições: elas surgem de uma frase que vai se desenvolvendo e acabam tendo vida própria. Meu papel é ajudar as melodias a encontrarem os seus caminhos. Queria lembrar que a música “Lírios” ficou meses na play list recomendada pela Spotify brasileira.
WG –Que outros projetos você anda desenvolvendo na cena carioca? E na cena portenha?
RR – Este ano, no Rio, fiz um concerto chamado “De Villa Lobos a Piazzolla” na Sala Cecília Meireles, que estará sempre muito marcado na minha memória. Na primeira parte do concerto toquei com um quarteto de câmara junto a Fernanda Canaud (piano), Paulo Sergio Santos (clarinete) e Caio Marcio (violão) e na segunda parte com o quinteto “Tango Jazz”.
Ao longo deste ano com o violonista Caio Marcio Santos desenvolvi de forma paralela um duo tocando Garoto, Baden Powell e Guinga. Ao mesmo tempo, realizo há anos um tributo a John Coltrane chamado “Afro Coltrane”; neste ano, participaram do projeto saxofonistas como Nivaldo Ornelas e Tino Jr e percussionistas como Didac Thiago.
Em Buenos Aires, organizei desde 2017 o “Afro Trio” com o baixista Matias Gonzalez e o pianista com Ricardo Nolé, o repertório inclui músicas autorais minhas e composições de Ruben Rada, é interessante para mim tocar ritmos africanos do Rio da Prata como a milonga argentina e o candombe uruguaio.
WG – Quanto aos cursos sobre Piazzolla e Bateria, continuam de vento em popa?
RR – Tenho uma admiração especial por Astor Piazzolla: estudei a sua vida e obra e é algo inesgotável. Estruturei uma palestra de duas horas e a realizo em diferentes espaços; depois do encontro, entrego às pessoas uma apostilha com um texto que inclui histórias e músicas dele e os desdobramentos que sua obra inspira.
Os workshop’s de bateria têm um público mais específico; são estudantes ou profissionais que querem aprofundar seus conhecimentos na bateria. Para isso, preparei vários assuntos em relação aos ritmos brasileiros, latinos e jazz. Agora, estou finalizando uma série de cadernos: terminei um dedicado a rítmica carioca, outra a rítmica nordestina do Brasil e agora estou terminando outro com ritmos latinos.
WG –Que projetos podemos aguardar de Roberto Rutigliano para os próximos anos?
RR – Em 2019, pretendo gravar um disco de tangos, um segundo com o “Afro Trio”, outro de música latino americana e um quarto com minhas composições. A vida de um músico sempre tem que ser: tocar, compor e inspirar as pessoas a valorizar uma transcendência artística.
‘Sotaques’ está à venda unicamente na loja Arlequim:
Praça Quinze de Novembro, 48 – Loja 1 – Centro, Rio de Janeiro
Tel.: (21) 2220-8471
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