Rodrigo Sha e Maurício Pessoa gravam tributo ao disco ‘Getz/Gilberto’
Daniel Barbosa, jornal Estado de Minas, 03/04/2022
Com o disco “Sha plays Getz/Pessoa sings Gilberto”, que acaba de chegar às plataformas digitais, a dupla carioca revisita o célebre encontro em estúdio do baiano João Gilberto com o saxofonista -americano Stan Getz, mediado por Tom Jobim. Contando com a participação de Astrud Gilberto, ele resultou num marco atemporal da bossa e do jazz.
RÁDIO ROQUETTE PINTO
O recém-lançado álbum deriva do show que Sha e Pessoa estrearam em 2018, após uma conversa informal sobre as respectivas influências. O saxofonista conta que mantinha na Rádio Roquete Pinto, no Rio de Janeiro, o programa “Hora do Sha”, em que sempre recebia convidados para entrevistas. Ao final, realizava com eles um número musical ao vivo. Um dos convidados foi Maurício Pessoa, seu velho amigo, que lançava o álbum instrumental “Without you”.
“No final, tocamos ‘Autumn leaves’ e foi um barato”, recorda o saxofonista, referindo-se à música de Joseph Kosma que ganhou várias interpretações, de Maysa a Eric Clapton, passando por Piaf. “Maurício tocou numa levada bossa nova e minha interpretação foi total na onda do Stan Getz”, conta Sha. “Saímos da rádio juntos. Voltando para casa de metrô, a gente veio conversando sobre influências: ele falando do Getz, eu do João Gilberto. Ali tivemos o lampejo”, emenda Maurício Pessoa.
O fato de, naquele momento, “Getz/Gilberto” completar 55 anos foi um gancho a mais para que a dupla se lançasse à aventura de revisitá-lo. Sha procurou a direção da casa de shows carioca Blue Note, com a proposta do tributo. A ideia foi imediatamente aceita.
“A primeira apresentação já foi com ingressos esgotados. As coisas vão fluindo quando dão certo. Fizemos algumas temporadas no Hotel Fasano, no Blue Note de São Paulo. Pensamos, então, que como o show estava repercutindo muito, tínhamos de gravá-lo”, diz. E assim foi.
Em 2021, a dupla registrou as músicas no estúdio Visom, no Rio de Janeiro. Os dois no mesmo espaço, com o intuito de recriar a ambiência e a sonoridade da bossa nova e do jazz. Sha acredita que esse formato mais orgânico e natural também norteou o disco “Getz/Gilberto”.
“Esse processo é muito comum no mercado. Se você lança um show que dá muito certo, tem de materializá-lo. Na minha cabeça, a gente deveria gravar o álbum da forma como foi o show, só nós dois, até para explorar a formação que eles não fizeram lá entre 1963 e 1964”, diz, ao explicar a opção por não incluir piano, outros instrumentos ou voz feminina no projeto.
“Era importante a gente gravar ao vivo na mesma sala, sem efeitos, para ter a mesma atmosfera. Foi uma experiência muito bacana, porque a verdade do nosso trabalho está ali. Não tem maquiagem, é só mesmo a nossa devoção por esses gênios”, comenta.
Não foi apenas na formação instrumental que Sha e Pessoa procuraram se descolar um pouco de “Getz/Gilberto”. O álbum da dupla também traz oito faixas, mas apenas três estão no repertório do clássico de 1964:
“Doralice”, “Corcovado” e “Garota de Ipanema”.
As outras cinco foram pinçadas das discografias individuais de Stan Getz e de João Gilberto:
“Estate”, “Chega de saudade”, “It’s wonderful”, “Saudade fez um samba” e “Wave”.
LONGE DO COVER
“Replicar o formato original de ‘Getz/Gilberto’ poderia nos levar para o lugar do cover, e essa nunca foi nossa ideia. O repertório não é o do álbum original, escolhemos outras músicas com intuito de sair mesmo, automaticamente, da comparação direta. As influências são muito claras, muito evidentes, mas é impossível tentar imitar, porque João e Stan Getz são inimitáveis”, diz Pessoa.
