Entrevistas

No meio do Vórtice…tem Rafael Martini

 

Dentro do atual cenário da música mineira e brasileira, o pianista, tecladista e compositor Rafael Martini representa o que há de melhor, não só pelo seu talento, mas pela  capacidade em buscar novos caminhos através de ousadia, experimentação e um grande senso de sintonia em interligar a música que se produz aqui com a que é feita neste vasto mundo. Depois da ousada ‘Suíte Onírica’ que foi executada pela Orquestra Sinfônica Venezuela e seu Sexteto, e dos projetos ‘Gesto’ e ‘Haru’, Rafael apresenta a mais nova joia da sua coleção: ‘Vórtice’. Nessa entrevista, ele detalha não só o processo criativo, como também as fases técnicas de edição e mixagem. Enquanto não podemos curtir as apresentações ao vivo, os links de vídeo nos ajudam a entender a essência do ‘Vórtice’.


Wilson Garzon –
Antes de conversarmos sobre seu último trabalho, queria que você falasse sobre ‘Gesto‘, onde você divide a cena com Joana Queiroz e Bernardo Ramos e ‘Haru‘ com Alexandre Andrés.

Rafael Martini –Gesto” é um álbum que nasceu de uma encomenda da gravadora japonesa Spiral Records. Foi muito interessante realizar um trabalho discográfico dessa maneira, nunca tinha feito algo assim, sob encomenda e com uma direção artística muito clara. A gravadora sugeriu a instrumentação (fender rhodes, guitarra, clarinete e vozes) e chegou a requisitar a participação especial da cantora Beth Dau, a qual aceitamos com gosto, pois ela é uma de nossas cantoras preferidas e uma querida amiga. O repertório desse disco conta com músicas inéditas de nós três (em separado), uma parceria minha com Joana e letra da poeta Brisa Marques e duas releituras, uma de “Sem você” (Jobim) e outra de “O farol que nos guia” (Hermeto Pascoal). É um disco com uma sonoridade bem específica, mais “cool“, que foi construída a partir das intenções da direção artística da gravadora, mas passando pelas nossas mãos. Pra mim, esse disco é bem especial por ser uma parceria com esses dois músicos que admiro há muito tempo e me sinto muito feliz e honrado em estar ao lado deles.

 

 

Haru” é um disco que também nasce da relação com o mercado japonês, que abriu os ouvidos para a música feita em Minas Gerais há alguns anos e acaba por fazer com que eu e alguns outros artistas da cena contemporânea direcionem sua produção para esse público. Eu e Alexandre trabalhamos juntos, um no trabalho do outro, desde 2011. E nossas composições são, muitas vezes, influenciadas um pelo outro. Foi natural que montássemos um trabalho em Duo. Mas diferente de “Gesto”, “Haru” tem um repertório que mais celebra nosso encontro do que apresenta músicas novas. A ideia foi revisitar músicas importantes dos nossos discos anteriores nesse novo formato, e poder levar pro Japão uma turnê com uma equipe enxuta, porém tomando proveito do fato de nós dois sermos multi-instrumentistas e assim, criar um show que tem também uma variedade instrumental grande.

WG –Em termos conceituais, ‘Gesto‘ e ‘Haru‘ estão presentes em ‘Vórtice‘? Fazem parte de um mesmo processo?
RM –Acho que não. “Vórtice” tem um conceito particular. É um trabalho que tem como pontos de partida a vontade de estabelecer uma prática de tocar na formação clássica do trio piano-baixo-bateria, ao mesmo tempo expandir essa formação com o uso de recursos eletrônicos e o de reaver uma pegada rock n roll que já foi muito importante na minha formação, mas acabou não sendo uma faceta tão evidente no meu trabalho.

 

 

WG –Quando o projeto ‘Vórtice‘ começou? Todo ele foi concebido no período da pandemia?
RM –Ele começou a ser gestado em 2013, quando esse trio começou a fazer shows com um repertório quase inteiro de versões de músicas do rock dos anos 60 e 70. Adotamos essa ideia de começar pela formulação de versões de Pink Floyd, Black Sabbath, Led Zeppelin como uma maneira de reverenciar essas músicas tão importantes na nossa formação, mas também como campo de experimentação livre. Depois de um tempo eu comecei a compor para essa formação e a pegada rock foi sendo transmitida para as minhas músicas. O grosso do disco foi gravado em 2016, ao vivo, em uma semana. Porém, a produção independente, sem recurso de nenhuma lei de incentivo, foi sendo desenvolvida com muita calma, ao ponto de eu ter lançado três discos depois da gravação dele. Só em 2019, quando o disco foi “adotado” pelo Selo 304, do produtor Chico Neves, é que a produção voltou a caminhar com mais energia e pode ganhar vida.

