Argentina

Pablo Aslan volta à cidade do Tango

Fernando Rios, www.argentjazz.com.br, 12/04/2022

Há 40 anos Pablo Aslan partiu para os Estados Unidos com um contrabaixo como bagagem. Ele ainda era um músico em formação, com mais dúvidas do que certezas. Com o tempo foi-se construindo uma vida no Norte. Tocou com centenas de músicos, liderou grupos com os quais gravou e excursionou pelo mundo e criou seu próprio selo: Avantango Records. Aslan é hoje uma referência nessa fronteira por vezes tênue entre o tango e o jazz. E então, como antes, um novo projeto caminha lado a lado com seu desejo: voltar a Buenos Aires.

Eu toco baixo pela mesma razão que quando eu era criança eu jogava como goleiro: ninguém queria fazer isso e então eu aceitei.” Em Aslan, essas memórias vêm sem esforço.
Eu queria tocar violão e Andrés Calamaro me disse para tocar o contrabaixo. Nós dois tínhamos pouco mais de 15 anos. E como eu já tinha flertado com o instrumento, escutei ele”.

Esse momento crucial pode estar relacionado com este outro, o dia daquele maio de 1996 quando o argentino gravou ao vivo na Knitting Factory em Nova York, seu Avantango e em 2000 também com Thomas Chapin e Ethan Iverson. Dois músicos quase desconhecidos na época, mas que mais tarde alcançariam fama internacional.

Chapin, um saxofonista pessoal que morreria de leucemia em 1998, aos 41 anos, quando já liderava seus próprios grupos e tinha vários discos em seu nome. Iverson, jovem pianista nascido no Centro-Oeste dos Estados Unidos, deslumbrado pelo tango de Horacio Salgán e que mais tarde formaria o trio Bad Plus (junto com o baixista Reid Anderson e o baterista David King), com quem logo alcançou fama internacional e do qual sairia em 2018, para buscar seu próprio caminho musical. Esse álbum, hoje um clássico indiscutível, marcou a carreira do contrabaixista argentino, que, fiel às suas convicções, continuou a produzir obras marcantes, nutrindo o tango com espontaneidade jazzística.

 

 

Fernando Ríos –Como você se relacionava com Chapin e Iverson, dois músicos que se imagina distantes do tango, mesmo em suas formas mais modernas?
Pablo Aslan – Quando cheguei em Nova York comecei a trabalhar nas milongas. Foram anos de muito trabalho. Então, um dia, lançamos um anúncio procurando um pianista e Ethan apareceu. Ao mesmo tempo, tive contatos em todo o circuito de loft e toda aquela corrente de improvisadores. Um dia fui convidado para tocar em uma big band e lá conheci Thomas. Estávamos todos conectados de alguma forma, percorrendo o mesmo circuito.

FR – Eles começaram como o trio que mais tarde se conheceu?
PA – Não, começamos como um sexteto por volta de 1994. Depois virou um quarteto. Mas um dia Kenny Wollesen, que era o baterista, não pôde ir ao show e então fizemos a mesma coisa. A partir daí éramos três. Isso para a música é um número perfeito. E continuamos trabalhando duro até que Thomas voltou da África doente. Isso foi em 1997. Às vezes, quando Thomas não podia estar lá, a gente chamava Donny McCaslin, que estava no grupo de Fernando Tarrés na época. Thomas faleceu em fevereiro de 1998, antes do lançamento do álbum.

FR – E como eles gravaram?
PA – Quando decidimos gravar já estávamos tocando há algum tempo. Um amigo nosso nos reservou um loft em Nova York. E depois dessa série de shows fomos para o estúdio e gravamos o álbum inteiro. Então voltamos a tocar no Knitting Factory e decidimos gravar isso também. Viemos com uma quilometragem significativa e nos conhecíamos muito bem. Mas quando voltamos a viver percebemos que tínhamos a mistura perfeita para nós. Entre a concentração do estúdio e a improvisação do palco. Um equilíbrio bárbaro. Quando o álbum foi lançado, decidimos manter a gravação ao vivo, exceto por uma música: Telling comment, que era de Thomas e ele nos pediu para usar a foto de estúdio. Então, em algum lugar, haverá o álbum inteiro gravado no estúdio, que acabamos não usando.

