André Mehmari chega a Buenos Aires em nome de Milton Nascimento
Fernando Rios, www.infobae.com/autor/fernando-rios, 30/11/2022
Nesta sexta e sábado, no Bebop Club, o pianista brasileiro à frente de um trio interpretará canções do notável músico que acaba de completar 80 anos, e também apresentará obras de sua autoria. “A obra de um compositor é central na minha vida”, diz
“André Mehmari é uma das maiores referências atuais da música brasileira”. Quem afirma isso é Wilson Garzon , crítico belo-horizontino e um dos mais lúcidos analistas da nova música popular do gigante sul-americano. A verdade é que com apenas 45 anos e mais de 50 discos lançados, o pianista e compositor assume uma preocupação artística que anda a par do seu talento. E isso o leva do jazz à música de câmara. De duetos e trios a grandes orquestras. Revisitar a obra de Astor Piazzolla ou Hermeto Pascoal e tocar e gravar com Maria Bethânia, Milton Nascimento ou Egberto Gismonti .
Até agora, e nos poucos anos que marcam sua carreira artística, Mehmari já se apresentou na Itália, Estados Unidos, Japão, China, Canadá, Argentina, Chile, Equador, Noruega, Holanda, Finlândia, Suíça, Luxemburgo, Alemanha, França , Áustria, Irlanda, Bélgica, Portugal, Espanha, Dinamarca, e em espaços como Salle Gaveau (Paris), Kennedy Center (Washington), Lincoln Center (Nova York), Umbria Jazz, Sala São Paulo e Sala Cecilia Meirelles, entre muitos outros. .
Fernando Ríos –André, esta não é a sua primeira visita à Argentina, mas é a sua estreia diante do seu próprio trio.
André Mehmari – Assim é. Estive lá em junho passado, fazendo um lindo projeto Piazzolla , que pudemos tocar e gravar no centro cultural Haroldo Conti com a Orquestra A Saidera . A gente arranjou a obra do Astor para tocar com ritmos brasileiros. Isso foi uma linda experiência. Estivemos também em Rosário e La Plata e no Bebop de Buenos Aires, onde agora volto e faço pela primeira vez com meu próprio trio.
FR –Desde quando você tem esse trio?
AM – Estamos juntos há muito tempo. Estou com o Sergio Reze , baterista do trio, há 25 anos e o baixista Neymar Días está na banda há cerca de 12 anos . É a minha formação mais antiga e nos dá muito prazer jogar juntos. É um trio com muita intimidade musical e são músicos muito talentosos, com muita experiência, que já tocaram com as principais figuras do meu país.
FR –O trio piano, baixo e bateria é a formação emblemática do jazz. Que elementos você diria que diferenciam seu grupo da tradição do gênero?
AM – O som. É uma formação tradicional de piano jazz trio, como você diz, mas o som é muito pessoal, muito próprio. Até porque temos origens muito diferentes entre nós. Não somos apenas treinados em jazz, mas também no formato de música clássica e outros gêneros. Acho que a concepção do nosso grupo seria a de música de câmara. É por isso que a inspiração pode ser jazzística, mas o som não. Além disso, utilizamos sintetizadores, viola caipira e um conceito de bateria bem distante do tradicional. O set do nosso baterista é bem diferente do jazz. Com um arranjo muito diferente de instrumentos. Este som foi construído ao longo de muitos anos. Por isso também é um treinamento muito especial para mim.
FR – Sua abordagem é sempre muito melódica, muito elaborada. Então, que impacto tem a improvisação na sua proposta?
AM – A improvisação está aí. Mas não da forma que se espera no jazz. No jeito tradicional de improvisar. Isso é tema-improvisação-tema. Por outro lado, o que fazemos é interpretar o tema livremente. Por exemplo, há músicas de Milton Nascimento em nosso repertório em que não fazemos improvisações tradicionais em harmonia, como fazemos em um jazz standard. Mas improvisamos cadências, como se fosse um concerto. Acontece que a componente melódica está sempre presente e torna-se mais importante do que a improvisação.
FR – Como sua formação como pianista clássico influencia a música que você faz e sua abordagem de diferentes gêneros?
AM – Mais do que um pianista, diria a você que sou um compositor de música clássica. Há mais de 25 anos que componho para orquestras, para concertos, para músicos clássicos. É por isso que minha produção como pianista está intimamente ligada ao meu trabalho como compositor clássico, por assim dizer. Acredito também que todas as minhas experiências, como compositor e como instrumentista, terminam depois no piano. As experiências de um compositor, de um arranjador, de tocar outros instrumentos, chegam finalmente ao piano.
