Jazz News

Zuza: amigo e patrimônio cultural do Brasil

Uma das marcas mais sofridas dessa pandemia foi a de encerrar a carreira de grandes artistas da música, como McCoy Tyner, Gary Peacock, Aldir Blanc, Serginho Trombone e agora foi a vez do nosso querido amigo e referência da história da música brasileira. Zuza sempre foi o exemplo de cidadão, que deixou solitário uma multidão de amigos que cativou com sua elegância e sabedoria.

 

 

Júlio Maria, O Estado de S.Paulo
04 /10/2020 às 09h43

Zuza Homem de Mello se foi. O mais importante pesquisador de música do País, escritor, jornalista, contrabaixista e técnico de som, estava com 87 anos e morreu enquanto dormia em seu apartamento, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. A causa da morte revelada pela família foi infarto agudo do miocárdio. Antes de se deitar na noite de sábado, ele brindou à vida e aos projetos com a mulher Ercília e foi dormir feliz. Em razão da quarentena, a família pede compreensão ao informar que fará um velório e um enterro restritos, apesar das centenas de amigos que gostariam de se despedir.

Zuza havia finalizado na última terça-feira (29/09) uma biografia sobre João Gilberto, um projeto que o emocionava só de contar. Já havia feito um perfil sobre o violonista baiano, mas decidiu refazer os escritos, ir mais fundo na pesquisa, entrevistar mais pessoas e expandir a história. Ao falar sobre suas audições do álbum Amoroso, que João lançou em 1977, dizia que não conseguia ouvi-lo sem ir às lágrimas. E só de contar, chorava mais uma vez.(…)

 

 

Zuza Homem de Mello foi o profissional mais importante do último meio século no Brasil

João Marcos Coelho, O Estado de S.Paulo
04/10/2020, às 18h38

Neste mundo compartimentado em que vivemos, sobretudo no domínio das artes, Zuza nos ensinou talvez a maior das lições: a de que a música é uma só, não existem cerquinhas ou divisões. Quando ela tem qualidade de invenção, merece ser ouvida e compartilhada. Este conceito foi escrito e explicitado por Augusto de Campos. Mas Zuza foi, desde antes de Augusto, a própria encarnação desta postura.

E, por isso, foi o profissional de música mais importante do último meio século no Brasil. Além de seu fundamental lado de pesquisador, com vários livros essenciais para a devida compreensão da música popular, Zuza tinha “música nas veias”: por elas cabia de tudo, desde que fosse de qualidade. O slogan nasceu como título de um de seus programas de fim de tarde na Rádio Jovem Pan em muitas décadas passadas.
Um mote pessoal, nutrido e cultivado com paixão em seu dia a dia. Zuza conseguiu – quase num passe de mágica – transferi-lo para cada projeto, cada realização durante sua carreira de estudante de contrabaixo na Julliard School em Manhattan; depois engenheiro de som da TV Record nos lendários anos 1960; até desabrochar como curador e produtor musical.

Meio século dourado, para ele, profissionalmente, e para a música brasileira, que começou em 1978, no I Festival Internacional de Jazz de São Paulo, no Anhembi. Foi a largada para uma série de outros festivais – Free Jazz, Montreux, entre vários outros –, nos quais ele fez amostragens inclusivas, que iam dos grupos mais revolucionários aos mainstream.

Não é exagero afirmar que Zuza mudou radicalmente a vida musical deste meio século. De um lado, foi parceiro e pesquisador meticuloso da música popular brasileira. De outro, ao trazer para o Brasil o estado da arte do jazz, impulsionou e tirou do esquecimento a música instrumental brasileira. Pioneiros como o saxofonista Vitor Assis Brasil e o experimental Grupo Um tocaram em festivais concebidos por Zuza. A convivência dos brasileiros com os grandes do jazz e o compartilhamento do público com toda esta efervescência resultou na tão esperada consolidação da música instrumental por aqui. Isso valeu especialmente para os estudantes de música, que passaram a enxergar nela um caminho novo e viável.

O jazz brasileiro, ou que nome se queira dar, floresceu de modo notável nos últimos trinta anos. E isso se deve a Zuza. A música popular de qualidade também – também graças ao Zuza. Numa live recente que fizemos em julho, Zuza divertiu-se falando da convivência com os grandes – de Ellington a Marsalis, de João Gilberto a Caetano, Gil, Elis e Tom.

Mas, acima de tudo, jamais sentou-se em cima de glórias passadas. Continuava garimpando novos talentos na música brasileira (apostando em Ana Setton, Marcio Montarroyos e Letieres Leite. Falamos sobre suas maiores paixões: a máxima, Duke Ellington, e outra preferencial, Wynton Marsalis. Quanto ao primeiro, ele sempre o considerou o maior músico do século 20.

Uma paixão compartilhada décadas atrás por uma confraria Duke Ellington, integrada por Alberico Cilento e Carlos Conde, que mantiveram um programa de jazz na Rádio Cultura FM de São Paulo. Pois eles bancaram em 1968 um LP não-comercial, com apenas 200 cópias, com parte do show do Duke e sua orquestra no Teatro Municipal em São Paulo. “Estão nas mãos de ellingtonianos do mundo inteiro, inclusive na Duke Ellington Society. É o único registro de Duke Ellington ‘beyond the Equator’”, abaixo do Equador, contou rindo.

Faltou tempo para um livro que com certeza Zuza adoraria ter escrito sobre Ellington. Quanto a Marsalis, ele realizou seu sonho ao conceber ano passado no Sesc Pinheiros, em São Paulo, uma “instalação” Jazz at the Lincoln Center Orchestra com 15 dias de shows, masterclasses e concertos didáticos(…).