Argentina

Garvie, Domínguez e um álbum que é um reencontro

Fernando Ríos, argentjazz.com.ar, 18/08/2020

Apesar de se conhecerem há duas décadas, Rodrigo Domínguez (sax) e Valentín Garvie (trompete) mal haviam dividido o palco até recentemente. O saxofonista com seus projetos e o trompetista radicado na Alemanha, tinha uma dívida que o tempo havia aumentado. A espera acabou quando – com Garvie já radicado na Argentina – formaram um novo grupo, com três jovens músicos de Mar del Plata. O fruto desse desejo é Hormigombres, o álbum ao vivo que o ICM lançou. Domínguez e Garvie relatam o reencontro e os projetos neste momento incerto em uma conversa com Argentjazz.

Fernando Ríos – Embora se conheçam há muito tempo e tenham claras afinidades musicais, não tocaram muito juntos ou tiveram projetos em comum até agora. O que aconteceu em todo esse tempo?
Valentín Garvie – Nos conhecemos como integrantes da Big Band do Jazz Club que estava no Paseo La Plaza no final dos anos 90. Mas anos se passaram sem que nos encontrarmos novamente. Eu o vi porque era fã do Quinteto Urbano. E enquanto permanecemos conectados, não tocamos juntos novamente. Depois fui estudar na Europa e fiquei lá. Nós nos encontrávamos de vez em quando quando eu voltava para a Argentina por alguns dias, mas a gente não tocava juntos. Aí o Rodrigo passou pela Alemanha e lá pudemos organizar alguns shows. É por isso que há muito tempo queríamos gravar algo juntos, compondo nossa própria música, o que, de fato, finalmente aconteceu.

Rodrigo Domínguez – Na verdade, começamos a nos reunir mais desde que Valentín se instalou em Buenos Aires. A cada vez que nos falávamos ou nos víamos, surgia a ideia de fazer um projeto conjunto. Com a nossa música. Como também acontecia que ele sempre ia a Mar del Plata, teve a ideia de se juntar a nós com Julián, Nicolás e Luciano. Eu também os conhecia, mas nunca tinha tocado com eles. E foi assim que começamos a trabalhar, há cerca de três anos. Fizemos shows, algumas turnês e tocamos duas vezes no Festival de Mar del Plata. Naquela época com um primeiro repertório que pensávamos em gravar, mas isso não aconteceu. Então, com músicas novas, surgiu essa possibilidade de fazer um show na ECEM e concordamos que era uma boa oportunidade de fazer o álbum.

VG – Lembro-me disso antes de fazermos uma mini turnê. Tocamos em La Plata primeiro e depois fizemos duas jogadas em Mardel. A gravação é uma delas. Felizmente, o show para o qual convocamos o engenheiro de som foi muito bom. E isso nos permitiu ter esse disco ao vivo.

FR – A ideia original era gravar ao vivo e não no estúdio?
VG – A ideia desde o início era essa. Sempre pareceu para nós dois que esse grupo soava muito bem ao vivo. No palco e com o público sempre há uma energia muito especial. E queríamos capturar isso na gravação. Estou muito feliz com o resultado.

RD – Eu também. Apesar de nunca termos feito gravações em estúdio para ver o que acontecia, percebemos que a música ao vivo sempre ia para lugares diferentes. Estávamos sempre experimentando coisas novas. Acho que é uma das características do grupo. Então, como já tínhamos experiência nisso, de tantos shows feitos, parecia melhor aproveitar e gravar ao vivo.

 

 

FR – Esses músicos, Julian Maliandi, Nicolás Pasetti e Luciano Monte, são de Mar del Plata e já têm experiência de tocar uns com os outros. Na verdade, eles formam o grupo Los Ponis. A ideia de ter uma base já instalada antes?
VG – Bem, Los Ponis é o grupo que faz a música do Julián, o guitarrista. Eles estão tocando em diferentes formações. São basicamente oito ou nove músicos muito ativos e que participam de diversos projetos, geralmente em torno da cooperativa ICM, Coletivo de Improvisação de Mar del Plata. É uma jogada muito interessante, com uma editora própria, organizam o Festival de Jazz na cidade, publicam livros e têm a escola ECEM, onde gravamos o álbum. Digo tudo isso para destacar apenas que: há muita química entre eles, eles estão muito acostumados a tocar juntos e já fazem isso há anos. E tiramos vantagem disso tudo (risos).

