Jazz News

O Universo Sonoro de DOMi & JD BECK

Preâmbulo
Escrevi esse artigo, “Virtuosismo, Reels e Hipercomunicação” mais alargado e analítico, sobre o recém-lançado (e badalado) álbum de estreia do duo sensação da internet, DOMi & JD BECK, editado pela lendária Blue Note em parceria com o selo APESHIT. Como não encontrei no Brasil nenhuma crítica mais a fundo a respeito da dupla (o pouco que tem não vai muito além do texto de apresentação do site da Blue Note, pelo que vi) e a música da dupla traz de fundo a ordem digital de nossos tempos, tema que me interessa bastante, acabei escrevendo.

Virtuosismo, Reels e Hipercomunicação

O pano de fundo de nosso tempo é o ruído. A imposição da ordem digital à experiência humana gerou, dentre tantos desdobramentos, a fragmentação do indivíduo nas redes sociais e outras plataformas eletrônicas, a enxurrada sem fim de dados e informações que se acumulam metrificando a existência e potencializando o consumo e uma aceleração sem precedentes da comunicação.

O celular, mais do que um aparelho utilizado para fazer chamadas, tornou-se a um só tempo a extensão da personalidade de seu dono, uma prótese que não raro substitui seu corpo na mediação sensível com o mundo e a porta de entrada ao universo virtual de fluxos de informação velozes e ininterruptos. Neste contexto, demorar-se diante de uma imagem parece ser um exercício anacrônico em face da compulsão do scroll. Igualmente, apreciar um disco inteiro e mergulhar em sua narrativa soa um esforço desnecessário ante o imediatismo do single e as facilidades das playlists nas plataformas de streaming.

É preciso continuamente saltar para a próxima “música do momento” ou para o novo vídeo no Reels na cadência pontual, efêmera e ligeira de um tweet. No cerne desta paisagem hiperconectada, uma dupla de jovens instrumentistas conseguiu produzir uma música profundamente integrada a seu tempo. Em seu álbum de estreia intitulado “NOT TiGHT”, o duo formado por DOMi Louna (teclados) e JD BECK (bateria) consegue traduzir em música a aceleração do mundo contemporâneo, a avalanche dataísta da comunicação digital e a miríade de referências musicais, culturais e visuais que circula aos borbotões nas redes.

Em seu primeiro trabalho, o dueto apresenta um programa minuciosamente constituído por quinze faixas que promovem a mescla das mais diversas linguagens, desde o jazz fusion até o hip hop, passando pelo erudito e o cancioneiro pop, alcançando inclusive paragens distantes da música dita “séria”, numa atitude situada entre o fun e o chiste, como as trilhas sonoras de desenhos animados japoneses. Um disco sincrético, de fato, porém, coeso. A feliz convergência da artisticidade um tanto debochada de DOMi e JD BECK com o virtuosismo desbragado da dupla e um esmerado trabalho de produção assegura ao álbum a força necessária para aparar arestas e arquitetar um todo coerente a partir da pluralidade.

 

LOUNA’S iNTRO”, a faixa de abertura, é uma vinheta sintético-camerística de movimentação harmônica profusa e angulosa cuja textura é enriquecida por sons de cordas em pizzicato e adornada por uma melodia rebuscada que faz o elo com a música seguinte. Neste sentido, o tema se impõe como uma espécie de portal que acolhe o ouvinte e o introduz ao universo sonoro do duo, apresentado sem reservas na faixa contígua, “WHATUP”.

Aqui ouvimos o combo inteiramente à vontade no território musical que os alçou à condição de “internet’s most hyped jazz (etc.) duo” em vídeos curtos no Instagram os quais tiveram vasto alcance, causaram muito frisson e engajamento: a abordagem multitask de DOMi nos teclados construindo intricadas linhas de baixo na mão esquerda e improvisando com uma fluidez e articulação estonteantes na mão direita, a inquietude virtuosística de JD preenchendo todos os espaços possíveis com sua bateria de sonoridade seca, deliberadamente posicionada entre o indie e o “demo”, oscilando os andamentos e erigindo complexas estruturas rítmicas ao longo da música; tudo isto amalgamado por um forte senso de interação e domínio da forma.

