Entrevistas

Lelo Nazário: Melhor Música Impossível

Lelo, sem dúvida, é um dos músicos que mais admiro dentro da atual cena instrumental brasileira. Primeiro pela escolha corajosa de trabalhar dentro de um território onde o jazz e a eletroacústica se fundem e dialogam para que ele possa criar suas composições, arranjos e solos. Segundo pela ousadia dos seus projetos, como é o caso do Projeto MI² que acaba de lançar, após uma década. Nessa entrevista, Lelo nos conta como ele foi conceituado e desenvolvido como uma proposta única, íntegra e diferenciada.

 

Wilson Garzon – Projeto MI², seu sexto álbum autoral, é lançado mais de dez anos anos depois de “Africasiamerica”. Durante esse tempo, você tinha pensado num novo projeto autoral ou ele foi somente pensado e decidido agora?
Lelo Nazário – Bem, foram anos bastante movimentados… Perdi meu pais, acabei me mudando de São Paulo, remontei meu estúdio (Utopia) na casa em que eu e minha mulher (e produtora) Irati construímos e resolvi dedicar mais tempo ao trabalho de estúdio (composição, mixagem e masterização). Além disso, produzi e gravei discos como os do Duo Nazario e do Grupo Um. Uma peça minha foi incluída numa coletânea de vanguarda na Espanha e outra foi gravada pelo trompetista David Weiss nos Estados Unidos.

Ao mesmo tempo, nunca deixei de compor novas músicas e fui acumulando um material bastante interessante e diversificado, sempre com uma visão menos tradicional na forma de compor. Fiz muitas peças para grupos de câmara, peças eletroacústicas e de jazz contemporâneo, mas todas a tentativas de obter financiamento para gravar adequadamente esses projetos não deram resultado. Então, resolvi publicar parte do material que foi gravada em épocas e situações distintas. As outras obras, que envolvem grupos de câmara maiores, cuja gravação depende de maiores recursos, vão ficar na gaveta por enquanto.

WG – O repertório é composto por nove peças autorais, de vão de 1986 a 2019. Que conceito você utilizou para integrá-las numa obra única?
LN – O elemento comum a todas as obras é a linguagem contemporânea. Procurei colocar no mesmo CD músicas com concepção jazzística, por um lado, e puramente erudita, por outro. O resultado poderia parecer um choque, mas percebemos, ao ouvir o material em sequência, que tudo flui muito bem. Já havia feito esta experiência com o Grupo Um no disco “A Flor de Plástico Incinerada”. Este é o caminho musical que mais aprecio.


Link da Áudio:

http://www.lelonazario.com.br/page69/index.html

WG – As obras “Ex-sense” e “Limite Sigma”, de 2016, foram compostas em função do ‘Golpe de 2016‘. A linha eletroacústica utilizada nessas duas obras junto com a fragmentação em partes e mudanças no andamento em cada uma delas representam a sua indignação?
LN – As músicas foram concebidas e gravadas durante todo aquele processo grotesco do impeachment, então, procurei representar, com os sons fragmentados e superpostos, aquele ambiente de loucura e nonsense a que assistíamos. A indignação também aparece em alguns sons, com certeza. O resultado é uma trilha sonora daquele período, que está trazendo ao país consequências gravíssimas que estamos presenciando agora.

WG – Esquisses” e “Cecil Tailored” são peças nas quais você utiliza o piano. Antes de você repaginá-las para integrar o álbum, elas já tinham sido interpretadas e/ou gravadas anteriormente?
LN – Esquisses” foi escrita em 1986 para um quarteto de flautas, em que cada flautista toca toda a família das flautas, do piccolo até a flauta-baixo. A peça caiu nas mãos da flautista Andrea Ernest Dias, que produziu uma sessão de gravação em 2004 tocando brilhantemente uma das possíveis versões da música (cuja partitura pode ser montada de várias formas). Quando decidi incluir a obra no CD, senti que poderia acrescentar um piano como acompanhamento das flautas, aproximando a composição do restante do material, já que um dos elementos unificadores da sonoridade do CD é o teclado, seja ele acústico ou eletrônico.

Já “Cecil Tailored”, uma homenagem ao pianista americano Cecil Taylor, foi gravada originalmente com um só piano. Depois, adicionei outro piano em certas passagens e convidei o pianista Felix Wagner para criar uma parte de piano elétrico e sintetizador por cima de tudo. Mandei as partes para ele em Berlim e, logo que veio para o Brasil, nos encontramos em meu estúdio para finalizar a música.