FR – Que outros instrumentos você toca?
AM – Toco cordas: viola, violino, violoncelo, violão, bandolim; também clarinete, cravo na música barroca e alguns instrumentos de percussão. Sou multi-instrumentista há muitos anos. Mas o piano é o principal. É onde me sinto mais confortável, com maior domínio técnico.
FR –Você gravou um grande número de álbuns em dupla. Com cantoras como Monica Salmaso ou instrumentistas como a violinista Catarina Rossi ou o violoncelista Rafael Cesario. O que você procura nesse trabalho em duo?
AM – Sim, os duetos são uma constante na minha produção. Estou muito feliz em fazê-los. Tanto com cantores quanto com instrumentistas. Eu diria a você que é como uma conversa entre amigos. É um momento de grande intimidade musical. Intercâmbio de informações. De cruzamentos de histórias de cada um. Estou muito aberto a essas conversas. Cada músico que escolho para fazer o dueto, como os que você citou, traz sua própria história. Sua história de vida, sua música, seu som. É por isso que estou sempre muito aberto a ouvir os outros. Não apenas para brincar com aquele outro. Ouvir é essencial. E é muito estimulante também.
FR – Além das diferenças, essa importância aproxima a linguagem musical com a falada.
AM – Claro, porque ambos são comunicação. Mas para mim a música é uma linguagem muito mais profunda do que as palavras. Sinto-me muito mais íntimo falando através da música do que através das palavras. E a dupla é a formação que permite maior intimidade e profundidade no diálogo.
FR – E o trio não tem essa intimidade?
AM – Sim, também, embora não tanto quanto a dupla. Em troca, o trio oferece um som mais completo e amplo. Então aí o que muda é a ideia musical. A proposta de um trio, o ideal, sempre será soar como um único instrumento.
FR –“Meu Brasil”, “Milton”, “Arco de Rio” e “Agora aquí”, quatro de seus últimos discos têm data de lançamento para 2021. Eles foram realmente produzidos naquele ano ou são composições anteriores?
AM – Sim, são composições daquele ano. Estávamos todos presos devido à pandemia, então escrevemos e gravamos o máximo que podíamos. Milton é o único anterior. Foi gravado em 2020 e nasceu como um especial do Youtube em conjunto com a Monica Salmaso e depois, como gostámos, lançá-lo digital e fisicamente.
FR –Essa matéria do Milton é o que você vai fazer agora em Buenos Aires?
AM –Vamos fazer dois repertórios diferentes, mas intimamente ligados. Por um lado, nosso olhar sobre o tema de Milton, mas, por outro, minhas próprias composições. A obra de compositor é central na minha vida, por isso um dos shows do Bebop com o trio vai ser composto por músicas dos meus últimos discos, como Música Para Uns Tempos De Cólera.
FR –Você ainda está publicando seus álbuns em formato físico?
AM –Desde Nocturno, meu álbum solo de piano de 2021, não fizemos mais versões físicas dos álbuns. Durante a pandemia não havia onde vendê-los, porque não havia shows. E agora porque o formato físico está desaparecendo. Eu amo o formato físico. Gosto do álbum, das informações, do projeto gráfico. Mas o streaming é muito forte e também as pessoas não têm mais CD player, nem no computador nem no carro. É a realidade. É toda uma mudança cultural, que não só é muito forte, mas também muito rápida. Muito violento e irreversível. E não tenho como lutar contra isso.
FR –Talvez ao invés de opor-se a ela, que neste momento seria estéril, fosse necessário melhorar os benefícios econômicos para os músicos.
AM –Totalmente de acordo. Isso seria fundamental para os artistas. E também um maior respeito integral pelo nosso trabalho. Publique as informações dos discos, os créditos, a ficha técnica e outros. Para mim, um disco é como um livro. Você não pode comprar um livro com um capítulo a menos. Por que então aceitar um disco sem gráficos, sem informações? Isso porque o streaming foi criado com uma concepção Pop. Aquele do single que vem e logo desaparece, suplantado por outro. Isso não é assim para todos os tipos de música. Agora, enquanto isso acontece, também estamos vendo um renascimento do vinil e isso me deixa feliz. Porque justamente tem tudo o que apontamos que falta no streaming.
Trio André Mehmari
Sexta-feira, 2 de dezembro, às 20h e sábado, 3 de dezembro, às 20h e 22h30, no Bebop Club, Uriarte 1658 (Palermo, CABA). Ingressos a partir de $ 3800 através de www.bebopclub.com.ar ou na bilheteria, de terça a domingo das 17:00 às 20:00 horas.