Apesar de tudo, não impera nesta faixa, nem nas demais, a tensão do aqui-agora inerente às sessões de jazz, que prezam pela estética do “ao vivo”. O que há é justamente o oposto: um ambiente controlado de inúmeros recursos e possibilidades onde DOMi e JD BECK se fazem à vontade. Como o próprio baterista explica, a dupla não queria gravar como os grandes mestres o faziam, mas sim construir algo elaborado, o que faz do estúdio, mais do que uma parafernália para documentar o duo
em ação, um recurso a ser utilizado a favor da arquitetura da música.

Em outros termos: o overdubbing, quase um sacrilégio no mundo do jazz, é um utilizado no projeto inteiro sem maiores preocupações ou pudores. Desta forma, percebemos em “WHATUP” as camadas sobrepostas de teclados de DOMi as quais tanto agregam riqueza tímbrica quanto permitem à musicista acompanhar a si mesma encadeando acordes e costurando linhas de baixo enquanto improvisa. Sem falar da sofisticada engenharia sonora que estabelece um controle minudente de cada instrumento e ergue uma espacialidade que confere profundidade à música.

 

O álbum prossegue com “SMiLE”. Nascida de uma melodia simples cantarolada por JD que fora harmonizada por DOMi, a composição mantém o foco na intensa sinergia performática que notabilizou a dupla, porém dá um passo adiante na experimentação rítmica ao acomodar duas forças que se justapõem em sua estrutura. Por um lado, a delicadeza “grooveada” da seção A estabelecida pelo tema principal que dá o tom sereno, quase pueril, numa métrica quaternária quebrada aqui e
acolá por um compasso 3/4.

Do outro, na parte B, a tensão rítmica trazida pela assimetria introduzida com a modulação inesperada para o compasso 5/8 e pelo deslocamento da melodia conduz o desenvolvimento como se a música estivesse prestes a desmoronar. A forma se desdobra, DOMi constrói uma base harmônica bastante movimentada e apresenta a melodia enquanto JD improvisa sobrecarregando o pulso com uma avalanche de informações rítmicas produzida por sua bateria excessivamente multidirecional antes da reexposição do tema.

Talvez por sintetizar bastante bem a sonoridade do duo, esta faixa foi a primeira “música de trabalho” do disco e aquela transformada em videoclipe. Dirigido por Anderson .Paak, o vídeo de “SMiLE” conta a história de como McBriare Lanyon, um músico de jazz amargurado pela perda da audição e a consequente incapacidade de ouvir a música que tanto ama, reencontra a alegria e o contentamento musical por intermédio de seus pupilos DOMi e JD BECK, que lhe preparam uma pequena surpresa no seu aniversário de cem anos.

A abordagem do clipe é precisamente calculada para equalizar uma estética retrô, um segmento da cultura jovem, conectada e hype e uma postura inofensivamente provocativa com os tradicionalistas do jazz, puristas dedicados a museificar o gênero, uma celeuma hoje em dia, parece-me, um bocado demodê. Assim, vemos na abertura do “curta” um cenário de desordem: um quarto bagunçado com livros empilhados, jornais afixados num mural, um quadro pendurado, equipamentos de som antigos, um relógio de parede analógico, castiçais, um violão encostado à parede e uma estante de partitura sem pautas inutilizada atrás do piano de caixa.

Em suma, uma iconografia da decadência do jazz master (ou, se o quisermos, do próprio “jazz tradicional” em si, seja lá o que isso for atualmente) rematada por um rato que furtivamente corre do piano para o cello. No centro do plano, o músico martela as teclas do instrumento em vão enquanto somos envolvidos por um zumbido abafado e atordoante à medida em que nos aproximamos dele. Um close, e constatamos que o pianista não tem ouvidos. Em seu lugar, dois orifícios representam uma audição perdida por falta de uso, a ponto de uma aranha fazer da cavidade sua morada.

O jazz pode não ter morrido, mas, moribundo, surdo e infeliz, é incapaz de ouvir o novo, diz-nos o clipe. E esse novo é corporizado pela dupla, herdeiros da tradição cheios de talento, jovialidade e senso de humor que não reconhecem fronteiras estéticas ou cânones para reverenciar no jazz que divertidamente amam, tanto que liquidamente transitam para
onde bem entendem nos vastos territórios da música.

Por isso, presenteiam McBriare com um par de orelhas novas e enormes para que ele possa não só ouvir novamente “a música que definiu sua vida”, mas também apreciar sem restrições o som eclético da nova geração da qual fazem parte DOMi, JD BECK e seus amigos, não à toa convidados da festa de aniversário: Daryl Johns, Thundercat, Anderson. Paak e porque não incluir Mac DeMarco, que interpreta o próprio pianista no clipe. Assim, testemunhamos a transformação da triste figura caricaturada do imaginário de Beethoven atormentado pela surdez em um velhinho dócil e contente a fruir a música de seus discípulos. Mais didático impossível.

