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Morre o compositor Aldir Blanc, aos 73 anos…

Sérgio Luz, O Globo, 04/05/2020 – 16:39

Autor de versos memoráveis da música brasileira, cronista das tristezas e alegrias do país, Aldir Blanc morreu nesta segunda-feira, 4 de maio, aos 73 anos. Com infecção generalizada em decorrência do novo coronavírus, Aldir estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, desde o dia 20 de abril.

O compositor deu entrada no CER Leblon no dia 10 de abril, com infecção urinária e pneumonia. Ele chegou a ser entubado em uma sala da unidade de saúde por falta de vagas em UTI. Apenas no dia 20, a família conseguiu transferi-lo para um leito de terapia intensiva no Pedro Ernesto.

Cartomantes, pés-rapados, meretrizes, vagabundos, marujos, corações partidos, morro, asfalto, mares, uma enfermeira do Salgado Filho, o beijo com cheiro de conhaque deixado na pele da amante, bêbados, equilibristas, o corpo, lá, estendido no chão. Nada passava despercebido pelo empático olhar atento de Aldir Blanc. Gaiato como sempre, ele costumava dizer que era “rigorosamente ateu, cético, cínico e escroto, nessa ordem”.

Por meio de uma poesia suja e sublime, sagrada e profana, terna e impiedosa, o compositor construiu como poucos um retrato rico e fidedigno da alma brasileira, agregando tanto o belo de sua inventividade quanto o grotesco de sua violência. “Amoroso e colérico”, como o próprio cronista se definia.

Cria da Zona Norte, o compositor absorveu o coração do subúrbio carioca desde o berço. Da Vila Isabel de sua infância, passando pelo Estácio, bairro onde nasceu — no dia 2 de setembro de 1946 — e viveu uma dura adolescência, até o apartamento da Muda: “meu bairro começa na Vila Mimosa e acaba no Alto da Boa Vista.”

O amor pela palavra foi herdado do avô, que lhe presenteava com gibis e livros de bolso. Quando garoto, ele sonhava ser baterista, compositor popular e escritor, influenciado por nomes como Rubem Braga e Sergio Porto, mestres da crônica, esse gênero tão brasileiro e tão carioca no qual Aldir também se destacaria. “Boa literatura precisa de mau gosto, mau humor, pitadas de mau-caratismo, e de muitos outros males — e maltes“, resumiu ao GLOBO em 2006.

 

O encontro com Bosco representou um casamento perfeito: de um lado, o rico lirismo do letrista; do outro, a sofisticação rítmica e harmônica do violão e das melodias do então desconhecido músico mineiro. Ao lado dele, Aldir construiria uma das mais prolíficas e contundentes parcerias da história da música popular em todo o mundo.

Juntos, escreveram clássicos como “Bala com bala”, “Caça à raposa”, “Linha de passe”, “Cabaré”, “Kid Cavaquinho”, “O mestre-sala dos mares”, “De frente pro crime” e “O bêbado e a equilibrista”, que, na voz de Elis Regina — uma das principais intérpretes do duo —, se tornou o hino pela campanha pela anistia.

Em mais de 50 anos de carreira, todos dedicados às letras — seja como compositor, escritor ou cronista —, Aldir escreveu cerca de 500 canções, sem contar outras centenas nunca gravadas ou perdidas (segundo suas contas, foram mais de 1.300). Além de Bosco, criou músicas com nomes como Guinga, Sílvio da Silva Júnior, César Costa Filho, Jayme Vignolli, Hélio Delmiro, Djavan, Cristóvão Bastos (com quem fez o clássico “Resposta ao tempo”, sucesso na voz de Nana Caymmi), Edu Lobo e Sueli Costa. Não à toa ninguém menos que Dorival Caymmi definiu o letrista como o “ourives do palavreado”.

Assim como Guinga, que já confessou que estava quase desistindo da música quando Aldir aceitou compor com ele, foi Moacyr Luz, parceiro a partir dos anos 1980, quem complementou sua poesia como apenas Bosco havia sido capaz. Juntos, eles escreveram dezenas de canções, entre elas, crônicas apaixonadas e agridoces sobre a cidade. Da obra de Aldir, aliás, o Rio emerge em canções como “Centro do coração”, “Só dói quando Rio”, “Do um ao seis” e “Saudades da Guanabara” (com Paulo César Pinheiro), lançada por Beth Carvalho em seu disco homônimo de 1989, que viria a se tornar um standard em rodas de samba cariocas.

