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Cristovão Bastos e Mauro Senise tocam Paulinho da Viola 

Release assinado pelo jornalista Roberto Muggiati (Foto: Nana Moraes)

A este nosso ruidoso momento, o álbum Choro Negro: Cristovão Bastos e Mauro Senise tocam Paulinho da Viola vem contrapor o som quase silente do grande mestre da Portela. Já alertava Rimbaud, “par délicatesse j’ai perdu ma vie”, num contexto social que ele chamou de “le temps des assassins.” Pois é armado de suavidade e delicadeza, afrontando a brutalidade dos homens e das ruas, que Paulinho da Viola tece na calada da noite sonhos que tocam fundo na alma e nos dedos de Cristovão e Mauro. Um antídoto para os venenosos dias de hoje, um maná para nossos anseios mais profundos.

Ana Luisa Marinho fala da gênese deste álbum:
Há muito tempo Cristovão e Mauro queriam formar um duo. Cristovão vem fazendo arranjos e participando dos CDs do Mauro, que por sua vez já atuou em alguns discos do Cristovão. Os dois são muito amigos e este projeto é o resultado dessa amizade e admiração mútua. O catalisador foi Paulinho da Viola. Mauro sempre admirou suas melodias, tão modernas e elegantes. Cristovão é parceiro e compadre do Paulinho, que completa 80 anos em novembro. Portanto, esta homenagem faz todo sentido”.

O álbum abre com “Um choro pro Waldir”, tributo de Paulinho ao mestre do cavaquinho e autor de “Brasileirinho”. Parceiro de Paulinho nessa canção, Cristovão Bastos faz uma introdução singela, alternando à perfeição os intervalos com som e silêncio, em notas cristalinas de piano, tão revigorantes nesta época de sintetizadores e teclados eletrônicos. Há também algo mais no seu toque, que Edu Lobo soube pinçar admiravelmente:

O Cristovão, além da riqueza harmônica, tem a qualidade muito especial de ter um toque carioca, por mais que ele conheça tudo do jazz e muito da música clássica. É formidável esse sotaque do Rio, o que cria uma intimidade ainda maior com os seus ouvintes. ”

Para este choro lento, Mauro escolheu o sopro ideal da flauta.

Nada de novo” é de uma poesia cortante com sua letra cinematográfica:

Papéis sem conta/Sobre a minha mesa/O vento espalha as cinzas que deixei/Em forma de poemas antigos/Relidos/Perdido enfim confesso/Até chorei/Nada mais importa/Você passou/Meu samba sem razão/Se acabou/Um sonho foi desfeito/Alguma coisa diz/Preciso abandonar/Os versos que já fiz/Nada de novo/Capaz de despertar/Minha alegria. ”

Volto a insistir no Axioma de Lester Young. Segundo o saxofonista-tenor, pai do estilo cool, todo instrumentista precisa ter sempre na cabeça a letra da canção. Vi Mauro outro dia, num depoimento à TV, contar como amadureceu na arte do improviso com a ajuda de Wagner Tiso. Aprendeu que improvisar não era sair por aí a mil tocando escalas e frases feitas. Era muito mais: tratava-se de “contar uma história”. A criação de uma nova melodia, dentro da grade harmônica do tema escolhido, exige que ela tenha também algo a ver com a “história” original.

A qualidade vocal dos solos do piano de Cristovão e do sax soprano de Mauro surge ainda mais acentuada em Coração leviano”:

Trama em segredo teus planos/Parte sem dizer adeus/Nem lembra dos meus desenganos/Fere quem tudo perdeu/Ah coração leviano não sabe o que fez do meu. ”

 

 

Nesta faixa o duo é acrescido do baixo de Jeff Lescowich e da percussão de Jurim Moreira, ambos tão sutis que dão continuidade à atmosfera minimalista do álbum. O quarteto prossegue em “Para um amor no Recife”, outra promenade pelo romantismo nostálgico de Paulinho. Mauro acentua o clima alternando-se na flauta em sol e no sax alto.