 

 

FR – Tantos anos depois, o que você diria que cada um contribuiu para compor este álbum que já é um clássico hoje?
PA – Acho que naquela época eu tinha dado várias voltas no parafuso de como lidar com o assunto do tango espontâneo. Eu já tinha uma experiência antes mesmo de chegar a Nova York e um conhecimento maduro do tango. Acho que trouxe facilidade para um material tão rico. Ainda hoje há pessoas que se perguntam como fazer isso. Ethan e Thomas não tinham preconceito quanto a isso. Eles saíram sem se preocupar se parecia uma favela ou não. Coisas que me preocupavam. Ethan também tinha uma estranha combinação. Um cara formado no clássico, com uma formação impressionante em jazz, que, no entanto, tocava três vezes por semana nas milongas. E ele fez isso durante anos.

FR – Aí você gravou um segundo Avantango com outros músicos…
PA – Sim. Depois desse trio com Thomas e Ethan, em 2006 gravei um segundo Avantango em Nova York com músicos argentinos que moravam lá. Foi um disco muito escrito porque senti que não tinha a liberdade de improvisar como fiz com Ethan e Thomas. Depois fui passar um ano na Argentina e comecei a tocar com o Gustavo Bergalli no grupo dele. Então montei o meu em que convoquei Gustavo, Pipi Piazzolla, Jorge Retamoza e Abel Rogantini. Lá descobri recentemente que poderia trazer um pouco da metodologia que havia trabalhado com o primeiro Avantango.

FR – Bergalli, Retamoza e acho que também Rogantini, já tinha experiência em tocar tango moderno, mas devia ser algo novo a Pipi…
PA – Sim, totalmente. Desse primeiro ensaio lembro-me de duas coisas sobre o Pipi. Dei a ele algumas orientações, mas muita liberdade, para fazer o que ele achava que tinha que fazer. E ele, totalmente surpreso, me disse: ‘mas isso é livre arbítrio‘ . Isso foi tão engraçado que eu nunca esqueci. E a segunda coisa que me disse naquele dia foi que não tocava tango nem a música do avô, porque iam contar tudo. Por isso acho que foi o início do Pipi com o tango e de certa forma posso dizer com orgulho que o promovi. Depois voltamos a gravar juntos, levei ele para tocar várias vezes comigo em Nova York. Mas dessa vez, o do livre arbítrio, foi o começo. Um bom começo, porque também entendi que tinha que fazer meus discos aqui, em Buenos Aires.

 

 

FR – É difícil explicar sensações, mas você poderia dizer o que fez você sentir que esta cidade era o lugar certo?
PA – Lembro que naquela época meu sentimento era: não sei se é um álbum bom ou ruim. Mas eu sei que é o álbum que eu queria fazer. Havia aquela frouxidão que eu queria. Ali entendi de uma vez por todas que meus registros tinham que ser feitos aqui. Para mim, Buenos Aires Standards*, o disco que gravamos com aquele grupo, foi um divisor de águas na minha vida profissional.

FR – Em 2018 você fez o disco novamente no Festival de Buenos Aires, com um novo trio, com Dan Tepfer no piano e Jeff Lederer no sax. O que você lembra disso?
PA – Bem, trabalhamos juntos informalmente há anos com Dan e Jeff. Assim, a aventura começou formalmente com essa viagem. Jeff é um músico que tocou jazz, salsa e música cubana e tem toda aquela coisa de nova-iorquino misturada com músicos latinos. Dan, por sua vez, fez muitos álbuns em dupla, incluindo um com Lee Konitz, e também é dançarino de tango. Ambos são músicos sem vínculos estilísticos, muito improvisadores. E como viemos para um festival de jazz, fomos sem culpa, sem laços, sabendo que podemos abrir muito o campo…

FR – Um de seus últimos trabalhos foi Contrabass. Funciona para baixo e quarteto de cordas. Um registro diferente.
PA – Sim. É um álbum importante para mim. Tem produção de Gabriel Senanes e muitas músicas originais. Fizemos isso com o quarteto de cordas. Paquito D’Rivera está em uma música e eu estou mais na frente, mais solista do que o normal.