FR – Recentemente, comentaram que havia um primeiro repertório que não foi gravado. Que diferenças existem entre essas músicas e aquelas que finalmente chegaram ao álbum?
RD – Acho que este segundo repertório é o melhor e se adequou mais à formação. Aquelas músicas também eram boas, mas acho que as atuais são mais bem elaboradas para o grupo. É experiência. Você escuta como tudo soa, o que cada um faz, como o grupo está sendo construído. E isso inspira você quando se trata de escrever.

 

 

FR – Está muito presente a ideia de que o grupo tem repertório próprio, composições que vão crescendo com a formação. Isso significa que foram todos escritas com o quinteto em mente ou há algumas mais antigas?
VG – Bem, eu contribuí com três temas aqui. Marplas eu escrevi pensando nessas mesmas crianças. Eu os dediquei a eles. E embora não soubesse de antemão que faria parte do repertório, imediatamente percebi que poderia andar bem. Outro tema é Lucho libre, que foi escrito especialmente para esta formação. Procurei aproveitar a habilidade de swing que esses caras têm. Achei que devíamos ter um tema em que isso estivesse presente. O terceiro, Cross Fade, eu escrevi na Alemanha, mas sempre soube que funcionaria muito bem aqui.
RD – No meu caso, algumas foram projetadas para esta formação. Outras vêm de antes, mas foram ganhando espaço no repertório. Por exemplo, a última música do álbum, Logic Duck, é de uma formação que tive há muitos anos com Sergio Verdinelli e Jerónimo Carmona.
É um tema com o qual sempre senti que faltava alguma coisa. Gostei, mas senti que não estava bem ali. Eu trouxe para o grupo e de repente ele apareceu. Estava tudo lá. É algo estranho o que às vezes acontece com a música. Você escreve algo e não combina com você. E de repente com outro contexto, com outra formação, ela ganha vida nova.

FR – E pode haver uma explicação para isso ou é algo misterioso?
RD – Há de tudo um pouco. Neste caso, atribuo grande parte à cor do flautim que o Valentín toca aqui, de que gosto muito. Além da maneira como ele a toca. Poucas pessoas o usam aqui. Deu-lhe um colorido inesperado, além do violão e da forma como a garotada a abordava. Tudo isso acabou montando o tema de uma forma que adorei. Deu-lhe uma espécie de simpatia louca, que já estava implícita no tema, mas que foi mostrada aqui e a gente conseguiu transmitir.

FR – Sobre o que o Rodrigo comenta, quais são as características da trompeta Piccolo Valentín. É semelhante ao bolso que Don Cherry jogou?
VG – Não, é um instrumento diferente. Visualmente são semelhantes, mas não são iguais. O bolso tem o mesmo comprimento que uma trombeta normal, mas é muito enrolado. Por outro lado, o flautim tem metade do comprimento e uma oitava acima. Tem outro som, tem uma cor muito particular.

FR – Há muita impro no álbum. Qual é o seu sentimento?
VG – Você poderia dizer sim. Às vezes, há longos solos. Acho que a vida tem muito a ver com isso. No palco, às vezes você deixa as coisas fluir … e isso produz muitos momentos livres. Não sei se Rodrigo vai pensar o mesmo.

 



RD – Parece-me que tudo isso é bastante equilibrado ao longo do álbum. E acho que é uma de suas principais características. Não é um trabalho totalmente gratuito. Existem situações formais muito claras. Às vezes, podemos nos separar da forma e ainda estar todos juntos ouvindo. Essa funcionalidade é muito importante. Faz a música soar livre, embora tenha uma forma. Uma forma que é como abaixo, o que lhe dá coerência interna. Existem também situações que são materialmente livres, mas conceitualmente definidas.