Vinhos finos… cristais”, parceria de Paulinho com Capinam, suscitou este arroubo de Edu Lobo:

É uma bela canção de Paulinho que poderia ser o título do CD, porque é isso que ele é mesmo – canções que remetem aos grandes compositores como Pixinguinha, Noel Rosa, Cartola, Zé Kéti e Nelson do Cavaquinho (e tantos outros). Mas que carregam a assinatura fina, cristalina e extremamente pessoal do nosso Paulinho. ”

Com seu riff envolvente, “Sarau para Radamés” – homenagem a Gnatalli, o Mestre de todos – atesta a rica cornucópia rítmica do instrumental brasileiro, da jazzfieira ao jasmineiro, da sambossa ao sambop, do pife ao xote, do forró ao xaxado. O próprio Paulinho rotulou esse tema como “samba chorado”. Jeff Lescowich faz um belo solo de baixo e Jurim Moreira conduz a navegação com o seu pandeiro. Outro debate se impõe aqui: a falsa dicotomia entre erudito e popular, que Mário de Andrade derrubou na sua frase irreverente: “Popular é o ruim gostoso…”

 

 

Assim como “Sarau”, Paulinho gravou “Choro negro” como tema instrumental. A faixa-título, traz Mauro no sax soprano, que também intervém em “Tudo se transformou”, com o quarteto de volta. “E a razão desta tristeza é saber que o nosso amor passou. ” Reparem na releitura semioculta obsessiva da segunda parte de “Chega de Saudade” (presente na gravação original de Paulinho) e uma citação fugaz a “Este seu olhar” que Cristovão faz ao longo de seus solos. E observem também o andamento de sambolero, comentário irônico à sofrência da letra.

As múltiplas passagens em uníssono entre piano e sopro atestam a força dessa simbiose musical entre Cristovão e Mauro. Com este álbum, Senise acrescenta mais um grande compositor da MPB à sua série de Songbooks, que já inclui Edu Lobo (Casa Forte), Dolores Duran e Sueli Costa (Lua Cheia), Noel Rosa (com Gilson Peranzzetta), Gilberto Gil (Amor até o fim) e Johnny Alf (Ilusão à toa). E Cristovão Bastos não só reforça seu compadrio literal e figurado com Paulinho da Viola, mas o brinda ainda com a décima e última faixa do disco, “Outonal”. Alusão à idade a que chega Paulinho, o que não o desmerece, ao contrário: o torna eterno no coração brasileiro. Coração que, nesta encruzilhada crítica e nestes tempos chorados, pulsa mais forte em nossa arte e principalmente em nossa música.

 

FICHA TÉCNICA

Álbum: Choro Negro
Cristovão Bastos e Mauro Senise tocam Paulinho da Viola
Cristovão Bastos – arranjos e piano
Mauro Senise – sax e flautas
Participação especial:
Jeff Lescowich (contrabaixo) e Jurim Moreira (percussão)

Gravadora: Biscoito Fino
Concepção do projeto: Cristovão Bastos, Mauro Senise, Ana Luisa Marinho
Direção musical: Cristovão Bastos e Mauro Senise
Produção executiva: Ana Luisa Marinho

Ficha das músicas

1 – Um choro pro Waldir (Paulinho da Viola e Cristovão Bastos)
Cristovão Bastos – piano e arranjo
Mauro Senise – flauta

2 – Nada de novo (Paulinho da Viola)
Cristovão Bastos – piano e arranjo
Mauro Senise – sax alto

3 – Coração leviano (Paulinho da Viola)
Cristovão Bastos – piano e arranjo
Mauro Senise – sax soprano
Jeff Lescowich – contrabaixo
Jurim Moreira – percussão

4 – Para um amor no Recife (Paulinho da Viola)
Cristovão Bastos – piano e arranjo
Mauro Senise – flauta em Sol e sax alto
Jeff Lescowich – contrabaixo
Jurim Moreira – percussão

5 – Vinhos finos…cristais (Paulinho da Viola e Capinan)
Cristovão Bastos – piano e arranjo
Mauro Senise – sax alto

6 – Sarau para Radamés (Paulinho da Viola)
Cristovão Bastos – piano e arranjo
Mauro Senise – flauta
Jeff Lescowich – contrabaixo
Jurim Moreira – percussão

7 – Choro negro (Paulinho da Viola e Fernando Costa)
Cristovão Bastos – piano e arranjo
Mauro Senise – sax soprano

8 – Tudo se transformou (Paulinho da Viola)
Cristovão Bastos – piano e arranjo
Mauro Senise – sax soprano
Jeff Lescowich – contrabaixo
Jurim Moreira – percussão

9 – Não me digas não (Paulinho da Viola e Cristovão Bastos)
Cristovão Bastos – piano e arranjo
Mauro Senise – flauta
Jeff Lescowich – contrabaixo
Jurim Moreira – percussão

10 – Outonal (Cristovão Bastos)
Dedicada a Paulinho da Viola
Cristovão Bastos – piano e arranjo
Mauro Senise – sax alto