Entrevistas

Trueba e Mariscal falam de “Atiraram no pianista”, filme sobre Tenório Jr.

Carlos Helí de Almeida, San Sebastián, Espanha, 26/09/2023
 

Tudo começou em Salvador, quando Fernando Trueba filmava “O milagre do Candeal” (2004), documentário sobre a passagem do músico cubano Bebo Valdés pela capital baiana. Foi ali que o diretor espanhol descobriu o personagem do que talvez seja seu mais ambicioso projeto: Tenório Cerqueira Júnior, pianista brasileiro que desapareceu em Buenos Aires durante uma turnê de Vinicius de Moraes e Toquinho, dias antes do golpe militar na Argentina de 24 de março de 1976.

Seduzido pela música de Tenório Jr., o premiado diretor de “Sedução” (1992), vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, começou a buscar informações sobre o artista carioca. Para além do destino trágico do músico, Trueba descobriu um talento brilhante, intimamente ligado à trajetória da bossa nova e à cena musical do Rio daquele período. Exibido fora de competição na 71ª edição do Festival de San Sebastián, “Atiraram no pianista” é o resultado do esforço hercúleo dessa investigação, transformada em documentário narrativo em animação, que paga tributo não só a Tenório Jr., mas também a toda uma era da MPB.

 

 

Festival do Rio

— O filme é uma carta de amor ao Brasil, à sua cultura e à sua música — resume o cineasta de 68 anos, no terraço do mesmo hotel onde registrou a primeira das mais de 140 entrevistas que colheu ao longo de mais de dez anos de pesquisas. — Foi aqui, em um dos quartos desse hotel, que gravei a entrevista com a Susana de Moraes (1940-2015), filha de Vinicius e produtora do documentário sobre o pai dirigido por Miguel Faria Jr., exibido no festival em 2005. O filme dela não tinha informações sobre Tenório Jr., mas ela me abriu portas para outros cineastas e músicos que o conheceram.

— O filme fala da identidade do Rio de uma época e, para mim, seria muito importante lançar “Atiraram no pianista” na cidade — concorda Mariscal. — Gostaria de saber dos cariocas se os lugares e a luz do Rio que mostramos correspondem à realidade. Quando vi o filme que Woody Allen filmou em Barcelona (“Vicky Cristina Barcelona”, de 2008) disse que ele não entendia nada da cidade, tudo era uma visão muito americana e folclórica dela. E olha que gosto dos filmes dele. Só queria ter certeza de que não seremos xingados pelos cariocas (risos).

Além das valiosas entrevistas de quem conviveu como músico, o roteiro de “Atiraram no pianista” recebeu contribuições de estudiosos dos regimes autoritários, como o americano John Dinges, autor de “Operação Condor”, sobre o terrorismo internacional no Cone Sul. Os diretores desejavam cruzar as origens da revolução cultural que fermentava no Brasil com o impacto das ditaduras na América Latina. Trueba diz que os golpes militares, tanto na Argentina quanto no Brasil, quebraram “projetos de país”.

— O mesmo aconteceu com a Espanha na ditadura de Francisco Franco (de 1939 a 1975). Nos anos 1920 e 1930, a Espanha estava cheia de poetas, pintores, músicos, todo tipo de artista, era o país mais promissor da Europa naquele início de século. De repente, perdemos aquilo tudo, as melhores cabeças fugiram para a Argentina, a França, ficamos na merda — pergunta Trueba. — Até o golpe de 1964, o Brasil era um país moderno, vanguardista. Como seria hoje se os militares não tivessem interrompido aquela evolução?

Depoimento

Um dos trechos do filme de Trueba reproduz uma das peças mais valiosas da longa pesquisa sobre Tenório Jr.: uma entrevista de Vinicius a uma TV argentina, pedindo ajuda para encontrar o amigo brasileiro desaparecido. Detalhe: nunca foi ao ar. O material original, em 16mm, foi encontrado nos arquivos da TV Globo pelo pesquisador Antônio Venâncio, que havia trabalhado com Vinicius e em outros documentários brasileiros.

— Chegamos na Globo, colocamos o filme na moviola e no monitor aparece Vinicius falando sobre o desaparecimento de Tenório. Parecia alquebrado, pedia informações que pudessem levar ao paradeiro do músico — conta Trueba. — Era um depoimento importante do Vinicius, porque muita gente dizia que ele não tinha feito o suficiente no caso do Tenório.

Credibilidade

O projeto de “Atiraram no pianista” tomou a forma final de um desenho animado, com trechos das entrevistas usadas como diálogos. O estilo visual pode remeter à rotoscopia, o processo de desenhar sobre imagens pré-filmadas, mas Trueba e Mariscal criaram uma técnica única para o filme, com a ajuda do quadrinista brasileiro Marcelo Quintanilha. Uma versão da história em quadrinhos já foi lançada na Espanha.

— Eu me dei conta de que estava preparando um documentário sobre um morto, um desaparecido. Mas eu queria dar vida a Tenório. Com a animação, podemos ver Tenório no estúdio com Raul de Souza e Paulo Moura gravando “Embalo”, podemos vê-lo com a mulher e os filhos. Já não é um desaparecido, é um homem vivo, um homem jovem e, para mim, isso era o mais importante — justifica Trueba.

Fernando Trueba e Javier Mariscal, diretores de "Atiraram no pianista" — Foto: Divulgação

Fernando Trueba e Javier Mariscal, diretores de “Atiraram no pianista” — Foto: Divulgação

Mariscal reforça:

— A animação dá mais credibilidade. Nas cinebiografias tradicionais, com atores, sempre vão dizer “ah, olha esse ator imitando fulano ou sicrano”. No desenho animado você vê Charlie Parker ou Thelonious Monk tocando e rapidamente aceita isso.

A história de “Atiraram no pianista” é contada do ponto de vista de Jeff (voz do ator Jeff Goldblum), jornalista que escreve um livro sobre a bossa nova e acaba obcecado pelo caso do músico. O personagem funciona como uma espécie de alter ego de Trueba. Há apenas dois personagens inteiramente ficcionais: a editora de Jeff (Roberta Wallach), e João, o amigo brasileiro do jornalista, que o guia por suas investigações no Brasil, que ganhou a voz de Tony Ramos. As vozes dos entrevistados foram preservadas nos diálogos.

— Eu dizia a Fernando que não precisávamos de muita ação, bastava escutar o que eles falam, que têm muita força, os diferentes sotaques, muito bonitos — diz Mariscal.