FR – Você voltou em 2019 para participar da Jazzologia e do Festival Internacional de Tango de Buenos Aires. E lá você voltou para trazer uma nova proposta.
PA – Isso foi muito importante para mim. Sabe… sempre que volto, procuro fazer com um projeto diferente. Sou um cara inquieto, curioso e a todo momento sinto que há coisas que me impactam, que entram no meu gosto. E vou dosando-os em cada trabalho, porque não perco de vista que o fio condutor de todos os meus trabalhos é o tango.

FR – Muitas vezes perguntam se você toca tango ou jazz… Ainda existe uma certa resistência conservadora à mixagem ou à influência de um sobre o outro.
PA – Eu chamo de jazz-tango ou tango-jazz. Eu uso esse rótulo há muito tempo e, embora sempre tenha soado bombástico para mim, descreve o que estou enfrentando. Venho do tango, mas me considero um músico de jazz no sentido amplo do conceito. Minha lealdade, por assim dizer, não é nem para balançar nem para padrões. É para a liberdade. E assim, fazendo uso dessa liberdade, escolho explorar a linguagem do tango.

FR – Mas não é talvez a improvisação que diferencia um do outro? Como você resolve isso?
PA – Sim, claro. Existe um padrão. Há um arranjo, tanto no jazz quanto no tango. No meu caso eu diria que quando faço um acordo não estou dando minha melhor forma de me expressar. Arranjo quando as coisas têm que ser ordenadas. Mas sempre prefiro que tudo aconteça no palco e que aconteçam coisas que não previmos.

FR – E isso acontece no novo trio que você montou para essa última viagem ao país?
PA – Absolutamente. Eu te digo uma coisa. Para o Tango Jazz Trio incorporei Joaquín Benitez Kitegroski, um jovem bandoneonista muito afeito a todas as novas correntes. Eu não tenho que explicar nada para ele. O trio é completado por Analía Goldberg, uma pianista maravilhosa que conhece muito bem a história do tango. E apenas isso, de alguma forma, a limitava. Lembro que estávamos ensaiando uma música nova e ela me pergunta como eu quero que ela toque, no estilo Salgán ou mais próximo do Pugliese. E eu disse a ela para tocá-lo como nasceu para ela. Como ela se sente? Com absoluta liberdade. A princípio, isso lhe custou apenas isso. Tanta liberdade. Mas quando ele assumiu e soltou, foi maravilhoso.

 

 

FR – O famoso livre arbítrio de que Pipi falava…
PA – Sim, claro… eu teria que fazer um álbum chamado Free Will… (risos)

FR – Pablo, o que você acha que Nova York tem para um artista com suas características?
PA – É uma cidade onde você pode desenvolver diferentes propostas. Não há limites para isso. É uma cidade tão multicultural, que a interseção produz novas formas musicais o tempo todo. Eu, por exemplo, estou em um grupo húngaro, onde sou a voz latina de um repertório que inclui klezmer, jazz e popular. Existem muitas possibilidades de desenvolvimento e todas elas incluem o que você traz originalmente. No meu caso o tango.

FR – Mas também que você está pensando em voltar….
PA – Sim. Já tenho uma vida feita em Nova York. Minha esposa e filhos moram lá. Eu tenho minha própria gravadora. Produzo a minha música e a de outros artistas. Eu tenho muita atividade. Mas toda vez que volto a Buenos Aires, vejo a cena, vejo meus amigos, ando por essas ruas e penso quantas coisas poderia fazer aqui. Então estamos pensando que talvez idealmente eu dividiria o ano com metade em Buenos Aires e metade em Nova York. Esse seria o projeto… seria bom.

 

* Buenos Aires Jazz Standards foi gravado nos estúdios Sound Rec em Buenos Aires por Fernando Martínez, sairia um ano depois nos Estados Unidos pelo selo Zoho, mas nunca teria uma edição argentina. Continha versões renovadas de um punhado de tangos clássicos, como La Cachila de Eduardo Arolas, Bahía Blanca de Carlos Di Sarli, Loca Bohemia de Francisco de Caro ou Don Agustín Bardi, de Horacio Salgán.