Com um apetite voraz pela palavra, tanto a cantada quanto a escrita, Aldir ainda lançou discos como “Rios, ruas e paraísos” (1984, com Maurício Tapajós), “Aldir Blanc – 50 anos” (1996) e “Vida noturna” (2005), publicou livros — “Rua dos Artistas e arredores” (1978), “Porta de tinturaria” (1981) e “Vila Isabel, inventário da infância” (1996), entre outros — e escreveu crônicas, críticas e artigos para veículos de imprensa como O GLOBO, “O Pasquim”, “Jornal do Brasil”, “O Dia”, a revista “Bundas” e o site “No”.

Autor do livro “Aldir Blanc: resposta ao tempo”, o jornalista Luiz Fernando Vianna falou ao GLOBO em 2013 sobre a dualidade entre doçura e tristeza presente em toda a obra do compositor:
É esse paraíso da infância, mas com a doença da mãe pairando, o inferno da adolescência, o novo paraíso da primeira juventude, o inferno da perda das filhas gêmeas (em 1974, as meninas prematuras morreram ao nascer)… Emoções intensas na vida de um cara sensível e obcecado por leituras. Deu o caldo que deu.

Por ocasião do lançamento do “Songbook” de João Bosco, o último produzido por Almir Chediak, em 2001, Aldir e Bosco retomaram o contato, a amizade e a parceria, que havia sido rompida em 1983 — de acordo com o provocador Aldir, “aí teve a famosa briga que não houve, nunca teve briga. As outras 36 versões sobre a briga são todas verdadeiras.”

Em 2005, na época do lançamento de “Vida noturna“, primeiro disco solo de Aldir como cantor, produzido por Moacyr Luz, seu outro principal companheiro de canções resumiu o motivo da grandeza de seus versos:

Ele observa o mundo que está em volta dele, a vida que está acontecendo e nada escapa ao Aldir — disse ao GLOBO João Bosco.
Ele faz isso com um brilhantismo de quem não teme a morte. Canta a vida o tempo todo e só utiliza a morte quando precisa dela para fazer um verso. A morte para ele é o trecho de uma calçada onde ele cai. A morte coincide com o paralelepípedo e é apenas um detalhe do cenário. Ninguém mais consegue escrever com essa total liberdade de alguém que não teme nada.

 

Segundo Aldir dizia, “o poeta-letrista tem o dever de tentar cair no anonimato“. Em 2006, ele contou ao GLOBO uma das grandes alegrias que um compositor popular pode ter: “A coisa mais bonita é um sujeito assobiar no ônibus a canção que você fez, ou, como me aconteceu uma noite na Estudantina, um cara ouvir a cantora da orquestra atacar “Dois pra lá, dois pra cá” e largar o copo dizendo pra si mesmo — e tenho certeza absoluta de que ele não sabia que o autor estava do lado —:’Vou dançar. Essa é a minha música.‘” Em outras palavras, ele resumia: “defeco para a visibilidade“.

Nos últimos anos, Aldir, que sofria de diabetes, vivia recluso em seu apartamento, na Tijuca. Distante da bebida que fez companhia em tantos momentos, ele se dedicava a filhas e netos com vigor. O envelhecer gerava reflexões divertidas e bonitas, como era bem de seu feitio. Em 2016, quando fez 70 anos, disse ao GLOBO que chegar a essa idade era “como ser atropelado por um caminhão-cegonha que, em vez de transportar carros, transporta guindastes e tratores. Difícil levantar no dia seguinte”.

Um ano depois, também ao GLOBO, ele resumiu a relação que tinha com sua maior musa inspiradora:

Sem a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro não existiria nenhum compositor popular chamado Aldir Blanc. Devo tudo a ela.

 

Carlos Lyra (Facebook)
04/05/2020, 19h00

Acordei hoje com a terrível notícia da passagem do Aldir. Uma das pessoas mais interessantes que havia para se conversar. Um homem que pensava na igualdade e que lutava, com palavras, por este fim. Um compositor que surpreendia a cada letra e que inspirava seus parceiros a darem seu melhor para serem dignos daquelas palavras.

Compor com Aldir era uma montanha russa emocional. No espaço entre a chegada das letras havia sempre uma série de conversas sobre os males da humanidade. Um desespero com o futuro na direção que estávamos indo. E aí, nos brindava com pérolas onde colocava pra fora toda sua revolta com impropérios, ora melancólicos, ora sarcásticos, a ponto de nos fazer rir.

Parceiro, foi uma honra compor com você. Foi uma honra compor pra você. Logo agora que estamos preparando o lançamento do nosso álbum nas plataformas digitais, você não vai estar aqui para brindar conosco e curtir os comentários. Parte da graça vai embora com você. Mas será minha homenagem, lhe manter ouvido e não olvido como você diria!

Fico aqui acabrunhado, mais uma vez, com essa borracha enorme que vem apagando o meu passado. Vai em paz, irmão!