Entrevistas

‘Sensorial’, a nova Bossa de Mafalda Minnozzi!

É com grande honra que o Clube de Jazz apresenta essa entrevista com a cantora e compositora  italiana Mafalda Minnozzi que acaba de lançar seu novo álbum “Sensorial – Portraits in Bossa & Jazz“, que já disponível em todas as plataformas digitais pelo mundo afora. Essa matéria visa não só divulgar o seu trabalho, mas, antes de tudo revelar a velha e boa relação que Mafalda tem com o nosso país e principalmente com a música brasileira. ‘Sensorial‘ teve a direção musical do guitarrista Paul Ricci e as participações de competentes músicos americanos:  o pianista Art Hirahara, os contrabaixistas Essiet Okon Essiet e Harvie S, o baterista Victor Jones e os percussionistas Will Calhoun e Rogerio Boccato.

Segundo Mafalda, “o disco reinterpreta e reinventa o songbook brasileiro, inserindo a dinâmica metropolitana do som de Nova York em uma mistura imaginativa de bossa e jazz”. O repertório é em grande parte de Tom Jobim que foi contemplado com sete faixas: ‘Chega de Saudade’, ‘Vivo Sonhando’, ‘A Felicidade’ e ‘Consolação’,  ‘Dindi’, ‘Desafinado’, ‘Triste’ e ‘Once I loved’, esta cantada em inglês. O repertório é completado por: ‘Morro Dois Irmãos’ de Chico Buarque, ‘Jogral’ de de Filó Machado e José Neto, ‘Samba da Benção’ de Baden e Vinícius, ‘Mocidade’ de Toninho Horta, ‘Un Altro Addio’, de Toquinho & Vinicius de Moraes e ‘É Preciso Perdoar’ de Alcyvando Luz & Carlos Coqueijo, com a introdução de um trecho de ‘Lonnie’s Lament’ de John Coltrane.

 

 

Wilson Garzon – Como foram os primeiros contatos com a música brasileira? Que cantores e compositores? Músicas brasileiras desde cedo começaram a fazer parte do seu repertório?
Mafalda Minnozzi – A música brasileira no final dos anos 70 e começo dos anos 80 não chegava à Itália com grande facilidade. Era o tempo que eu comecei a consumir bastante música, mas foi um disco que saiu na Itália em 1976, intitulado “La Voglia, la Pazzia, l’Incoscienza e l’Allegria“, que realmente marcou minha alma de interprete. Trata-se de um disco (LP) que nasceu da colaboração inédita entre Toquinho, Vinícius de Moraes, o letrista/versionista Sergio Bardotti e a cantora Ornella Vanoni. Fiquei encantada pelas composições (Jobim, Baden Powell, Chico Buarque, Vinícius de Moraes) e pela sua dialética elegante, erudita, delicada, esteticamente perfeita. Com certeza era um disco em contra tendência na época, com uma linguagem muito próxima ao jazz.

Era realmente raro ouvir música brasileira, lembro da música “Mais Que Nada” na versão de Jorge Ben Jor e naquela em bossa nova de Sérgio Mendes & Brasil ’66; lembro da popularidade do Toquinho, hospede de muitos programas de TV onde contava sua história e suas origens italianas, além de tocar e cantar com seu violão; lembro especialmente de um disco precioso que rodava muito na minha vitrola: “Stone Flower” do Jobim, com arranjos do Eumir Deodato, Airto na percussão e Ron Carter no contrabaixo! Lembro também que era frequente encontrar e ouvir cantoras italianas como Mina, Ornella Vanoni e Caterina Valente dedicando umas músicas ou um inteiro álbum da discografia delas a composições de autores brasileiros, em versão em italiano.

Lembro que fiz questão de aprender a cantar “A Banda” do Chico Buarque após ter ouvido pela voz da Mina (álbum “Mina Canta o Brasil), mas minha eterna curiosidade me levou a procurar a voz do autor que encontrei no LP intitulado “Chico Buarque da Hollanda na Itália“. Outra maravilha que está na minha memória é “Per un Pugno di Samba” nascido da colaboração entre Chico Buarque e o mestre Ennio Morricone. Ao mesmo tempo reparei que sem conhecer o português teria sido muito difícil cantar essas músicas e fazer isso com a levada certa.

A nossa grande sorte na Itália, foi a atividade do letrista Sergio Bardotti que chegou a ter uma intimidade artística com figuras como Chico Buarque, Vinícius de Morais, Toquinho e o italiano Sergio Endrigo, conseguindo criar umas versões perfeitas a serem encaixadas na batucada brasileira. O jornalista Gianni Minà também contribuiu bastante na divulgação da cultura brasileira na Itália, em quanto produziu diversos programas de TV dedicados à música de Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Baden Powell. Era já o final dos anos 80, e tudo isso abriu definitivamente uma janela para eu, adolescente, olhar encantada ao Brasil.

 

 

WG – Em 1996 você vem para o Brasil para uma temporada no Paradiso. Veio com um grupo próprio ou teve que montar um aqui? Que artistas/músicos foram importantes para estabelecer a ponte Brasil/Itália?
MM – Cheguei pela primeira vez ao Brasil acompanhada por um pianista italiano, Mario Lambertelli, apaixonado pela música brasileira e pelo jazz assim como eu. Mas, com certeza quando foi tocar com músicos cariocas como Nico Assumpção (baixo), Raul Mascarenhas (sax), Luiz Avelar (piano) comecei a entender o “groove” e a entrar devagar na alma da música brasileira. Além deles, tive também a grande oportunidade de encontrar e tocar com Cristóvão Bastos (piano), Armando Marçal (percussão) e o batera Jurim Moreira e foi uma aula, cada vez. Como já diz, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Toquinho e Bardotti estabeleceram primeiros esta ponte Brasil/Itália, mas quero dar um destaque a Caterina Valente, talentosíssima cantora, violonista, pesquisadora, que chegou a fazer colaborações com Bonfá no mundo inteiro, cantou Baden Powell e produziu/gravou um documentário espetacular na Mangueira com Clementina de Jesus.

