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O aprendizado do Rio segundo Wanderson Lopez

Wanderson Lopez é um típico homem da Renascença, pois consegue harmonizar em um só suas faces de violonista, multi-instrumentista, compositor, arranjador, professor e artista plástico. Mineiro nascido em Aimorés e capixaba por formação e devoção, desenvolveu uma discografia de alta qualidade que abrange não só discos-solo, como projetos que incluem o Baobab Trio e o Orizzonti 6. O propósito dessa matéria é divulgar seu último trabalho, ‘Aprender a ser Rio’, desenvolvido em parceria com o saxofonista italiano Massimo Valentini.

 

Nascentes

O porto, a travessia, depois o porto. Era assim que em Aimorés a canoa saía da Barra do Manhuaçu, atravessava os 700 m de largura que tinha o Rio Doce, até chegar na fazenda Lorena, dos meus tios, onde eu iria curtir prazeres e alegrias de estar na roça durante um fim de semana. Essa travessia ocupou meu imaginário onde gravitavam caboclinhos d’água, pomares infinitos, passeios a cavalo e a mina de cristais do Baixio. O Doce também estava presente nas pescarias, nos mergulhos à beira do cais, na ilha do Baixinho e dos perigos no Canalão, que engolia os aventureiros que arriscavam atravessá-lo.

Wanderson Lopez também nasceu em Aimorés e viveu boa parte desse imaginário do Doce no distrito de Mato Três (hoje, Expedicionário Alício). Quem marcou a sua infância foi a presença de seu avô materno, que era um verdadeiro homem da Renascença. Sabia construir casas, fazia ofícios de marcenaria, atuava como juiz de paz, médico e dentista prático. E o mais importante: era um grande contador de causos…Em suas lembranças estão guardadas seus passeios a cavalo, nadar e pescar pelos córregos e rios, catar manga no pomar. E assim foi até os 14 anos, navegando entre as delícias de uma infância feliz.

Essa é a parte boa da história. Depois veio a tragédia de Mariana que trouxe novos sentimentos e a necessidade de responder com sua arte e criação essa outra presença que o Doce passou a ter em sua vida. A busca por um outro significado desencadeou uma nova linha composicional e para isso nasceu o projeto ‘Aprender a ser Rio‘, mais impressionista e reflexivo. Para desenvolver esse projeto convocou o amigo e músico italiano Massimo Valentini (saxofones e arranjos). Dele também participam nas gravações, Renato Rocha (bateria) e Edu Szajnbrum + Leonardo de Paula (percussões).

Dois Pontos

Wanderson escreveu uma série de textos ao redor desse projeto, permeados de reflexões,  buscando sempre compreender o contexto telúrico por um lado e a sua inserção dentro desse mundo em que estamos vivendo. Em vez de fazer de fazer uma entrevista convencional, resolvi re-utilizar o seu material dividindo-o em seções, buscando criar um espaço onde o leitor possa entender todo esse processo de criação.

 

 

‘Aprender a ser Rio’ segundo o Autor 


Conceito 

É um trabalho musical que dialoga com o jazz atual, o impressionismo e a música brasileira. O título é uma reflexão sobre como aprender a respeitar os fluxos da vida, refletir sobre a relação afetiva com os rios, e a destruição deles, temas caros e urgentes. O projeto busca uma concepção musical arrojada e desafiadora:
por um lado a combinação dos timbres e foi escrita especificamente para esta formação;
pelo outro, o grupo envereda por caminhos para além de uma estética monolítica, num interesse pelas impressões que essas “músicas” podem nos oferecer, seja música tonal, atonal ou pós-tonal.

Repertório 

Nascimento (Wanderson Lopez) é a faixa de abertura.
Wanderson e Renato interagem livremente citando o tema principal da canção. A música é uma parceria de arranjo entre os dois e o grupo incorpora uma linguagem modal e jazzística (aqui a música mineira dá o tom). Nela estão presentes elementos em homenagem a Milton Nascimento: melodias cantadas, harmonia com modulações, um “coral de vozes” na intro e trechos com alta densidade dos sopros dão tom da composição.

Naná (Wanderson Lopez) é homenagem a Naná Vasconcelos.
Inicialmente surgiu com violões e caxixis, mas no estúdio tomou uma forma mais elétrica. A composição inicia com um pequeno motivo no violão, que cria repetições minimalistas e se desenvolve em camadas e texturas nos saxofones, respondidos pela bateria.

