‘Kind of Blue’ será a melhor porta de acesso ao mundo do jazz?
Acho curioso quando indicam, em artigos, crônicas e até mesmo em papos informais, o Kind of Blue (1959) como “o” disco de iniciação ao universo jazzístico. Longe de mim questionar a importância estética, musical e histórica de um álbum divisor de águas, para muitos (não para mim e por vários motivos) a obra-prima de Miles Davis. O fato é que, envolto numa manta urdida de hype, cool e mística e vastamente difundido por sua fortuna crítica e altíssima qualidade musical, o álbum acabou se tornando o “disco de jazz que quem não conhece jazz” tem e/ou ouve.
Particularmente, não acho um bom ponto de partida. Explico: o Kind of Blue é um ponto de inflexão na carreira do Miles. Uma dessas suas viragens que “somente” mudam a história da música. Mas é também o fruto da maturação estética e profunda reflexão musicológica não só de Miles, mas do arranjador e compositor Gil Evans (dizem que o rubato na abertura de So What foi escrito por ele) e do pianista Bill Evans (não à toa, o autor das liner notes do disco) e desbrava um novo terreno em termos de composição e de improviso: o modalismo.
Cada tema explora possibilidades desse sistema musical: o modo dórico em So What, um tema inteiro baseado em “dois acordes“; a articulação de modos em Flamenco Sketches; a “harmonia circular“, como um moto-perpétuo, estruturada em “estranhíssimos” 10 compassos em Blue in Green, uma composição, por sinal, que deve muito à inventividade artística, à profundidade conceitual e aos direcionamentos musicais de Bill Evans, seu coautor não creditado. Para ficar só nesses. Ou seja, são composições de aparente simplicidade, mas que trazem em si uma grande profundidade e inúmeras questões musicais que podem passar despercebidas a um ouvido neófito em jazz.
Penso, portanto, ser um disco que requer alguma vivência auditiva na linguagem, alguma familiaridade com os códigos e fundamentos musicais do jazz. Por isso, sempre que perguntado, sugiro aos peregrinos do som a iniciação no jazz por outra obra do Miles: ‘Round About Midnight.
Gravado entre 1955-1956, o disco é o primeiro de Miles pela Columbia Records e documenta o que se convencionou chamar de “Primeiro Grande Quinteto” do trompetista, um combo formado por, além de Davis, claro, Red Garland (piano), Paul Chambers (contrabaixo – ‘um de meus heróis‘), Philly Joe Jones (bateria) e um jovem e tímido saxofonista tenor recém-chegado da Filadélfia, John Coltrane.
Em outros termos, o disco traz a “cozinha mais quente” do jazz à época e dois solistas de personalidades musicais absolutamente contrastantes, mas de rara “química”, num repertório de standards tocados de forma sublime. A faixa de abertura, Round Midnight, do pianista Thelonious Monk, traz para mim (e para muitos outros) a versão definitiva do tema. O arranjo é um primor: constrói um enredo abrangente, valorizando a complexidade da harmonia, o lirismo da melodia e as nuances emocionais da composição.
Já a performance é um exercício coletivo da perfeição: a surdina de Miles na “intro” apoiada por uma linha de fundo no tenor, o trabalho sutil e coeso da seção rítmica, a explosão do solo de Coltrane após a convenção e a retomada após a “impro” do ambiente sereno e introspectivo na conclusão; tudo isso torna essa interpretação monumental. Só este tema já valeria o disco, mas há também as aulas de bebop com Ah-Leu-Cha e Two Bass Hit e as releituras tornadas clássicas de Bye Bye Blackbird e All of You.
Por todas essas razões, ‘Round About Midnight me parece uma ótima porta de entrada ao mundo do jazz. E mais ainda: um disco indutor de epifanias e experiências estéticas só possíveis em obras de grande qualidade artística. No fim das contas, só me resta dizer: escute.