WG – A Árvore Contempla a Montanha”, apesar do título zen, está mais para um zen revisitado? Existe realmente uma imagem ou foto?
LN – Quando gravei a música originalmente no meu CD “Simples”, a versão era mais “zen”. A imagem que me veio à mente ao ouvir a música completa foi de uma grande montanha e, no sopé, uma árvore com uma copa arredondada, sem nenhuma presença humana. Só as duas ali, contemplando-se há séculos. Sempre que ouço a música, esta imagem retorna, então, acho que é o nome apropriado pera a composição. Nesta nova versão, coloquei outros elementos, um piano elétrico mais agressivo, mas ainda vejo a imagem ao ouvi-la.

WG – Cinco Cantos” e “Electramorphica” são duas peças compostas em 2019. A primeira foi uma encomenda do músico Vinícius Mendes. Além dessa obra, você tem escrito outras obras sob encomenda?
LN – É raro eu compor para outros músicos, pois em geral eles escrevem as próprias composições. No caso do Vinícius, a encomenda tem uma relevância, pois ele fez sua tese de mestrado com base no estudo de composições minhas (do Grupo Um), então tem tudo a ver. O mais comum, por exemplo, é eu compor para orquestras e balé, como a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, para a qual escrevi duas peças encomendadas pelo maestro Roberto Farias, ou o espetáculo mais recente “Asas para Voar – IllumiNations”, composto para o Balé da Cidade de São Paulo em 2018.

Também escrevo música para cinema, como a composta com Marlui Miranda para o longa “Hans Staden”, encomendada pelo cineasta Luiz Alberto Pereira, música essa que recebeu o prêmio de melhor trilha sonora no Festival de Cinema de Brasília em 2000. No momento, estou compondo, com Rodolfo Stroeter, uma nova peça musical para o Balé da Cidade de São Paulo, inspirada na obra do artista plástico japonês Takashi Murakami.

WG – Electramorphica”, pela complexidade sonora, representa uma tendência no seu processo de criação?
LN – Acredito que sim. A linguagem do chamado “jazz brasileiro” é muito rica, claro, mas eu gosto de trafegar por outros caminhos. Tenho produzido muito material com os novos sintetizadores virtuais, nos quais todos os parâmetros podem ser automatizados, sem contar os novos efeitos, filtros, compressores etc.

Em “Electramorphica” fiz uso de tecnologias defasadas no tempo, ou seja, usei sons criados com sintetizadores analógicos, outros sons com tecnologia dos anos 1980 e 1990 (criados no software MAX MSP) e sons de hoje, com os novos synths virtuais. A mistura ficou muito interessante, dá para perceber os layers de décadas diferentes coexistindo na mesma composição.

WG – Mais Independente Impossível” segue uma tendência contemporânea dos músicos produzirem a sua obra em seus estúdios? Você projeta continuar a sua produção por meio desse processo ou pensa em disponibilizar a sua obra atual e futura de forma digital?
LN – Bem, este disco é uma exceção. Fiz desta maneira pois o consumidor deste tipo de música é menor, mas muito exigente. Uma tiragem personalizada, feita artesanalmente pelo próprio compositor, que traz minha assinatura em cada cópia para garantir autenticidade, acaba se tornando bastante atraente. O futuro é digital, cada vez mais. É provável que eu coloque este material numa plataforma digital, mas aí também se perderia um pouco da qualidade sonora, que é um fator importante para quem consome esse tipo de música.

WG – Em relação a seu acervo de obras inéditas, você projeta um MI² 2, MI² 3? O que mais você aponta como novidade para o futuro da sua criação e produção musicais?
LN – Vou continuar tentando um financiamento para gravar as obras orquestrais e camerísticas, mas continuo agregando mais material eletroacústico a cada dia para minhas produções de estúdio e vou seguindo sempre em direção ao futuro. Apesar de nosso país estar sofrendo de retrocessos de todo tipo, eu prefiro seguir para frente, criando estruturas musicais diferentes e experimentando novas sonoridades.


Internet

http://www.lelonazario.com.br

https://www.facebook.com/lelonazario

 

CD: Projeto MI2 – Mais Independente Impossível

Músicos: Lelo Nazario (piano, sintetizadores, Rhodes, samplers), Felix Wagner (sintetizadores, Rhodes), Andrea Ernest Dias (flautas)
Todas as composições de Lelo Nazario
Produção independente e artesanal: Utopia Studio (Lelo Nazario)
Lançamento: 2019

 

Links para Venda do CD

1 – Locomotiva
http://www.locomotivadiscos.com.br/

2 – Pop’s Discos
https://www.popsdiscos.com.br/
3 – Baratos Afins
http://baratosafinsloja.com.br/