Aprender a ser Rio (Wanderson Lopez)
a intro traz o ataque das cordas do violão de 8 cordas em modo áspero, inicialmente um “lamento“, interagindo com o baixo acústico e a bateria. No desenvolvimento do tema central, a melodia da guitarra vem acompanhada da voz, em caminhos harmônicos mais complexos, e se faz sutil, aproximando-a de um caráter singelo (uma bossa mineira), se dilui como um rio escorrendo e indicando o caminho até a o mar.

A paisagem sonora nos remete a uma natureza mais lírica e melancólica, com acompanhamento dos sopros, lembrando mais “um quarteto de cordas”. É uma homenagem ao Rio Doce, esse gigante que faz parte da memória afetiva de tantos mineiros capixabas.

Barlume (Massimo Valentini) palavra oriunda do italiano que significa centelha, vislumbre, ou brilho.
Essa composição  inicia com uma série de loops com o baixo acústico tocando com o arco em cascatas de delays, e sutilmente o sax evoca uma melodia romântica, no qual o grupo se inspira num ciclo de melodias espaçadas e somadas ao gesto do baterista Renato Rocha, que extrai sons de seu instrumento com mãos e uma baqueta especial, percutindo os tambores, em um momento tenso que termina por resolver na melodia inicial, solenemente…

Negro feito jacarandá, Fazedor de chuva, Prece e Alumia meus olhos
Essas músicas resultaram de um longo improviso em estúdio realizado pelos músicos Wanderson Lopez, Massimo Valentini, Edu Szajnbrum, Leo de Paula. Esse improviso foi dividido e editado em quatro partes e também foram mudadas de ordem, para dar um sentido melhor no sequenciamento das músicas no cd.

Há momentos que o som nos transporta até o alto da montanhas balcânicas e oriente médio, de onde Massimo extrai muito de suas influências musicais, próximo de onde mora e ao mesmo tempo, em um terreiro na Bahia, na música da diáspora africana, representado pelas divisões rítmicas do berimbau, caxixis e congas tocadas por Edu Szajnbrum. Atmosferas são alternadas, tensão e resoluções, silêncio e caos, se equilibram num desfecho em que o diálogo entre o sax soprano, as percussões afros e o violão de 8 cordas se embrincam, construindo uma música que é reflexo direto da interação entre esses músicos.

 

 

Massimo Valentini e Wanderson Lopez

Nós nos conhecemos há uns 10 anos. Tocamos juntos em 2010 em Urbino – Itália, num concerto aberto. Na rua. Como é costume na Europa no verão. Chegamos, nos cumprimentamos e começamos a tocar. Ia sugerindo temas como Chovendo na Roseira, Canto de Ossanha e íamos traçando outros caminhos. Tem que ter coragem, não tem espaço pra dúvida. O público ali, um palmo de distância. Compor em tempo real, improvisar, e fazer acontecer. Se conectar e enfrentar o desafio. Pois bem, já são muitos anos contribuindo reciprocamente. Agora lançamos esse projeto juntos. É uma honra compartilhar música com esse amigo.

Guimarães Rosa e o Rio

‘Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta… Eu amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para  conjugar eternidade’.
João Guimarães Rosa, em entrevista a Günter Lorenz – “Diálogo com Guimarães Rosa”.

Wanderson e o Rio Doce

Pra falar de rio, preciso falar do Rio Doce. É o rio mais próximo de mim, da infância, da casa dos tios e avós mineiros. Corta Minas e Espírito Santo, que no seu percurso traz o trem, que faz o caminho Vitória a Minas. Já fez essa viagem? Era bonito ver as comunidades ribeirinhas, ver aquele rio imenso, águas barrentas. Vida em torno do rio.

Precisamos ter coragem de se jogar no fluxo, aceitar que a música é fruto de um momento, e são várias músicas interagindo. Cada um carrega uma dentro de si. Toda vez que interagimos, a música se mostra outra. Porque já é outro fluxo, outro tempo, outras pessoas, com suas histórias únicas. .É preciso contornar, receber, ouvir, sugerir, concordar e discordar, mudar os discursos. Contornar ou enfrentar os entraves, retomar o curso após a queda, desaguar.

Finale

Sobre resiliência e interação na música e na vida, Rio em sua essência é resiliência e retomada de vida constante. Para continuar fluindo precisa não temer a queda, a irregularidade e opressões físicas contra seu curso. Têm cheias e secas, é suprido por uma imensidão de fios de nascentes, e seu destino é se esvazia no oceano. Doar. Na interação musical também é assim.

 

https://www.wandersonlopez.com/