Sinto que eu também fiz minha parte, ficando enriquecida a cada encontro. Quando levei uma música de Lucio Dalla ao Martinho da Vila e a cantamos juntos (cd/dvd “Brasilatinidade“) contribui a construir um pedaço dessa ponte, assim como quando cantei “Travessia” em italiano no palco com Milton Nascimento, ou gravei com Guinga e Paulo Moura no meu álbum “Controvento“, ou cantei em dueto com Leila Pinheiro ou quando assessorei Emílio Santiago para cantar no meu idioma. Mas também quero declarar aqui que este meu passado, faz parte de uma história que continua e vai continuar.

WG – A partir de 2015 você e Paul Ricci criam o Empathia Duo e gravaram três cds. Quando e como conheceu Paul Ricci? É nesse projeto que são introduzidas músicas brasileiras no seu repertório?
MM – Conheci o nova-iorquino Paul Ricci no Rio em 1996, e encontrei nele meu, o mesmo desejo de criar um som único e original. Digamos que foi uma “chamada artística”. Fiquei impressionada pelo fato que um “gringo” tivesse tanto conhecimento da música brasileira e descobri, que isso vinha da sua profunda convivência em Nova York com artistas como Edison Machado, Dom Um Romão, Astrud Gilberto, Bebel Gilberto e muitos outros. Com Edison Machado, especialmente, ele ficou estudando, aprendendo o português e tocando juntos por mais de dois anos.

Músicas brasileiras como “Só Tinha De Ser Com Você” entraram no meu repertorio ao longo da minha carreira antes do projeto EMPATHIA. Como poderia resistir? Gravei também “Eu Sei Que Vou Te Amar” e “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá“. No out-take do dvd “Brasilatinidade” do Martinho da Vila, gravei uma versão incrível de “O Que Será (A Flor Da Terra)” com a poderosa banda do Martinho. Tudo isso aconteceu naturalmente, no curso de muitos anos, com muita dedicação. Cheguei a adicionar o som do berimbau gravando uma música de Ennio Morricone, para meu primeiro dvd “Live na Italia!” A música brasileira influenciou e invadiu o meu som bem antes do projeto EMPATHIA.

 

 

WG – Em 2020, é lançado o projeto ‘Sensorial‘. Ele já era pensado desde a época do Empathia Duo? Há intenção de continuá-lo com uma segunda edição?
MM – Considero ‘Sensorial‘ uma extensão do projeto Empathia Jazz Duo que aconteceu na hora certa por vários motivos. Após a realização da trilogia de cd’s do duo, onde procuramos com Paul Ricci uma linguagem própria mergulhando no ritmo e no improviso que a música brasileira exige de uma interprete, cheguei a me sentir pronta para abordar a obra desses grandes compositores brasileiros. Confrontando-se com melodias que são verdadeiros ícones, qualquer intérprete pode correr o risco de ficar anônimo, sendo ofuscado ou dominado por essas composições. O articulado projeto “eMPathia Jazz Duo” permitiu que eu mergulhasse mais profundo até entender como queria interpretar essas músicas. Talvez isso não vai agradar todos, mas eu sei que foi feito com sinceridade, transparência e amor absoluto versus esses compositores que deram tanto ao mundo e que tem grandes versões já gravadas.

Minha convivência com músicos de jazz em Nova York, tocando com eles em clubes de jazz importantes como “Birdland” e “Mezzrow“, facilitou a gravação de “Sensorial – Portraits in Bossa & Jazz“, porque os arranjos que Paul Ricci e eu criamos caíram naturalmente nas mãos deles, dando vida nova a temas clássicos da música brasileira. A história que liga a bossa às composições de Toninho Horta ou Filó Machado é uma consequência do caso de amor entre jazz e a música popular do Brasil.

WG – O que está sendo programado como eventos para divulgação do CD?
MM – Se não tivesse a pandemia eu teria tocado em vários festivais de jazz durante o verão passado na Europa. O lançamento estava marcado com os integrantes do disco no lendário “Birdland Jazz Club” em Nova Iorque, no dia 20 de setembro. Não preciso nem dizer que as restrições de viagem e o fechamento dos clubes deixou isso impossível. Nesse espírito, decidimos realizar no Estúdio Arsis em São Paulo, a live “Festa Sensorial” nessa mesma data, com grandes músicos brasileiros que tem uma inventiva habilidade para o idioma do jazz: Tiago Costa (piano), Sidiel Vieira (contrabaixo acústico) e Ricardo Mosca (bateria), além do Paul Ricci na guitarra e na direção artística.

Cada desafio pode criar oportunidades criativas e quisemos realizar esta fusão de jazz interpretando os arranjos de “Sensorial” com músicos brasileiros, ou seja mostrando o outro lado da moeda. As lives não deixam a música morrer, mas da mesma forma não deixam ela viver no jeito mais verdadeira, aquele olhos nos olhos, ligados às emoções e à troca de energia, entre quem está no palco e quem está na plateia, o jeito que inspira e exalta a improvisação, especialmente no jazz. Continuaremos assim, até que não teremos a alegria de encontrar novamente o nosso público e ouvir seus aplausos.