“No final das contas, não é bem um tributo ao disco, mas à união daqueles dois artistas, à sonoridade que eles criaram e que mudou o mundo, porque a partir dali a bossa nova foi para outro patamar, as carreiras de ambos foram para outro patamar, Tom Jobim partiu para gravar com Sinatra. Não dava para fazer igual ao ‘Getz/Gilberto’ e nem foi essa a nossa intenção. A gente buscou músicas que eles poderiam ter gravado, pensando nessa conexão e na linguagem deles”, reforça Sha.
Ao recordar a forma como João Gilberto e Stan Getz gravaram ao vivo no estúdio, ele evoca também a relação nada amigável do brasileiro e do americano naquele primeiro momento.
É sabido que o criador da batida da bossa nova implicou com o saxofonista. Como não dominava o inglês, João chegou a pedir a Tom Jobim para passar o recado: “Diga a esse gringo que ele é burro”. Diplomático, o maestro contornou a situação.
A despeito do ambiente conflituoso, o que saiu do estúdio foi uma obra-prima, afirma Sha. Ele credita esse resultado ao profissionalismo dos músicos envolvidos e à capacidade conciliadora de Tom Jobim, que, literalmente, estava ali para harmonizar pessoas e música.
“O Getz pode não ter tido muita afinidade com João, mas ele é o saxofonista da bossa nova no mundo. Foi um cara que se apropriou (do gênero) de uma forma que mais ninguém conseguiu, tanto que gravou vários discos de bossa nova ao longo da carreira solo. Ele era um amante, estava mais sedento para gravar aquele disco do que o João”, destaca.
GÊNIOS
O saxofonista observa que havia ali dois gênios juntos, e isso costuma ser problema. “Mas eram pessoas que tinham reverência pela música. A humildade diante da obra que estavam executando foi maior do que o ego que alimentavam”, acrescenta.
Maurício Pessoa reconhece o atrito que pode resultar do encontro de gênios, mas reforça que a sintonia musical prevaleceu. “Tentar juntar muitas estrelas pode dar confusão, mas ali o resultado é fantástico. Jobim foi muito feliz nos arranjos. E foi o mediador da situação”, relembra.
Já o clima no estúdio Visom, no Rio de Janeiro, foi de muita camaradagem, posto que Pessoa e Sha são amigos há mais de 20 anos e tocaram juntos em várias ocasiões.
“Sempre falo que foi petulância e irresponsabilidade nossa mexer com uma obra tão clássica, mas a verdade é que o processo foi extremamente prazeroso, principalmente no que diz respeito às músicas que não estão no ‘Getz/Gilberto’. Essa parte envolveu exercício maior de criação, com o desafio de imaginar, com base no que está registrado no disco, como teria sido se eles tivessem gravado as músicas que não gravaram juntos”, ressalta.
Para Sha, o maior desafio é manter o traço pessoal e a subjetividade sem abdicar das melhores qualidades do saxofonista homenageado. Mesmo depois de muito tempo na estrada, esse é um dos shows em que ele fica mais tenso.
“É uma quantidade grande de harmonias, o que exige nível de concentração muito alto, e o Getz tinha a coisa da fluidez, da naturalidade. Você deve ter precisão e técnica, mas também naturalidade, estar intelectualmente e emocionalmente dentro da música”, explica.
Ponte com a Dinamarca
“Sha plays Getz/Pessoa sings Gilberto” é um projeto internacional, fruto da parceria com a gravadora Music For Dreams, baseada em Copenhague, na Dinamarca. A percepção de que a bossa nova é mais cultuada no resto do mundo do que no Brasil estabeleceu a ponte.
“Os gringos admiram a bossa de uma forma histérica. Sei porque vivi isso viajando com o Bossacucanova e com a Bebel Gilberto”, diz Rodrigo Sha.
“O projeto merecia uma gravadora lá fora, seria um lançamento mais proveitoso. Então, mandei para o produtor da Music for Dream, com a qual tenho uns trabalhos. Eles amaram. Neste momento, o mundo está recebendo o álbum e nós estamos tendo feedback muito especial”, salienta Rodrigo.