 

Voltando ao disco, é justamente a partir de “SMiLES” que o trabalho se alarga musicalmente e a intenção da dupla por “construir algo” que não seja um instantâneo de sua performance se torna mais evidente. “BOWLiNG”, música em 3/4 de sonoridade milimetricamente planeada entre o indie e o retrô, conta com a participação de Thundercat interpretando tão graciosamente a letra sobre um convite para uma partida de boliche como tentativa de superar um desentendimento que fica difícil não rir do senso de humor dos artistas.

Não há improvisos, que só aparecerão no formato “chamado e resposta” exuberantes e supersaturados de notas – ou seja, de informação – como de costume na música seguinte, a faixa-título “NOT TiGHT”. Entretanto, aqui temos um dos poucos elementos de contenção expressiva do trabalho: a voz suave, um quê de sussurro, de DOMi, cujos dotes vocais serão melhor explorados mais à frente em “U DON’T HAVE TO ROB ME”, um dueto com JD em 5/4 sobre uma abordagem sofrida pela musicista que quase termina em roubo, e surgem ainda mais tênues na pseudo-balada em 9/4 “TWO SHRiMPS”, com a participação de DeMarco. “Pseudobalada”, sim, porque a hiperatividade da bateria não dá qualquer chance ao estabelecimento de uma atmosfera introspectiva no tema.

A vertente hip hop e rap é destacada nos temas “PiLOT” e “TAKE A CHANCE”, música de terreno ritmicamente acidentado habilmente articulado a estrofes de balada pop com sabor à groselha onde DOMi e JD novamente oferecem seu canto. O jazz fusion também vem à tona em “WHOA”, que conta com a participação de um Kurt Rosenwinkel absolutamente à vontade em seu elemento, e na  excelente “MOON”, um dos pontos altos do disco. Este tema traz a participação de Herbie Hancock
no vocoder e piano e apresenta o equilíbrio perfeito entre odd meters, complexidade harmônica, melodias cantaroláveis de forte apelo, improvisações de altíssimo nível técnico e combinação de sonoridades eletroacústicas. É perceptível o contentamento de Hancock, talvez por uma espécie de retorno às incursões exploratórias do eletrônico que empreendeu nos anos 1970 e 1980.

 

No final do tema, somos conduzidos a um rasgo deliberado na estrutura do álbum, feito aquelas prospecções das camadas de um edifício que encontramos em arquiteturas notáveis dadas ao turismo: a música termina, Herbie sorri e pede para ouvir o resultado do take enquanto, mais ao fundo, os artistas (e a produção) nos permitem escutar o clique do metrônomo, recurso tão familiar às gravações do pop, e que aqui se constitui como o triunfo do planeado sobre o espontâneo.

O disco termina com “THANK U”, por simetria, o reverso sintético-camerístico da vinheta introdutória e elemento necessário para encerrar o objeto artístico. Um sincero agradecimento da dupla pela resiliência do ouvinte contemporâneo no “esforço hercúleo” de escutar um disco inteiro. Ou, se assim o preferirmos, numa interpretação mais mordaz, a placa de “até breve” que encontramos na saída de parques temáticos. Afinal, é preciso manter o engajamento nas redes e os plays nas plataformas de streaming.

Ao fim e ao cabo, enquanto obra, “NOT TiGHT” é uma bem conseguida síntese da produção musical de DOMi e JD BECK, dois instrumentistas enquadrados em seu tempo, um tempo de totalização da produção, aceleração, fun, deslocalizações, hipercomunicação, multitask, desempenho, influencers, economia de likes, tendências (no jazz, a polimetria é a nova moda), transparência etc. Em contrapartida, o disco é também um interessante paradoxo por documentar e estruturar a música de dois jovens prodígios nascida na e para as redes sociais, o universo por excelência do descartável, e dar transversalidade a dois artistas dispersos como “grãos de areia no vasto deserto” da internet pondo-os no mapa do jazz internacional.

Um álbum de estreia que se impõe como o primeiro trabalho relevante de uma nova geração de young lions, os “jazzistas Tiktokers”, feito sob medida para uma igualmente nova geração de ouvintes, os Phono Sapiens. Se viral ou perene, só o tempo dirá. Por ora, “curta, comente, compartilhe”.