WG –Ele foi projetado para o seu trio com o qual você trabalha há anos. E as gravações e mixagem rolaram tranquilas ou foram trabalhosas?
RM –Como disse, a maior parte das gravações datam de 2016. Depois, fui gravando devagar, tendo mais ideias pros arranjos e discutindo elas com o Chico Neves, o que deu a cara final do trabalho. A mix do Chico é super criativa e ousada. Tem um “punch” muito grande e escolhas arriscadas como a de abrir o “pan” do piano e do baixo quase 100%, com a bateria no meio. Quem escuta o disco em fones de ouvido tem essa sensação bem nítida. Mas sinto que o Chico é como um quarto músico nesse trio, ao criar uma mixagem tão própria e ao mesmo tempo tão adequada a esse trabalho.

WG –Em termos de repertório, em ‘Vórtice‘ e ‘Redemoinho‘ estão presentes a relação tempo/espaço e a urgência por mudanças. É por aí?
RM –Sim, o disco fala da transposição de tempos e espaços de várias maneiras. A começar pelo fato de ser um disco gravado há mais tempo e que só foi lançado agora. Mas também essa coisa de se conectar com os anos 60 e 70, reler a música dessa época pelos olhos de hoje, usando sintetizadores antigos e novos, sons acústicos, e dispositivos de discurso muito mais contemporâneos. Vórtice representa um portal que podemos sempre acessar para visitar a história humana, no caso aqui, através da música. E Redemoinho representa a condição de espiral que o tempo tem, sempre voltando e a cada volta tomando impulso. Acho que as músicas, mesmo instrumentais, passam essa ideia.

 

 

WG –Meditação‘ e ‘Rain Song‘ de uma certa maneira são homenagens às suas influências do universo jobiniano e do rock progressivo?
RM –Certamente. Jobim talvez tenha sido o compositor que mais me influenciou logo após a adolescência, quando o rock (não só o progressivo, mas muito ele) deixou de ser meu quase único interesse musical. Mas nos dois arranjos a ideia foi exacerbar conceitos e elementos musicais que já existiam nas músicas. Em Meditação, o arranjo leva o título da canção mais ao pé da letra, inclui um som de “om“, da meditação transcendental, e a coloca em outro contexto. Em The Rain Song, a ideia foi esgarçar o tempo dela, e radicalizar os contrastes que já existem na gravação original. Gosto de vê-las com uma leitura mais moderna e me deixa feliz também vê-las juntas em um disco, inclusive quase emendadas. Uma conversa entre Jobim e Led Zeppelin, apesar de inaudita, tem muito a ver com o que me faz como músico. Esse diálogo existe de maneira bem real dentro da minha formação musical.

WG –Dobrado Atemporal‘, está presente em ‘Gesto‘. Ela foi uma composição de vocês três? E o que mudou em relação ao arranjo dessa música em Vórtice?
RM –Essa música é só minha. Foi composta especialmente para o “Gesto“, mas sempre tive vontade de fazer ela com mais pegada, diferente do ambiente “cool” desse disco. Em “Vórtice“, essa música é muito mais enérgica e sinto que faz bem pra ela ter essas duas “encarnações” diferentes.

WG –Dual‘ e ‘Carta a meu pai’ são composições criadas para esse trabalho ou elas já estavam prontas?
RM –Dual” é um dos movimentos da minha “Suíte Onírica” lançada em 2017 e gravada com a Orquestra Sinfônica da Venezuela. É outra música que sempre quis que tivesse outra “encarnação“. Nesse caso, a diferença maior está entre o trio que toca em “Vórtice” em contraponto aos mais de 150 músicos presentes na “Suíte Onírica“. Ela também ganha uma pegada bem mais enérgica agora. “Carta ao meu pai” é uma composição do baixista Pedro Santana. Uma balada linda e muito sentida, em homenagem ao seu pai que acabara de falecer. O Pedro não se mostra muito como autor, mas é um compositor muito inspirado.

WG –O que você está projetando para 2021, com e sem pandemia?
RM –Em 2021 já inicio o ano gravando um disco em duo com Antonio Loureiro, com produção do André Mehmari. O lançamento ainda não está programado, mas tem um conceito parecido com “Haru“, de celebração de um encontro já antigo. Músicas que já constam em outros trabalhos nossos, com uma nova roupagem e músicas inéditas, tudo tocado em duo, contando com nosso “multi-instrumentismo“. E logo depois inicio a produção do meu novo trabalho que se chamará “Martelo“. Esse é um trabalho que já venho gestando há um tempo e tem como conceito trabalhar em cima das minhas vivências e observações com minha mãe, portadora do Mal de Alzheimer. O trabalho está sendo escrito para um grupo bastante híbrido entre sonoridades acústicas e eletrônicas. Ele deve ser lançado em meados de agosto.

 

 

1 – Nas plataformas de streaming:

Rafael Martini – “Vórtice”
Rafael Martini & Alexandre Andrés – “Haru”
Rafael Martini, Joana Queiroz & Bernardo Ramos – “Gesto”
2 – Vinil “Suíte Onírica” (Goma Gringa Discos 2020) – Rafael Martini Sexteto, Orquestra Sinfônica da Venezuela e Coral, Maestro Osvaldo Ferreira: