Lançamentos

Todas as teclas de André Repizo

Uma das boas coisas na vida de um crítico musical é quando ele descobre um talento que precisa de reconhecimento. É com satisfação que apresento aos ‘sócios’ do Clube de Jazz o jovem pianista paulista André Repizo. No final do ano passado ele lançou ‘Todas essas coisas’ no formato de trio. Esse disco autoral foi concebido tendo o universo poético de Drummond como elemento inspirador. Nessa entrevista, André nos um pouco da sua trajetória como pianista e compositor, além de nos apresentar uma análise de sua obra. Prestem atenção nos criativos vídeos que estão inseridos nessa matéria.

Wilson Garzon – Você já nasceu dentro de uma família musical, ou o seu caminho para chegar ao piano foi mais longo?
André Repizo – Sou o único músico da família. Porém, acredito que o caminho não foi tão longo. Meus pais sempre cantaram no coral da igreja, e como sempre estava junto, cresci neste ambiente musical, observando os pianistas que acompanhavam os ensaios. Aos 8 anos de idade, tive o interesse em aprender a tocar teclado e meus pais me levaram à uma escola de música. Desde então, nunca mais parei de tocar. Lembro que já na adolescência tinha certeza que iria seguir a carreira profissional na música. Sempre com o incentivo da família.

WG – Você teve uma formação acadêmica ou foi meio autodidata? Que mestres e influenciadores foram fundamentais na consolidação do seu estilo?
AR – Minha formação é acadêmica. Formei em Piano Erudito no Conservatório de Tatuí, interior de São Paulo, local em que também tive aulas de música popular. De 2009 a 2012, cursei Bacharelado em Piano na UNESP (São Paulo), em seguida, estudei Piano Popular na Escola EMESP (Escola de Música do Estado de São Paulo). Entre 2015 e 2017, foquei meus estudos na pesquisa acadêmica em música popular urbana brasileira do início do Século XX, mais especificamente na interpretação do choro ao piano, período do meu mestrado em Musicologia na UNESP. Em resumo, uma formação muito acadêmica.

 

Quais foram os músicos fundamentais na formação do meu estilo é uma pergunta difícil. Digo isso pois são muitos, e há a possibilidade de ter influências latentes em meu trabalho sem que eu tenha consciência de tal fato. Porém, tem alguns nomes que me vem à cabeça de imediato: Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Cesar Camargo Mariano, Egberto Gismonti, Débora Gurgel, com quem tive o privilégio de estudar, Amilton Godoy, Hércules Gomes, Brad Mehldau, Bill Evans, a lista é longa….. Além dos grandes compositores eruditos, Bach, Debussy, Villa Lobos, etc. São muitas influências, talvez esses nomes que citei são aqueles que mais escutei e com certeza estão presentes de uma forma ou de outra no meu trabalho.

WG – Como foi a experiência de tocar por seus anos na Freedom Big Band? Ajudou a te desenvolver como compositor, solista e arranjador? Nessa época você ganhou experiência também tocava em combos nos jazzclubs?
AR – A experiência da Freedom Big Band foi fundamental na minha carreira. Estamos juntos desde 2013, sete anos de amizade e música. A banda teve sua formação a partir do encontro de músicos que se conheceram na Jazzinha, nome carinhoso para a Orquestra Jovem Tom Jobim, grupo que toquei em 2011 sob a regência do maestro e saxofonista Roberto Sion. Desde então, estamos buscando desenvolver nossa música em conjunto e tocando em jazzclubs da capital paulista, o que sem dúvida me ajudou e ajuda no desenvolvimento do palco, tocar ao vivo. Em 2017, gravamos nosso primeiro álbum “Semana de arte moderna“, com composições exclusivas para nossa formação.

 

 

Com este trabalho tivemos a oportunidade de tocar no Festival Jazz a la Calle, no Uruguai, em 2019. Foi uma experiência incrível, primeira vez que participei de um festival internacional de jazz. Com toda essa experiência em uma formação maior, tive vontade de ter um projeto em trio, onde pudesse explorar mais o piano como protagonista. Assim como a Big Band gravou e teve êxito com o primeiro álbum, vi que era possível realizar um trabalho coeso em trio dentro de minhas possibilidades. O baterista, Caio Milan, e o baixista, Fábio Martinez, também fazem parte da Freedom.

WG – Quando foi que surgiu o projeto “Todas coisas todas“? Drummond e Toninho Horta: você tem a cultura mineira bem presente na sua formação?
AR – A história deste disco começa com um presente que recebi do meu grande amigo Tiago Silva: o livro Nova Reunião, do Drummond em 2018. Comecei a ler e me encantar com suas poesias. Percebi como a vida pode ser simples, bela, encantadora e assustadora. A leitura deu fôlego e incentivo para que eu me expressasse por meio da música, e este trabalho é, portanto, o registro do momento musical em que estava vivendo em 2018. Tem uma poesia que se chama “Essas coisas“, a qual deu origem a música “Todas essas coisas“, que é o título do álbum. Sem dúvida, o nome leva a comparação com a música do Toninho Horta (“Aquelas coisas todas“), pela semelhança do título, porém nenhuma relação direta.

A música do Toninho me influenciou e ainda me influência muito, sobretudo suas harmonias, elas me encantam. Com certeza tem a cultura mineira na minha formação, sobretudo a música do Milton Nascimento, Toninho Horta e todo o Clube da Esquina. Lembro que ganhei na minha adolescência, da minha tia Márcia, um CD do Skank e uma fita K7 do Lô Borges e Beto Guedes, era uma fita de 90 minutos. Sempre que estudava para as provas da escola escuta a fita, não sei como ela não estragou, escutei muito. Depois tive um mergulho nos discos do Milton. O trabalho dele é incrível! O disco Minas foi um dos que mais escutei, e tenho períodos em que escolho uma determinada música, como Beijo Partido, do Toninho Horta que é uma das faixas do disco Minas, que escuto repetidamente por semanas. Enfim, a música mineira com certeza está presente na minha formação.

 

 

WG – O repertório é composto por oito composições. Em suas autorais, como elas se identificam com o universo drummondiano?
AR – O repertório do álbum “Todas essas coisas” é todo de minha autoria. A ideia das composições é uma espécie de suíte, todas as músicas fazem parte de um todo. Elas se relacionam entre si. Tem motivos rítmicos e melódicos que permeiam todas as composições. Determinados acordes e passagens que aparecem em todas as músicas. Por exemplo, um mesmo motivo melódico aparece invertido em outra música, ou ainda em outra tonalidade e em velocidade e harmonização diferente. Ou seja, durante todo o álbum o “assunto” é o mesmo. Seria uma grande peça dividida em oito partes. Como elas se identificam com o universo drummondiano é uma pergunta que me leva a uma resposta bem subjetiva, pois não tem uma identificação clara e direta. Busquei refletir o sentimento que as poesias provocaram em mim, como se eu pudesse prolongar aquela sensação na qual nos encontramos quando acabamos de ler, tentei traduzir em sons o inexplicável da poesia.

WG – Conte-nos um pouco sobre seus parceiros de trio, Caio Milan e Fábio Martinez.
AR – Como já mencionei, o baterista, Caio Milan, e o baixista, Fábio Martinez, também fazem parte da Freedom Big Band. Tocamos juntos há sete anos, fato que ajudou muito na gravação do álbum Todas Essas Coisas. Caio Milan também é compositor e educador. Atualmente, Caio leciona no Guri Santa Marcelina. Entre seus projetos musicais destaco o Caio Milan Trio, com Fabrizio Casaletti na guitarra e Richard Metairon no contrabaixo. Seu disco se chama Cosmos. Fábio Martinez, também compositor e educador, atua no Diego Sales quarteto e no Fábio Martinez 4teto, onde desenvolve seu trabalho como compositor.
Além do profissionalismo, pontualidade, músicas estudadas para os ensaios e disposição, são excelentes músicos e pessoas tranquilas de trabalhar. Foi um grande prazer tê-los comigo neste projeto. Quando fiz o convite para gravarmos minhas composições, eles aceitaram de imediato.

 

 

WG – Como foi o lançamento e a recepção crítica de “Todas coisas todas“? Participou de eventos e festivais?
AR – O lançamento oficial foi dia 18 de outubro do ano passado no Teatro Brincante no bairro Pinheiros da capital paulista. Foi uma experiência incrível. Para minha surpresa, a casa estava cheia. Como o trabalho é independente, acumulei várias funções. Além de pianista e compositor, nesse projeto atuei como produtor, cuidei da assessoria de imprensa, do lanche no camarim, etc. Aprendi muito com a organização do lançamento do disco. Quanto a recepção crítica do álbum, tive a surpresa de ser elencado na lista dos melhores instrumentistas de 2019 pelo site Embrulhador, curadoria de Ed Felix.

Além do lançamento oficial, tive a oportunidade de fazer um recital solo com as composições do álbum no 11º Festival de Música de Ponta Grossa em agosto de 2019. Como grande parte do público do festival são estudantes de música, a recepção e toda a conversa sobre as composições durante as oficinas que ministrei durante o festival foram ótimas, com certeza foi um aprendizado grande para mim.

WG – Nesse atual “estado de coisas”, como você tem se virado: aulas, lives, composições, arranjos?
AR – Tem sido um desafio para todos nós da área da cultura o período da pandemia. Minha atividade profissional tem sido sobretudo com aulas online, que para minha surpresa teve um aumento na procura. Porém sinto muita falta de tocar em público e em grupo, com o trio, com a Big Band, e outros amigos. Também sinto saudades dos ensaios, um momento de encontro e aprendizagem com os amigos. Além disso, tenho feito alguns vídeos para redes sociais em que cada um grava na sua casa, o que já é um respiro. Quanto as composições e arranjos, essas atividades sempre mantive atrelada à minha rotina de estudos musicais, essa foi uma das atividades que a quarentena não interferiu muito.

WG – O que você tinha em mente como projetos no futuro? E agora, pensa em continuá-los ou surgiram outros?
AR – Tinha em mente rodar esse ano com o repertório do álbum Todas essas coisas, lançado no meio do ano passado. Já havia algumas datas fechadas, porém todas foram canceladas ou adiadas, ainda sem previsão para o retorno. Os projetos futuros já estão surgindo em minha mente, entretanto ainda não tenho planos concretos para fazê-los. Como meu último trabalho foi com minhas composições, penso em gravar músicas de outros compositores no próximo disco. Uma formação que tenho pensado é piano e percussão. Quem sabe nos próximos anos essa ideia tome forma e som.