VG – O que o Rodrigo fala é interessante. Acho que existem poucas canções nas quais improvisamos de forma totalmente livre. Em Cross Fade há momentos em que ele se abre, mas sempre há aquela coerência interna de que ele fala. Aquele esqueleto que sustenta todo o andaime, que está presente e que acho que pode ser ouvido …

FR – Qual é o papel que você pensou para a guitarra ao incluí-la no quinteto?
RD – Não pensamos numa função geral, nem a definimos previamente. Nos últimos anos, no jazz, os papéis definidos dos instrumentos são cada vez mais desconstruídos. Em particular no álbum, parece-me que as funções dos instrumentos mudam continuamente de acordo com as necessidades de cada sujeito. Em alguns, a guitarra pode acompanhar ou sustentar a forma, desde que seja escrito assim. Mas você não precisa necessariamente se limitar sempre a essa função.

VG – Para mim fundamentalmente a inclusão do violão aqui tem a ver com a cor. Traz cores para a música. É como o líbero do futebol. Alguém que pode assumir diferentes cargos de acordo com as situações do partido. Em seguida, ele pode iluminar a textura geral ou pode adicionar resistência estrutural e depois desbotar novamente e se tornar turvo. Além disso, e não é menor, esses meninos estão muito acostumados a trocar papéis entre si, a escutarem uns aos outros. Eles têm muito treinamento.

FR – Há planos de continuar com este grupo assim que recuperarmos a normalidade e os shows voltarem?
VG – Esperançosamente, gostaria muito. Seria ótimo. O desafio é sempre se organizar, arranjar encontros. Não é fácil ter também o tema viagem. Dois de nós estão em Buenos Aires e outros três estão em Mar del Plata. Isso torna tudo um pouco difícil, mas espero que possamos continuar jogando juntos. É um dos projetos que mais gosto e digo que voltei à Argentina para esse tipo de coisa …

RD – Eu concordo. Para mim, esse álbum é como uma marca. Eu acredito muito em ciclos. Como ondas. Cada coisa tem seu tempo natural e se você passar, o projeto morre. Eu acho que houve um ciclo anterior neste grupo. Esse ciclo teve seu clímax, mas não o registramos. Nós o deixamos e o retomamos quase um ano depois, com a intenção de gravá-lo. Organizamos um tour e tudo isso. E para mim foi uma subida um pouco difícil, porque senti que o ciclo estava cumprido. Que havíamos completado aquela etapa sem poder gravá-la. Mas tudo voltou à vida quando tínhamos um novo repertório. Uma nova onda. Agora o que sinto é que precisamos sair e tocá-lo … espero que aconteça.

 

 


Hormigombres

Dominguez, Garvie + Maliandi, Pasetti y Monte – Live na ECEM

Os Hormigombres (Rodrigo Dominguez) 09:54
Marplas (Valentine Garvie) 06:38
Wrestling (Valentin Garvie) 12:42
Intro Malvón 02:39
Malvón (Rodrigo Dominguez) 06:54
Veja você escalar (Rodrigo Dominguez) 06:42
Crossfade (Valentine Garvie) 03:21
Pato lógico (Rodrigo Dominguez) 07:51

Rodrigo Domínguez – sax e composição
Valentín Garvie – trompete e composição
Julián Maliandi – guitarra
Nicolás Pasetti – contrabaixo
Luciano Monte – bateria

Gravado ao vivo no ECEM (Espacio Colectivo de Enseñanza Musical) em 21 de setembro de 2019.
Técnico de gravação, mixagem e master: Jorge Petta
Foto da capa original: Clara Maceira
Design: N. Santiñaque

Fernando Rios
Dirige a revista online argentjazz. Trabalhou na agência Télam e na Gestão de Notícias de Televisão Pública.
Escreveu para a Newsweek, Barcelona Jazz Magazine, BA Jazz Magazine, o site Registros a Media Voz de Islas Canarias, Espanha, Clube de Jazz de Brasil e o jornal Infobae de Buenos Aires